Resumo: Este ensaio tem por objetivo uma análise do conceito de literatura nacional e da origem literária que ele encerra nas obras Résumé de lHistoire Littéraire du Brésil, de Ferdinand Denis, e Conceito de Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho, tendo em vista a relevância teórica desses dois textos para a historiografia da literatura brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: história da literatura, literatura brasileira, nacionalismo.
Abstract: The aim of this essay is to analyse the concept of national literature and his literary origin in the works Résumé de lHistoire Littéraire du Brésil, by Ferdinand Denis, and Conceito de Literatura Brasileira, by Afrânio Coutinho, considering the relevance of both works to the theory of historiography of Brazilian literature.
KEYWORDS: history of literature, Brazilian literature, nationalism.
Introdução
A história da literatura, como parte da história ou modo paralelo de se fazer história (ZILBERMAN, 1994, p. 65) está submetida a uma pluralidade narrativa que é orientada pelas mais distintas ideologias. Consequentemente, ela é antes a definição de uma perspectiva através da qual um teórico interpreta o surgimento e a sucessão no tempo daquilo que ele considera obras literárias do que uma versão única e totalizante do patrimônio literário que ele retrata. Dessa forma, já que todo patrimônio literário está ligado às instâncias nacionais (CASANOVA, 2002, p. 186), a elaboração de uma história da literatura está intimamente vinculada a um conceito de literatura nacional que determinará a sua origem e as obras poderão integrá-la, ou seja, as diretrizes de sua execução.
Este ensaio, em vista disso, busca analisar o conceito de literatura brasileira presente no Résumé de lHistoire Littéraire du Brésil, de Ferdinand Denis, e a origem da literatura nacional que dele deriva, contrastando-os com o conceito de literatura brasileira desenvolvido por Afrânio Coutinho ao longo de alguns textos compilados sob o título Conceito de Literatura Brasileira e a origem da literatura nacional que eles orientam.
A Origem e o Conceito de Literatura Brasileira: As Leituras de Ferdinand Denis e de Afrânio Coutinho
Ferdinand Denis, após ter estado no Brasil entre 1816 e 1819, publica, na França, em 1826, Résumé de lHistoire Littéraire du Portugal, suivi du Résumé de lHistoire Littéraire du Brésil. A dissociação entre a literatura portuguesa e a brasileira, condensada no título da obra, coloca o autor em uma posição de destaque por ter indicado, e legitimado, enquanto europeu, a existência de uma literatura nacional (Rouanet, 1991, p. 65). Esse reconhecimento de uma autonomia literária, em um contexto de pós-independência política, vai provocar uma recepção favorável do Résumé por parte de intelectuais brasileiros, fazendo Denis participar do desenvolvimento da literatura brasileira de maneira prospectiva, ao ajudá-la a definir seus rumos e a expressar suas necessidades (ZILBERMAN, 1994, p. 70). Dessa maneira, é fundamental rever o conceito de literatura brasileira e a origem a ele vinculada, presentes no Résumé, já que ambos estão na raiz das discussões sobre o caráter nacional da literatura brasileira, que são travadas ainda na contemporaneidade.
O Résumé de lHistoire Littéraire du Brésil é organizado em oito capítulos: o primeiro capítulo recebe o título de Considérations générales sur le caractère que la poésie doit prendre dans le Nouveau-Monde; o segundo capítulo recebe o título de Coup doeil sur quelques poètes du dix-septième et du dix-huitième siècle; do capítulo três ao cinco há menções cronológicas de autores e de obras; o capítulo seis recebe o título de Du goût des brésiliens pour la musique; o capítulo sete dedica-se a alguns orateurs historiens brésiliens e o capítulo oito recebe o título Géographie, voyages, etc. A partir da table des chapitres, pode-se perceber que Denis, embora organize cronologicamente e esteticamente algumas obras brasileiras ao longo de três capítulos, não escreve uma história da literatura propriamente dita, construindo, ao invés disso, uma história literária[i] que compreende aspectos de teoria da literatura brasileira[ii], caracterizada no primeiro capítulo e trabalhada nos quatro capítulos seguintes, e de cultura geral, expostos nos três últimos. Desse modo, a elaboração do Résumé estava profundamente vinculada a uma tentativa de reconhecer um nativismo que permeava a produção intelectual brasileira […] e de provocar o estabelecimento de uma tradição (ROUANET, 1991, p. 188) através de um conceito de literatura nacional bastante específico.
O primeiro capítulo do Résumé é fundamental para compreender o caráter nacional que Ferdinand Denis atribuiu à literatura brasileira. Para o autor, o aspecto nacional coincide com o espaço vivido e representado pelos poetas, a inspiração criadora precisa provir do lugar de que eles escrevem a fim de afirmar a sua autenticidade. Assim, para ele, o mundo representado não é abstrato, mas faz parte de um espaço definido geograficamente, culturalmente e politicamente. Dessa maneira, ao ponderar sobre temáticas europeias que eram tomadas por poetas brasileiros, Denis anuncia que Le Brésil éprouve déjà le besoin daller puiser ses inspirations poétiques à une source qui lui appartienne véritablement (DENIS, 1826, p. 516). Ou seja, o caráter nacional da literatura brasileira deveria emanar de uma temática genuinamente nacional, de aspectos naturais e históricos do país. Consequentemente, autor sugere, assim, que a literatura nacional ainda está por ser feita:
Dans ce belles contrées si favorisées de la nature, la pensée doit sagrandir comme le spectacle qui lui est offert; majestueuse; grâce aux anciens chefs-doeuvre, elle doit rester indépendante, et ne chercher son guide que dans lobservation. LAmérique enfin doit être libre dans sa poésie comme dans son gouvernement. (DENIS, 1926, p. 515) [iii]
Dessa forma, o conceito de literatura brasileira proposto por Denis é caracterizado pela apropriação da paisagem local. Como a América ainda não era livre em sua poesia, essa apropriação passa a ser o critério através do qual ele julga o grau de brasilidade das obras literárias já produzidas em solo nacional na tentativa de reconhecer a presença ascendente de elementos nativistas. Tendo isso em vista, Denis pondera sobre quem teria sido o primeiro poeta a expressar esse nativismo:
Il est assez difficile dindiquer quel fut leur premier poète. Parmi le noms connues, je trouve celui de Bento Teixeira Pinto, né à Pernambuco vers la fin du seizième siècle. On peut le considérer comme un des auters les plus anciens de ces contrées. Il donna en 1601 une espèce de poème intitulé Prosopopée, adressé à George dAlbuquerque, gouverneur de Pernambuco. La relation du naufrauge de ce capitaine-général […] fut imprimée plusieurs fois. (DENIS, 1826, p. 516)[iv]
O autor, portanto, elege Bento Teixeira como fundador da literatura brasileira em função da temática nacional de sua obra, o naufrágio do governador de Pernambuco. Dessa feita, todos os poetas que compõem o panorama construído por Denis são avaliados conforme esse mesmo aspecto, a presença da paisagem ou da história brasileiras[v]. Sua perspectiva de nacional, então, passa a exercer um duplo papel: ao mesmo tempo em que ela define a autonomia ascendente da literatura brasileira, ela passa a funcionar como valor prescritivo para as futuras criações. Ou seja, o conceito de literatura nacional de Denis não descreve apenas o passado literário mas também condiciona o seu futuro, estabelecendo uma tradição através de seus paradigmas.
Afrânio Coutinho, ao longo de alguns textos reunidos sob o título Conceito de Literatura Brasileira em 1959, pondera sobre a história da literatura brasileira, realizando uma retrospectiva das metodologias e das teorias utilizadas até aquele momento. Nesse trajeto, o autor comenta, indiretamente, pressupostos de Ferdinand Denis tais como foram ditos por ele e, analogamente, tais como foram recebidos por outrem. Assim, Afrânio Coutinho propõe um conceito de literatura brasileira através de uma profunda consciência da fortuna historiográfica anterior a ele e de uma pormenorizada reflexão sobre ela, elegendo tanto um caráter nacional remodelado como uma outra origem literária.
A discussão central de Afrânio Coutinho, embora jamais abandone o campo literário, possui um caráter marcadamente culturalista. A literatura, para ele, faz parte de um complexo cultural mais amplo que é, ao mesmo tempo, produto e produtor de um homem específico. Dessa maneira, o surgimento de uma literatura brasileira está profundamente ligado à formação de um ser brasileiro, de práticas e de sensibilidades características, que se [re]construiu naquele espaço geográfico:
[…] como afirmou Ortega y Gasset um homem novo criou-se desde o primeiro instante em que pôs os pés no novo mundo. Foi o americano, o brasileiro. A sua fala, a sua sensibilidade, suas emoções, sua poesia, sua música, tinham de ser, e foram, diferentes, diferenciados desde o início. Nada tem de comum com o que se produziu na Europa. Desde o primeiro século, máxime no segundo, falava-se, sentia-se, cantava-se no Brasil de maneira diferente. Não são uma só literatura, a brasileira e a portuguesa, desde o século XVII. (COUTINHO, SD, p. 10)
A questão da autonomia literária, central no texto de Ferdinand Denis, é, então, facilmente solucionada por Afrânio Coutinho. Para este autor, o homem novo, remodelado pelo locus americano, adquiriu um modo de vida, um falar, uma caracterização singular, diferenciando-se profundamente do que se produziu na Europa. Consequentemente, por ser um outro, a literatura que ele criou era também uma outra:
Todo esse complexo novo tinha que dar origem a uma nova arte, a uma nova poesia, a uma nova literatura, a uma nova dança, a um novo canto, a novas lendas e mitos populares. É o que já encontramos em Gregório de Matos, como está em Anchieta. Não importa a origem de quem intepretou a nova literatura. O que vale é a sua integração nas condições sentimentais, psicológicas, anímicas, paisagísticas, geradas pela nova situação histórico-geográfica. Por isso Vieira é brasileiro mais do que português. (COUTINHO, SD, p. 15)
Assim, o conceito de literatura brasileira proposto por Afrânio Coutinho é caracterizado por um pertencimento tanto geográfico, a uma terra americana, como histórico-cultural, fruto da ação de indivíduos que a ocuparam e se identificam com ela. Aprofundando essa identificação, fruto principalmente de um sentimento de brasilidade, o autor apropria-se do texto Instinto de Nacionalidade, de Machado de Assis, e transcreve que o que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço (COUTINHO, SD, p. 28). Dessa maneira, Afrânio Coutinho transborda a concepção de Ferdinand Denis, transformando o nacional enquanto temática em um nacional enquanto espírito. Consequentemente, a diferenciação entre local e universal torna-se secundária já que o escritor, nascido em solo nacional, vinculado à terra e à sua cultura, escreve literatura genuinamente brasileira ainda que utilize, por exemplo, mitologia grega e outros elementos estrangeiros.
Essa ampliação do caráter nacional de Afrânio Coutinho em relação a Ferdinand Denis permite que a origem da literatura brasileira seja deslocada para os primórdios da colonização. Desse modo, aquele autor propõe, considerando a formação de um ser brasileiro exposta anteriormente, que o primeiro autor brasileiro tenha sido José de Anchieta. Por ser jesuíta, por estar vinculado ao Brasil e à sua cultura, principalmente no que diz respeito ao convívio com os silvícolas, já havia em seus poemas e em seu teatro elementos de um nativismo e de um sentimento de brasilidade. Dessa feita, Afrânio Coutinho constrói um conceito de literatura nacional que permite o aumento do patrimônio literário brasileiro e, além disso, elabora pressupostos historiográficos os quais, na época de sua divulgação, revigoraram a percepção da história da literatura brasileira.
Considerações Finais
Desde a gênese da historiografia da literatura brasileira, coloca-se em discussão o momento em que a literatura nacional teria adquirido sua autonomia. Ferdinand Denis, por simbolizar essa gênese, está, mesmo que implicitamente, no centro de qualquer uma dessas discussões. Afrânio Coutinho, por ter compilado a fortuna historiográfica anterior a ele, é retratado constantemente como responsável por seu balanço e ruptura. Dessa maneira, pode-se encarar o Résumé como o principal fornecedor de paradigmas para se pensar na literatura nacional ao longo do século XIX ao passo que o Conceito é um divisor de águas do século XX. Ambos autores, portanto, tornaram-se fundamentais para os estudos literários brasileiros e ainda hoje seus pressupostos são evocados por teóricos e por pesquisadores.
Bibliografia
CASANOVA, Pascale. A República Mundial das Letras. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
COMPAGNON, Antoine. Histoire littéraire et histoire de la littérature. In: Le démon de la théorie: Littérature et sens commun. Paris: Éditions du Seuil, 1994.
COUTINHO, Afrânio. Conceito de Literatura Brasileira. Rio de Jaeiro: Ediouro, n/d.
DENIS, Ferdinand. Résumé de lHistoire Littéraire du Portugal, suivi du Résumé de lHistoire Littéraire du Brésil. Paris: Lecointe et Durey, libraires, 1926.
ROUANET, Maria Helena. Eternamente em berço esplêndido: a fundação de uma literatura nacional. São Paulo: Siciliano, 1991.
ZILBERMAN, Regina. A fundação da literatura brasileira. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada. São Paulo: ABRALIC, v.2, p. 59-67, 1994.
_______________. A Terra em que Nasceste: Imagens do Brasil na literatura. Porto Alegre: Ed.Universidade/UFRGS, 1994.
CÉSAR, Guilhermino (org.). Historiadores e Críticos do Romantismo – 1: a contribuição europeia, crítica e história literária. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1978.
[i] Tal distinção pode ser encontrada em COMPAGNON, Antoine. Histoire littéraire et histoire de la littérature. In___Le démon de la théorie: Littérature et sens commun. Paris: Éditions du Seuil, 1994, pp. 235-239.
[ii] Esse conceito é trabalhado em ROUANET, Maria Helena. O ponto e o nó. In___op. cit., pp. 291-296.
[iii] Nessas belas paisagens, tão favorecidas pela natureza, o pensamento deve alargar-se como o espetáculo que se lhe oferece; majestoso, graças às obras primas do passado, tal pensamento deve permanecer independente, não procurando outro guia que a observação. Enfim, a América deve ser livre tanto na sua poesia como no seu governo. (CÉSAR, 1978, p. 36)
[iv] É muito difícil dizer qual foi o seu primeiro poeta. Entre os nomes conhecidos, encontro o de Bento Teixeira Pinto, nascido em Pernambuco pelos fins do século XVI. É considerado como um dos autores mais antigos desses países. Deu a lume, em 1601, uma espécie de poema, intitulado Prosopopéia, que dedicou a Jorge de Albuquerque, governador de Pernambuco. A relação de naufrágio deste capitão-geral […] foi muitas vezes impressa. (CÉSAR, 1978, p. 42)
[v] Paga a pena mencionar o caso Tomás Antônio Gonzaga. Embora Denis condene o poeta pela intensa utilização de temáticas europeias, ele compensa esse fato comentando a alta circulação de seus poemas. Assim, a acolhida de sua literatura representava a identificação que ela propicia à população, revelando algum valor nacional.