Entrevista Luiz Antonio de Assis Brasil

Maria Isabel Teixeira Brisolara, Andreia Luzia Figueira

Luiz Antonio de Assis Brasil e Silva é homem de formação diversificada: nascido em Porto Alegre em 1945, primeiramente torna-se bacharel em Direito. Durante muito tempo dedicou-se à música, participando da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre como violoncelista pelo período de quinze anos.

Posteriormente, dedicou-se às letras, tendo feito doutorado na área de literatura. Fez também pós-doutoramento nos Açores. Desde os anos 80, atua como docente nos cursos de mestrado e doutorado da PUC de Porto Alegre.

Em 1985, inicia na PUC a Oficina de Criação Literária que funciona, de modo ininterrupto, ligada ao Curso de Pós-Graduação em Letras. Por essa oficina passaram importantes escritores como Letícia Wierzchovski , autora de Casa das Sete Mulheres, Cintia Moscovich , Caio Ritter , entre muitos outros.

Na década de setenta do século passado, porém, surge no mundo da literatura, a importante figura de Luis Antonio de Assis Brasil escritor. Mais precisamente em 1976, o escritor, convalescendo de grave enfermidade, lança seu primeiro livro Um Quarto de Légua em Quadro , que aborda a temática que vai estar presente em suas obras posteriores: a história do Rio Grande do Sul.

Porém, Assis Brasil não é um historiador, pelo menos não no sentido que se costuma dar comumente ao termo historiador. Sua primeira obra trata da saga dos imigrantes açorianos nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. É obra de ficção: através de personagens criadas pelo autor, mostra ao leitor a realidade dos imigrantes das ilhas portuguesas na colonização do sul do Brasil.

A partir dessa obra, o autor resgata um Rio Grande do Sul e um Brasil esquecido pela história oficial. Permanecendo entre a ficção e a realidade, apresenta os conflitos familiares e políticos que marcaram o desenvolvimento da sociedade rio-grandense .

Segue com A Prole do Corvo , Bacia das Almas, Manhã transfigurada , As Virtudes da Casa, O homem Amoroso , Cães da Província e Videiras de Cristal uma abordagem de fascinante realismo, as relações de poder no interior gaúcho.

Ele próprio descendente distante da ilustre personagem da política do Rio Grande, Joaquim Francisco de Assis Brasil, traz em sua realidade familiar vínculos com o conflitante percurso que caracteriza a migração européia para o sul do Brasil. Trata-se de uma região de fronteira com o império espanhol, cujos limites foram implantados muitas vezes pelas armas.

A elaboração de suas obras é precedida de acurada pesquisa histórica que permite incutir em suas personagens de ficção os sentimentos contraditórios e opostos que marcaram muitas figuras da nossa história.

Assim, suas obras abordam temas vinculados a temas importantes da história do Rio Grande do Sul. Em A Prole do Corvo aborda o universo da Guerra dos Farrapos, os desencantos de muitos ao perceberem os interesses particulares que levaram os líderes ao conflito.

Bacia das Almas trata dos anos trinta do século vinte, tendo como tema os conflitos que envolvem o período republicano e o pensamento positivista que pauta essa república velha em que os líderes decidem o que é importante para o povo.

A saga dos imigrantes alemães no Rio Grande do Sul aparece em Videiras de Cristal . O livro trata de Os Mukers , fanáticos religiosos da colônia alemã do vale do Rio dos Sinos, que entram em conflito religioso liderados por Jacobina Maurer , o que provoca uma ação do exército na região.

Um Castelo no Pampa é um conjunto de três obras sobre a mesma temática: Perversas Famílias, Pedra da Memória e Os Senhores do Século. O doutor Olímpio, figura central da obra, é um alterego do próprio Joaquim Francisco de Assis Brasil, importante personagem no início da república no Rio Grande do Sul. Personagem tão conflitante que, embora republicano, constrói no pampa um castelo, símbolo mais acabado da nobreza.

Em outras obras, como As Virtudes da Casa , Assis Brasil aborda, no mundo intimista, a alma rio-grandense do século XIX, em que se manifestam conflitos de paixão que chegam ao crime.

Assis Brasil foi contemplado com muitos prêmios literários, sendo os mais importantes são Prêmio Literário Nacional do Instituto Nacional do Livro 1988, por Cães da Província ; Prêmio Literário Erico Verissimo1988, pelo conjunto de sua obra, concedido por unanimidade da Câmara de Vereadores de Porto Alegre; Prêmio Pégaso de Literatura Latino-americana 1994, Bogotá, Colômbia: Menção especial do júri, por Pedra da Memória; Prêmio Machado de Assis 2001, Biblioteca Nacional, por O Pintor de Retratos; Prêmio Jabuti 2004 2° classificado com A Margem Imóvel do Rio.

O autor tem muitas obras traduzidas: Espanha : Concierto Campestre . Madrid: Akal, 2003 (Trad. de Juana María Inarejos Ortiz); França : L´Homme Amoureux . Paris: L´Harmattan, 2003 (Trad. de Elaine Penny). Bréviaire des terres du Brésil. Paris: Temps des Cérises , 2005 ( trad . de Celso Libânio e Dominique Olivier); Portuga l: O Pintor de Retratos . Porto: Ambar , 2003. A Margem Imóvel do Rio . Porto: Âmbar, 2005. Um Quarto de Légua em Quadro . Ponta Delgada (Açores), Direcção Regional das Comunidades, 2005.

A obra de Assis Brasil é um gigantesco painel das origens da burguesia gaúcha e de seus hábitos sociais e culturais, tratado político e antropológico concebido com desafio estético.

Percebe-se assim que o “romance histórico” de Assis Brasil tanto mais se fez romance quanto mais deixou de ser propriamente histórico. Aí permanece ainda uma impressionante minúcia atribuindo veracidade ao relato, tudo minuciosamente conferido na bibliografia sobre a tumultuada formação social do Rio Grande do Sul.

Embora fiel à exaustiva pesquisa dos fatos, o narrador sabe entretanto que tudo isso não vai além do contexto. As personagens imaginárias nascem na outra margem e não estão aí como ilustração da História, pois evidenciam justamente sua natureza absurda, indicando já uma “visão do mundo”.

Este é o motivo pelo qual Os senhores do século está armado numa seqüência cronológica bastante complexa, admitindo a imbricação entre o passado e o presente, misturando intencionalmente as mazelas de uma e outra geração familiar, como se não houvesse sucessão, mas antes a repetição das ilusões.

Creio que também aí está a origem da preferência do autor pelas personagens femininas, a modo de Beatriz e Nini , certamente privilegiadas pela densidade psicológica que adquirem. Trata-se de um universo essencialmente viril e machista, os homens sempre ocupando o primeiro plano do comando social e político. Mas isso se dá apenas no nível mais aparente; no fundo, só as mulheres hão de intuir a natureza trágica da existência. Elas ocupam, assim, o espaço mais importante da narrativa psicológica que afinal predomina nesse jogo de espelhos proposto por Assis Brasil. Pertencem à linha de Ana Terra e Bibiana , no resgate de uma tradição literária cujos antecedentes são respeitáveis.

Propondo a dialética entre a realidade e a ficção, a obra de Assis Brasil melhor esclarece um território emaranhado da criação. Faz ver que não é histórico o romance que procura catalogar a exatidão dos acontecimentos históricos e sem aquele que, instaurando o universo imaginário, atinge finalmente a contradição da História. Eis aí uma das razões da literatura. Dela o autor não se afastou desde o aparecimento de A Prole do Corvo , quando iniciou a extensa releitura do Brasil meridional. Os Senhores do Século é o seu melhor resultado.

Assim, Assis Brasil, em sendo romancista, aborda a história, mas, como ficcionista, não tem o compromisso de reproduzir fatos. Esse também é um conceito de história que a literatura questiona: o fato histórico é um perdido, nunca poderá ser recuperado como fato, dele temos apenas narrativas quer históricas quer ficcionais.

O narrador do romance histórico aponta para possíveis leituras dos fatos históricos, das realidades que envolveram as personagens, do mundo interior de cada uma das personagens. As personagens criadas mostram uma forma de leitura da história que permite novos olhares sobre os fatos que povoaram nosso passado. Esses fatos, no entanto, estão presentes no nosso próprio DNA, como aponta a ciência moderna.

Prof. Dr.Oscar Luiz Brisolara


1. Li em uma entrevista sua, dada ao jornalista Francisco José Viegas , que seus livros tratam justamente da tensão entre civilização e barbárie, como fica a questão da musicalidade de um violoncelista diante dessa tensão? Como surge a música nesse contexto?

É que a música [música erudita, de Mozart, Bach, Haydn], em meus textos, surge sempre num ambiente que lhe é desfavorável. A música de concerto é uma instituição europeia , nascida e criada num ambiente cultural radicalmente diverso do nosso. Dessa forma, será sempre uma música que necessita ser aceita e compreendida. Talvez eu seja injusto com o Brasil – e com o Sul, em particular – por considerá-los bárbaros, mas é um adjetivo que necessita ser contextualizado e desdramatizado . Talvez eu seja injusto, também, comigo mesmo, considerando-me um homem dividido entre a civilização europeia e o que temos aqui, abaixo do Equador. Essa pseudo-divisão , contudo, leva-me a escrever, e portanto, me basta. Contradição? Talvez; mas sem contradição – e alguma perversidade – não existe literatura.
2. Quando você abre as inscrições na sua oficina de criação literária na PUC e começa a selecionar participantes qual o maior problema que você sente nos que não são selecionados? De forma geral o que esses textos apresentam que não lhe chamam a atenção, e o que faz com que outros se destaquem aos seus olhos? Quais foram os piores e melhores trabalhos que já chegaram a suas mãos?

O processo de seleção é coletivo, pois me faltariam condições de, sozinho, arcar com essa responsabilidade: selecionar é sempre uma tarefa estressante e aflitiva, especialmente quando se trata de Humanidades; há o risco de, sempre, alguém talentoso ficar de fora. Entre os textos mais problemáticos estão aqueles pobres em idéias, convencionais, ou, por outro lado, arrogantes. Há alguns, contudo, que já vêm “prontos”; seus autores precisam, apenas de algum conselho – ou talvez nem mais precisem: já tentei dissuadir um ou outro candidato [de frequentar a oficina], por reconhecer-lhes qualidades literárias superiores, mas nunca tive sucesso.
3. Sua literatura retrata muito da história de sua região, a seu ver existe literatura sem uma ligação com uma historicidade? Qual o limite entre a história e a História nas suas obras?

Não penso que retrato minha região apenas por retratar; a região [o Sul] é apenas uma metonímia de qualquer região do mundo. Não me preocupo com a História; isso é tarefa dos historiadores. Meu interesse é no ser humano, qualquer que seja a época ou latitude em que tenha vivido. Ademais, não se deve confundir um romance de época [cuja ação dá-se no passado] com romance histórico. Penso que o romance histórico nasceu e morreu no século 19 [com Walter Scott e Alexandre Herculano], e se chega ao século 21 é apenas sob a forma de paródia. Mas essa é uma questão em que não existe consenso, o que igualmente não me preocupa. Minha única preocupação, vale dizer, é escrever melhor.
4. É muito comum ouvir dizer que a literatura é a eterna procura a uma resposta inexistente, e a boa literatura como aquela que instiga o surgimento de muitas outras obras na tentativa de tocar a perfeição. Existe algo que você enxerga nos seus livros que pertence a essa busca eterna? O que lhe move a escrever?

Todos nós escrevemos para alguma espécie de transcendência, seja situada em nosso mundo, seja no outro. Não escrevemos para nós nem para nossos contemporâneos. Escrevemos Literatura, e pronto. Nesse sentido, desejaria ser entendido não apenas agora, mas também no futuro, mesmo sabendo que isso ultrapassará a minha vida. Há, também, quem escreva para uma pessoa em particular, e essa pessoa passa a ser o fiel da balança. Um grande escritor já me confessou que escrevia para sua mulher, apenas; os juízos dos outros não o interessavam. Curioso, não?
5. Em 2003 com o livro A Margem Imóvel do Rio , entre um dos prêmios, você ganhou por menção honrosa o prêmio Jabuti. O que de fato representa ganhar um prêmio literário, sobretudo o Jabuti? E de todos os prêmios do seu currículo, qual deles foi o menos esperado?

Os prêmios sempre são bons e estimulantes. Nenhum escritor é tão centrado em si mesmo que prescinda de reconhecimentos públicos. O prêmio mais inesperado recebi -o em 2008 – meu livro “Música perdida” venceu a Copa de Literatura Brasileira, e os juízes são na maioria muito jovens, ligados ao mundo da internet. Surpreendi-me porque imaginei, sempre, que não seria esse o “meu” público.
6. Dos autores e leituras que te influenciaram, A Relíquia de Eça de Queirós é citado como o primeiro romance lido por inteiro. É um romance que além da ferrenha crítica à sociedade portuguesa, também causou grande escândalo junto à Igreja, ao fornecer nova e irreverente versão da morte de Cristo.

O que mais te deslumbrou em todos esses alegóricos personagens, para que a partir deles você tenha devorado todas as obras de Eça?

Foi o humor e o cinismo de Eça. Ele me venceu de imediato. Quando o terminei, pensei: vou ler todos os livros desse autor. Na voracidade dos meus 17 anos, cumpri a promessa. E até hoje não me arrependi, e releio toda obra do Eça a cada 10 anos, para “lavar os olhos”. Eça escreve cada vez melhor.
7. Foi na célebre crítica que Machado de Assis escreveu ao livro O Primo Basílio, na revista O cruzeiro, de 16 de abril de 1878 que, pela primeira vez, foi dita a expressão “oficina literária”. Diz Machado referindo-se a Eça: “…transpôs ainda há pouco as portas da oficina literária”.

Quando foi que você percebeu e focou atenção para a existência e a necessidade de uma técnica para ministrar literatura, que diferentemente do citado acima é um fenômeno moderno, cheio de novas conjecturas e diálogos?

Sempre senti a necessidade de uma técnica. Afinal, se qualquer arte tem sua técnica, por que não a Literatura? Mas esse era um pensamento meio anárquico. Foi pelo terceiro livro que tive a certeza de que não escreveria sem técnica. E procurei, por mim mesmo e com muito custo, aprendê-las – ainda não existiam no Brasil as oficinas literárias.