A vida de um idiota, de Akutagawa Ryuunosuke

Luiz Henrique Bozzo

Ainda assim o sol não visto é pai distante,
Por esse tempo de espera interminável:
Jeito irritante de fazer paciência.
(Jessé Gabriel da Silva, O Ovo)

Prefácio

O mais famoso e respeitado prêmio de literatura no Japão desde meados da década de 30 se chama “Prêmio Akutagawa” – que premia jovens escritores da literatura junbungaku (filosófica), desde oito anos após a morte do escritor Ryuunosuke Akutagawa. Ele é conhecido também por inúmeras obras, dentre as quais “Rashomon” – que serviu de base ao filme de Akira Kurosawa, sob o mesmo título. Hoje, para este espaço especial na revista Mafuá, foram extraídos alguns dos fragmentos da obra “Aru Ahou no Isshou” (A vida de um idiota), escolhidos pelo tradutor Luiz Henrique Bozzo com muito cuidado.

Em 20 de junho de 1927, Ryuunosuke Akutagawa escreveu uma carta ao seu amigo Masao Kume, anexou nela um conto, formado por uma sequência de fragmentos, e deixou às decisões de Kume a sua publicação. Nessa carta, Akutagawa diz “[…] estou vivendo em meio a maior infelicidade da felicidade, mas não me arrependo. […] Tenho intenção de não ter falado sobre mim nesses fragmentos. Por último, confio esses fragmentos a você que me conhece mais do que ninguém, sequer tirando a minha cara de um jovem da metrópole. Ria do nível de minha idiotice nesses fragmentos. Adeus.” Foram as últimas palavras que Akutagawa escreveu antes de seu suicídio, ocorrido 4 dias após a data dessa carta.

O termo “idiotice” (ahousa kagen) mencionado por Akutagawa, justifica, talvez, o título da obra “Aru Ahou no Isshou”, publicado em outubro de 1927 pela editora Kaizousha.

20 de agosto de 2010
Julia Orie Yamamoto

 


 

Notas do tradutor

Uma nota antes de iniciar os fragmentos escolhidos da obra de Akutagawa: aqui no Brasil já temos a publicação de algumas de suas obras, tais como Rashomon e outros contos (Editora Hedra, 2004), O fio da aranha e Toshishun(ambos de 2003, lançados pela Shinseken Brasil) e Contos Fantásticos (também de 2003, lançado pela Editora Z), este último se tratando de uma seleção dos alguns contos do escritor. A idéia foi tentar aproveitar o espaço de modo a publicar algo bastante breve de Akutagawa para que o leitor tivesse um primeiro contato com sua obra. Assim, aproveitando o modo como “Aru Ahou no Isshou” foi escrito, decidi escolher fragmentos bastante diferenciados e que pudessem ser entendidos fora do contexto do livro para mostrar a abrangência de temas abordados pelo autor.

Além disso, como se trata de um texto do início do século XX, determinados termos utilizados pelo escritor foram transcritos aqui com a grafia da língua japonesa atual, mas deixados em itálico para notificar o leitor que o termo foi escrito originalmente com os grafemas da época. Nesse sentido, a transcrição dos fragmentos em alfabeto romano também seguiu preocupações em manter nuances de tom mais antigo, mantendo-se, por exemplo, “he” e “wo” para as partículas de posposição respectivas a “e” e “o”. Outra questão que também foi levada em conta para a tradução é o fato de a língua japonesa não apresentar uma forma explícita de (in)determinar os substantivos nem de marcar seu número e gênero, o que ficou a meu encargo, enquanto tradutor, (in)defini-los conforme as possibilidades de interpretação. Por fim, um último comentário a ser feito é sobre o fragmento 26 – Kodai (Antiguidade) que o leitor pode se sentir um pouco deslocado ao lê-lo, se deparando com a figura da “filha do lunático”. Gostaria de deixar claro que ela ainda aparece em mais outros dois trechos de “Aru Ahou no Isshou”, o que ajuda bastante para entender que papel ela representa nesta obra. Em todo o caso, achei interessante ler este fragmento isolado de todo o resto pela própria atmosfera que ele tem, além da sensação de deslocamento ser bastante interessante. Mas para o leitor mais curioso, querendo achar de alguma forma um significado para ela, uma interpretação possível seria vê-la como uma desilusão amorosa do protagonista, ou, quem sabe, do próprio Akutagawa.

 


 

Aru Ahou no Isshou (A vida de um idiota)
Akutagawa Ryuunosuke, 1927
Tradução de Luiz Henrique Bozzo

10 – Professor

Ele lia debaixo de uma grande árvore de salgueiro o livro do professor. A árvore de salgueiro, em meio a luz de um dia de outono, não mexia sequer uma folha. Em algum lugar longínquo no ar, pratos de vidro permaneciam em perfeito equilíbrio. –– Enquanto lia o livro do professor, vivia esse espetáculo.

15 – Eles

Eles viveram em perfeita harmonia. Sob a sombra das vastas folhas de bananeira. –– Suas casas ficavam, pois, numa cidade da costa, a uma hora de Tóquio, mesmo de trem.

17 – Uma borboleta

Em meio ao vento carregado pelo odor das algas, uma borboleta batia suas asas. Ele, por alguns instantes, sentiu as asas da borboleta tocarem a superfície de seus lábios secos. Mas pelo menos o pó que outrora fora liberado em seus lábios, mesmo alguns anos mais tarde, ainda cintilava.

18 – Lua

Rumo às escadas de um hotel ele por acaso se deparou com ela. O rosto dela, mesmo numa tarde assim, parecia estar dentro do luar. Enquanto se despedia dela com o olhar, (eles nem ao menos se conheciam). Ele sentiu uma solidão que, até então, nunca havia experimentado…

26 – Antiguidade

Budas cujas cores desvaneceram, seres celestiais, cavalos, a flor de lótus, o subjulgaram quase que totalmente. A admiração era tanta que de todo o resto ele estava esquecendo. Até mesmo da felicidade de ter escapado das mãos da filha do lunático.

28 – Assassinato

A estrada do campo na luz do sol exalava no ar o cheiro pútrido de bosta de vaca. Enquanto ele limpava o suor, ia subindo o caminho íngreme. Em ambos os lados da estrada o trigo maduro/adulto liberava a sua fragrância.

“Mate, mate…”

Um dia, ele murmurava para si mesmo. Quem? –– Para ele, isso era evidente. Ele se lembrava de um homem de cabelo raspado que aparentava um ser fatalmente desprezível.

Assim, do outro lado dos trigos amarelados, uma catedral católica romana, de repente, começou a revelar uma cúpula…

Referências

http://www.aozora.gr.jp/cards/000879/files/19_14618.html

 


 

(Em Romaji)

10 – Sensei

Kare wa ookii kashi no ki no shita ni sensei no hon wo yondeita. Kashi no ki wa aki no hi no hikari no naka ni ichimai no ha sae ugokasanakatta. Dokoka tooi kuuchuu ni garasu no sara wo tareta hakari ga hitotsu, choudo heikou wo tamotteiru.  –– Kare wa sensei no hon wo yominagara, kouiu koukei wo kanjiteita.

15 – Karera

Karera wa heiwa ni seikatsu shita. Ookii bashou no ha no hirogatta kage ni. –– Karera no ie wa Toukyou kara kisha de mo tappuri ichi jikan kakaru aru kaigan no machi ni attakara.

17 – Chou

Mo no nioi no michita kaze no naka ni chou ga ichiwa hirameiteita. Kare wa honno isshunkan, kawaita kare no kuchibiru no ue he kono chou no tsubasa no fureru no wo kanjita. Ga, kare no kuchibiru no ue he itsuka nasutteitta tsubasa no kona dake wa suunen ato ni mo mada kirameiteita.

18 – Tsuki

Kare wa aru hoteru no kaidan no tochuu ni guuzen kanojo ni souguu shita. Kanojo no kao wa kouiu hiru ni mo tsuki no hikari no naka ni iruyoudatta. Kare wa kanojo wo miokurinagara, (karera wa ichimenshiki mo nai aidagara datta.) ima made shiranakatta sabishisa wo kanjita…

26 – Kodai

Saishiki no hageta butsutachi ya tennin ya uma ya hasu no hana wa hotondo kare wo attou shita. Kare wa sorera wo miageta mama, arayuru koto wo wasureteita. Kyoujin no musume no te wo dasshita karejishin no kouun sae…

28 – Satsujin

Inakamichi wa hi no hikari no naka ni ushi no kuso no shuuki wo tadayowaseteita. Kare wa ase wo nuguinagara, tsumasaki agari no michi wo nobotteitta. Michi no ryougawa ni jukushita mugi wa koubashii nioi wo hanatteita.

“Korose, korose…”

Kare wa itsuka kuchi no naka ni kouiu kotoba wo kurikaeshiteita. Dare wo? — Sore wa kare ni wa akiraka datta. Kare wa ika ni mo hikutsurashii gobugari no otoko wo omoidashiteita.

Suruto kibanda mugi no mukou ni Rooma Katorikku-kyou no garan ga ichiu, itsu no ma ni ka maruyane wo arawashidashita…

 

Texo original disponível aqui.