“Sistema jagunço” e pacto: o mito e a travessia do “Sertão-enquanto-mundo”

Candice Angélica Borborema de Carvalho

RESUMO: O presente estudo se pauta na investigação do suposto pacto demoníaco selado por Riobaldo na encruzilhada das Veredas Mortas — um dos pontos centrais do romance de Guimarães Rosa — visando a conformar as esferas de particularidade e universalidade atreladas ao “sistema jagunço”. Para tanto, no sentido de alicerçar o debate acerca do mito fáustico em Grande Sertão: Veredas, o trabalho parte da discussão preliminar dos conceitos de mito estabelecidos pela crítica.

PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa; Grande Sertão: Veredas; “sistema jagunço”; universalismo; mito; pacto.

ABSTRACT: Based on Guimarães Rosa’s novel, this study seeks to investigate the alleged demonic pact sealed by Riobaldo at the Veredas Mortas’ crossroads — the main issue in Guimarães Rosa’s novel — in the shape of spheres of particularity and universality linked to the “jagunço system”. So, in order to support the debate about the faustian myth in Grande Sertão: Veredas [The devil to pay in the backlands] this study assumes the preliminary discussion of the concepts of myth established by critics.

KEYWORDS: Guimarães Rosa; Grande Sertão: Veredas [The devil to pay in the backlands]; “jagunço system”; universalism; myth; pact.

 

Do vento. Do vento que vinha, rodopiado. Redemoinho: o senhor sabe — a briga de ventos. O quando um esbarra com outro, e se enrolam, o doido espetáculo.
Guimarães Rosa (1970, p. 187).

O “sistema jagunço” e a construção do mito em Grande Sertão: Veredas

Desde a publicação de Sagarana em 1946, a crítica, tratando da obra de Guimarães Rosa de modo sistemático e dialético, reconhece duas dimensões em seu universo ficcional, sobretudo naquela que é considerada sua obra de plenitude — Grande Sertão: Veredas — a dimensão local e a dimensão universal. A transcendência que se opera na ficção do escritor mineiro é vinculada ao entrecruze desses dois planos; pelo extravasamento do sertão, a matéria narrada atinge patamares que suplantam a estrita representação do particular.

O “sistema jagunço” — conceito introduzido por Guimarães Rosa (1979, p. 391) no romance — se conforma pelas esferas da particularidade e da transcendência. Tendo o sertão como objeto de representação, a conjunção de elementos sociais, políticos e culturais que configuram a realidade se justapõem à capacidade inventiva do autor, gerando um complexo de significados abrangentes na obra, talhada por símbolos e marcada por artesanato verbal e estrutural.

Tal “sistema” parte da representação de uma realidade histórica e sociológica, entretanto, como dito, não se detém nela, mas, transcende-a. A concretude local se dessubstancia e atinge espectros mais amplos, que permitem alçar a ficção aos níveis da universalidade. Ao refazer em palavras sua trajetória como jagunço — revelando a humanidade contraditória e fragmentada, as dúvidas insolventes num mundo em que bem e mal se resvalam —, Riobaldo se despoja do plano ordinário de jagunço sertanejo e passa a ser “homem humano” (ROSA, 1970, p. 44; 307; 460) no “mundo-sertão” (CANDIDO, 2004, p. 117).

Em outras palavras, a estrutura narrativa — ao mesmo tempo em que promove reflexões acerca das raízes históricas do banditismo, da violência e, paralelamente, das estruturas socioeconômicas — contempla os insondáveis questionamentos do narrador-protagonista, fazendo com que o particular da ficção abarque sondagens universais: a universalidade instala-se gradualmente e às mesclas no plano particular.

Assim sendo, o que se conta no livro “[…] não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente.” (ROSA, 1970, p. 79). Tal matéria verte e reverte em movimento remoinhoso entre particularidade e transcendência e entre mythos e logos.

Num universo labiríntico e misturado, o jagunço de Grande Sertão: Veredas — imerso num sistema que media o complexo de lei e crime associado às relações entre poder arbitrário e desmandos, radiografia da instituição denominada pelo autor de “sistema jagunço” — também é construído com recursos de fabulação de lendas universais: o cavaleiro medieval, a donzela guerreira e o pactário diabólico.

Num universo a um tempo real e mágico, ao cingir a canga do jagunço histórico com a indumentária do imaginário, as delimitações de espaço e tempo esmorecem e, efundindo-se do domínio particular, o romance atinge o miolo da alma humana, o “homem dos avessos” (ROSA, 1970, p. 11) por onde transpassa a coexistência insondável de valores como o bem o mal, o ser e o não-ser, a coragem e o medo. Tais elementos, na “jornadeia de jagunço” (ROSA, 1970, p. 48), são postos a termo, constituindo pontos nodais do questionamento do narrador: “Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!” (ROSA, 1970, p. 79).

Dentre tais debates ensejados pelo narrador Riobaldo, reponta a questão relutante: se o demônio existe ou se o mal é parte humana, se “[…] o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem — ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos.” (ROSA, 1970, p. 11). A dúvida acerca da materialidade do demo se erige no romance atrelada ao suposto pacto demoníaco selado por Riobaldo na encruzilhada das Veredas Mortas. Como nas lendas do herói paladino e da donzela guerreira — a “mulher-homem Diadorim” (CANDIDO, 2004, p. 111) —, “o pacto deixa ver de maneira mais clara o enxerto de um jagunço simbólico no jagunço comum.” (CANDIDO, 2004, p. 118). Conforma-se, na contenda da assimilação do pacto diabólico, o fulcro do romance: “o angustiado debate sobre a conduta e o relacionamento humano e os valores que o escoltam.” (CANDIDO, 2000, p. 135).

O jagunço rosiano tangencia a lenda, o rito, atingindo um estado primordial próprio do mito, em que as noções de tempo e espaço se escamoteiam, permitindo uma leitura analógica do mundo e do homem. O conceito de universalismo, atrelado ao ser jagunço como figura representativa e ontológica no “Sertão-enquanto-Mundo” (CANDIDO, 2000, p. 135), parte da construção do mito.

Sendo, portanto, o objetivo nuclear do presente estudo a análise do pacto demoníaco no romance de Guimarães Rosa associado aos domínios da particularidade e da universalidade na conformação do “sistema jagunço”, torna-se essencial, num primeiro momento, que averiguemos como a crítica especializada apreende a noção de mito na obra, vinculada à construção do jagunço.

O mito — termo ubíquo, utilizado em sua vasta amplitude de sentidos e de formas nos ensaios críticos sobre a obra — remonta noções variadas. A complexidade de estudá-lo como estrutura essencial no romance aumenta pelo fato de a crítica, na maior parte das vezes, se abster de definir o conceito de mito que emprega. Desse modo, a investigação da construção do mito em Grande Sertão: Veredas, pela dificuldade de se emparelhar e associar as noções estabelecidas na fortuna crítica do romance, torna-se extremamente laboriosa e delicada.

Os estudos sócio-históricos do romance — debruçados sobre aspectos da cor local incrustados na trama do continente ficcional — depreendem a construção do mito na obra como sinônimo de lenda associada às manifestações culturais populares do sertão mineiro.

Aliando o mito a outra escala — distinta do viés que enxerga o mito como estrito instrumento de estudos sócio-históricos e culturais e que enleiam sua presença na representação do imaginário popular sertanejo — outras vertentes analíticas sobre o romance rosiano, contudo, tomam o mito como ponto de fratura do jugo estrito da realidade sócio-histórica e como elemento de conversão de particularidade em transcendência.

Tais posições críticas acerca da composição mitológica em Grande Sertão: Veredas — que serão analisadas ao longo deste estudo — sinalizam de antemão um quadro de extremos: a presença do mito no romance, que, por um lado, revela o rescaldo da tradição popular sertaneja em seus aspectos sociais e culturais; por outro, expurga a estrita representação de uma realidade espacial e temporal, criando um universo autônomo — insubordinado à racionalidade histórica.

Mito: representação e transcendência do imaginário popular sertanejo

A perspectiva que o mito assume nos estudos sócio-históricos se pauta no fato de que, ao dar voz a um narrador ex-jagunço, portanto, culturalmente arraigado à tradição popular sertaneja, Guimarães Rosa recria não apenas elementos sócio-históricos e físicos do sertão, mas o imaginário dele, que permeia esses elementos e constitui a essência cultural do sertanejo. Destaca-se, nesse aporte analítico, o estudo de Walnice Nogueira Galvão (1972).

A ensaísta (GALVãO, 1972, p. 61) analisa a presença da cultura medieval na mitologia do cangaço em Grande Sertão: Veredas partindo da proposição de que o romance se conforma pela junção de duas instâncias: “matéria” e “matéria imaginária”. Por ser o sertão a “matéria” do romance, o imaginário do sertão — “matéria imaginária […] que está entranhada na própria matéria” — passa a ser também parte de sua representação.

Elementos legendários medievalistas, “tipos” como o herói paladino, o “cavaleiro andante”, a “donzela guerreira”, o “Diabo” — que remontam a origens históricas lusitanas, assimiladas pela “tradição oral dos causos e das cantigas, bem como nos romances de cordel” — compõem expressões culturais do sertão (GALVãO, 1972, p. 59). Tais personagens, na tradição popular sertaneja — em que “História e estória se confundem” —, passam a constituir, ao lado de “figuras da história do Brasil”, “personagens de um só universo” (GALVãO, 1972, p. 58-59).

Para Walnice Nogueira Galvão (1972, p.66), portanto, a ideia de mito no romance rosiano em nenhum momento desvale o “compromisso com a realidade”. Grande Sertão: Veredas, “[…] encampando o sertão, encampa também o imaginário do sertão. Nada mais verossímil que um jagunço, ademais um jagunço parcialmente letrado, narrando sua vida, a ela se refira em termos de novela de cavalaria. Afinal, esse é o imaginário de seu convívio.” (GALVãO, 1972, p. 57). A inserção mítica no romance se vincula, pois, à fidelidade de Guimarães Rosa ao imaginário do sertão, uma vez que “o sertão comparece, neste romance, como o substrato que fundamenta a fabulação ficcional.” (GALVãO, 1972, p. 67). Vale notar que a ensaísta sobrepõe as noções de mito e lenda, de modo que, ao fazer referência às lendas do herói paladino e da donzela guerreira, reporta-se a elas como “mitologia do cangaço” (GALVãO, 1972, p. 61).

Cabe dizer que a lenda do herói paladino, a que se refere Galvão (1972) foi minuciosamente analisada pelo pioneiro estudo de Cavalcanti Proença (1959, p. 168). Apesar dos detalhes que cercam o texto do crítico, principalmente na comparação de Grande sertão com as novelas e os romances de cavalaria — a ponto de ser referência obrigatória ao estudo da heroicidade paladiníaca no romance rosiano pelo rigor dos detalhes nas comparações estabelecidas —, o ensaísta não aprofunda as implicações da presença desse universo lendário na obra com o jaguncismo no sertão.

Sem excluir a perspectiva sócio-histórica estabelecida no estudo de Walnice Galvão (1972), contudo, a noção de mito extravasa a concepção de representação estrita da tradição popular sertaneja pela obra. Conforme afirma Antonio Candido (2000, p. 131; grifo nosso), em Grande Sertão: Veredas, há “[…] constantes mais profundas, que estão por baixo das lendas e práticas de Cavalaria e que vão tocar no lençol do mito e do rito.” Nesse mundo lábil criado pelo escritor mineiro, a estrutura mitológica vinculada ao imaginário local resvala ao plano universal. Representação e universalismo passam a ser reversos. Somemo-nos ao que propõe Alfredo Bosi (2010, p. 433): Grande Sertão: Veredas “[…] nos põe em face do mito como forma de pensar e de dizer atemporal e, na medida em que leva a transformações bruscas, alógica.” (BOSI, 2010, p. 433). Por isso, como diz Guimarães Rosa (1970, p. 286), “[…] a gente só sabe bem aquilo que não entende” (ROSA, 1970, p. 286). “Volta-se ao ponto de partida.” (BOSI, 2010, p. 433).

Combinando “[…] o mito e o logos, o mundo da fabulação lendária e o da interpretação racional […]” (CANDIDO, 2000, p. 139; grifos do autor), Grande Sertão: Veredas irrompe as divisas do sertão e se alia ao universalismo, ideia sobejamente iterada nos ensaios de Antonio Candido. Em “O homem dos avessos”, dos mais admiráveis estudos sobre o romance rosiano, Candido (2000) apresenta de modo mais amplo sua concepção de universalismo na obra. Para o crítico (CANDIDO, 2000, p. 122), Grande sertão converte o estrato local em “[…] lugares comuns, sem os quais a arte não sabe sobreviver: dor, júbilo, ódio, amor, morte, — para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e que na verdade o Sertão é o Mundo.”

Nesse “mundo, distante sobretudo no tempo” (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1994, p. 22), Guimarães Rosa se apropria literariamente de formas míticas. E o mito “[…] se passa sempre e para sempre ’em tempo algum’ (in illo tempore), localiza o não-tempo num contexto. Suspendendo a História, o mito é também atravessado por ela.” (PACHECO, 2008, p. 19). As marcas de espaço e tempo são, portanto, ao mesmo passo — remoinhosamente — (re)construídas e desfeitas de modo que, ao se diluírem, fazem verter a caudalosa matéria narrada, rumando-a à universalidade.

Os jagunços de Grande Sertão: Veredas conformam-se pela ambiguidade entre os pólos realidade e irrealidade. Há “duas humanidades” que se propagam de forma irrestrita, pois os “[…] jagunços são e não são reais.” (CANDIDO, 2000, p. 129). Esse fundamento duplo de humanidade extrai os “brabos sarados guerreiros” (ROSA, 1970, P. 178) do severo “estatuto de jagunço” (ROSA, 1970, p. 306). Associando o jagunço a símbolos de lendas universais mesclados a elementos da cultura popular — “poesia do mais fundo do sertão brasileiro” (ARRIGUCCI JúNIOR, 1994, p. 7) —, Guimarães Rosa representa culturalmente o jagunço e, ao mesmo tempo, extirpa-o da estrita realidade sócio-histórica para a construção do mito —, conduzindo-o à universalidade. Atinge-se, nessa esgarçadura do real, “[…] a unidade profunda do livro [que] se realiza quando a ação lendária se articula com o espaço mágico.” (CANDIDO, 2004, p. 129; grifo nosso).

A particularidade e a universalidade em Grande Sertão: Veredas constituem planos imbricados e complementares: para Antonio Candido (2004, p. 114), compreender o universalismo do “ser jagunço” no “mundo-sertão”, é uma “[…] importante chave de interpretação” do romance. Por isso, conclui o crítico (CANDIDO, 2004, 115), “[…] não basta procurar nele [Grande Sertão: Veredas] em que medida a ficção vale como transposição dos fatos; mas também em que medida o comportamento do jagunço aparece como modo de existência, como forma de ser no mundo, encharcando a realidade social de preocupações metafísicas.”

Assim, por meio do mito, o transcender das conexões temporais e espaciais na ficção rosiana remete “[…] a um conjunto também muito amplo de saberes, percepções e sensibilidades que se desterritorializam e reterritorializam.” (CHIAPPINI; VEJMELKA, 2009, p. 9): “O sertão é do tamanho do mundo.” (ROSA, 1970, p. 59).

Pacto: a terceira margem do rio

Quem de si de ser jagunço se entrete, já por alguma competência entrante do demônio. Será não? Será?
Guimarães Rosa (1970, p. 11)

Tudo é pacto.
Guimarães Rosa (1970, p. 292)

Tudo é e não é.
Guimarães Rosa (1970, p.12)

“Tu é tudo, Riobaldo Tatarana! Cobra voadeira!”
Guimarães Rosa (1970, p. 320)

A existência material do demo, introduzida logo no início da narrativa, quando o protagonista conta o caso do bezerro “erroso” — “Cara de gente, cara de cão: determinaram — era o demo” (ROSA, 1970, p. 9) — vai se enredando, sob a forma de relatos e reflexões, com mais força ao longo da trama “[…] até que um fio, primeiro tênue, que se interrompe rápido, se vai encorpando, mediante sucessivas evocações, e tomando conta da fala do Narrador.” (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1994, p. 22). Nas palavras de Galvão (1972, p. 127-128),

[…] o fio do enredo é o tormento do narrador por ter vendido a alma ao Diabo; esse fio atravessa o romance todo e se estende da primeira página até a última; o que o narrador está narrando é, em suma, os antecedentes que o levaram ao ponto de fazer um pacto e as consequências que disso advieram para ele e para os outros.

Após o batismo de fogo na guerra jagunça, Riobaldo passa a noite em vigília — “[…] purgava ranço nervoso, sobra da esquentação curtida nas horas de tiroteio” (ROSA, 1970, p. 168) — e vive a inquietação subsequente à primeira batalha travada como jagunço: “Dormi. Mas daí logo acordei, mão no rifle, como se vez fosse. E não havia coisa nenhuma, nem vulto nem barulho. Os outros no estar, pesados no sono, cada um em seu recanto, estufando suas redes penduradas de árvore em árvore.” (ROSA, 1970, p. 167). Além de Riobaldo, estava também acordado Jõe Bexiguento — “sobrechamado o Alpercatas” (ROSA, 1970, p. 167; grifo do autor): “Jõe Bexiguento reparou em meu [de Riobaldo] desassossego, veio para o pé de minha rede, sentou no chão.” Riobaldo e o companheiro de insônia travam um diálogo, em que o jagunço recém-iniciado, após divagar por conversas esparsas — “bobeia minha, assuntos” (ROSA, 1970, p. 169) —, questiona o amigo sobre o real motivo de sua inquietação:

Pecados, vagância de pecados. Mas, a gente estava com Deus? Jagunço podia? Jagunço — criatura paga para crimes, impondo o sofrer no quieto arruado dos outros, matando e roupilhando. Que podia? Esmo disso, disso, queri, por pura toleima; que sensata resposta podia me assentar o Jõe, broeiro peludo do Riachão do Jequitinhonha? Que podia? A gente, nós, assim jagunços, se estava em permissão de fé para esperar de Deus perdão de proteção? Perguntei, quente. (ROSA, 1970, p. 169).

O ímpeto que conduz o herói problemático a profusas indagações e perscrutações se associa a sua iniciação no eito da jagunçagem. Ao se ajagunçar, Riobaldo manifesta dúvidas acirradamente, cujo cerne é a mescla das condutas humanas entre o bem e o mal. Na realidade do sertão, estão presentes as características de quem vive no bojo de uma existência em fio de navalha: “Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada.” (ROSA, 1970, p. 82). Tais questionamentos se enveredam para a dilemática sondagem metafísica que Riobaldo procura elucidar, principalmente a coexistência de conceitos paradoxais na essência da conduta humana:

Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos pastos demarcados… Como é que posso com este mundo? (ROSA, 1970, p. 169).

A ideia de que elementos contrários coexistem conformados atormenta Riobaldo. Todavia, apesar de tentar se convencer da delimitação e da estanquidade dos opostos, Riobaldo conclui: “A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que, este mundo é muito misturado…” (ROSA, 1970, p. 169). As cismas de Riobaldo o confrontam com a mistura do mundo — ideia da coisa dentro da outra, “padrão dual recorrente” (GALVãO, 1972, p. 13). Além de mesclado por opostos, o mundo é cíclico: o contrário surge sempre de seu contrário. Nessa existência baralhada e ambígua de formas e essências, nada é definitivo: há movimento, labilidade de um mundo misturado em que o mal — o diabo — ocupa o centro de rotação: “O diabo na rua, no meio do redemunho…” (ROSA, 1970, p. 11, 319, 450; grifo do autor) — epígrafe do romance.

As diversidades do mundo misturado e reverso, que tem o diabo no centro, são iteradas sobejamente pelo narrador, em inúmeros aspectos e planos, como se observa no início do romance:

Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente virar azangada — motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas — vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também é que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, o senhor já viu, por ver, a feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engolir por sua suja comodidade o mundo todo? E gavião, corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para adiante, rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas — que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo — que é só assim o significado dum azougue maligno — tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo. (ROSA, 1970, p. 11; grifo nosso).

Retomemos o episódio da noite de vigília de Riobaldo junto a Jõe Bexiguento, aos olhos do protagonista, “duro homem jagunço”, para quem “tudo poitava simples” (ROSA, 1970, p. 169) e a quem Riobaldo queria se assemelhar — “por que era que eu também não podia ser assim como o Jõe?” (ROSA, 1970, p. 169). Nesse jagunço, “no sentir da natureza dele, não reinava mistura nenhuma neste mundo — as coisas eram bem divididas, separadas. — ‘De Deus? Do demo?’ — foi o respondido por ele — ‘Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta […]'”(ROSA, 1970, p. 169). Entretanto, esse homem, cuja ideia “[…] era curta, não variava. — ‘Nasci aqui. Meu pai me deu minha sina. Vivo, jagunceio…’ — ele falasse.” (ROSA, 1970, p. 169) — e quem Riobaldo acredita estar dissociado das misturas do mundo, é que lhe conta o caso de Maria Mutema, reproduzido pelo narrador.

Maria Mutema, “pessoa igual às outras, sem nenhuma diversidade”, vivia em um pequeno arraial sertanejo. Numa noite, seu marido morreu. Não havia no defunto sinal algum que pudesse indicar a causa do óbito. Todos do arraial, chamados por Maria Mutema, “[…] senhora vivida, mulher em preceito sertanejo” (ROSA, 1970, p. 170), foram à casa da viúva se certificar da morte do marido.

Após enviuvar, Maria Mutema enlutou, começou a ir à igreja com frequência e passou, a cada três dias, a se confessar com o sacerdote — o padre Ponte, “[…] um vigário de mão cheia, cumpridor e caridoso, pregando com muita virtude seu sermão e atendendo em qualquer hora do dia ou da noite, para levar aos roceiros o conforto da santa hóstia do Senhor ou dos santos-óleos” (ROSA, 1970, p. 170-171). Tal padre, “bom-homem de meia idade, meio gordo, muito descansado nos modos e de todos bem estimado” (ROSA, 1970, p. 170), mantinha um relacionamento afetivo com a governanta de sua casa, Maria, “Maria do Padre” — e, com ela, possuía três filhos — “os meninos da Maria do Padre”.

Com as confissões contínuas de Maria Mutema, ouvidas a contragosto pelo sacerdote, o padre Ponte começou a emagrecer, “[…] e em fim encaveirou, duma cor amarela de palha de milho velho” (ROSA, 1970, p. 171), adoeceu e morreu, “morreu triste” (ROSA, 1970, p. 171). Certo dia, chegam ao arraial padres estrangeiros. Na última noite da estada dos sacerdotes no vilarejo, durante a pregação de um deles, Maria Mutema aparece na porta da igreja. O padre interrompe a reza da Salve-Rainha e dirige-se à viúva afirmando que queria ouvi-la em confissão na porta do cemitério, onde estão enterrados dois defuntos. Então, aos gritos, Maria Mutema confessa tudo ali mesmo, na porta da igreja: diz que havia matado o marido, colocando em seu ouvido chumbo derretido e diz ainda que, nas confissões ao padre Ponte, afirmava ao sacerdote que apenas matara o marido por amor ao sacerdote, o que era mentira. O desgosto de ouvir tal relato em confissão levou o padre Ponte à morte: quanto mais o padre sofria ao ouvir o relato, mais veementemente Maria Mutema insistia na mentira, comprazendo-se com o sofrimento do padre — “Tudo era mentira, ela não queria nem gostava. Mas com o ver o padre em justa zanga, ela tomou gosto, e era um prazer de cão, que aumentava de cada vez […]” (ROSA, 1970, p. 173). Com essa dupla confissão pública, ela é levada presa. Na cadeia, reza sempre, clamando pela absolvição de seus pecados. é feita a exumação do esqueleto do marido e se confirma a presença do chumbo dentro do crânio. Ela é perdoada:

[…] o povo perdoou, vinham a dar a ela palavras de consolo, e juntos rezarem. Trouxeram a Maria do Padre, e os meninos da Maria do Padre para perdoarem também, tantos surtos produziam bem estar e edificação. Mesmo, pela arrependida humildade que ela principiou, em tão pronunciado sofrer, alguns diziam que Maria Mutema estava ficando santa. (ROSA, 1970, p. 173-174).

O caso de Maria Mutema, “num romance tão cerrado, com uma unificação tão forte, mantida sem desfalecimento por mão de mestre num monólogo recitado a um interlocutor-ouvinte, surge como peça estranha […], perdido no meio do romance e ocupando várias páginas.” (GALVÃO, 1970, p. 174). Como explica a ensaísta (GALVÃO, 1970, p. 118; grifo da autora), a despeito da extensão única do romance, o conto de Maria Mutema se vincula a “[…] outros causos portentosos, a modo de ilustração objetivada dos grandes problemas metafísicos que Riobaldo está tentando elucidar”, como os casos de Pedro Pindó e de Aleixo (ROSA, 1970, p. 15).

Os dois crimes cometidos por Maria Mutema são, em essência, um só, explica Galvão (1972, p. 120): um pacto selado — um agente e um receptor passivo. No crime contra o marido, Maria Mutema introduz chumbo derretido no ouvido enquanto ele dormia; no crime contra o padre, ela contava uma mentira pecaminosa — sob a forma de verdade — sem que ele pudesse refutar. Em ambos os casos, o agente introduz algo — concreto ou abstrato — pelo conduto auditivo das vítimas (mesma via, portanto) e o que a leva a tais atitudes é exatamente a falta de motivo: a intervenção do mal, o “prazer de cão” (ROSA, 1970, p. 173). A consequência ao agente pelo cometimento dos crimes é igual e única: a condenação. Tanto no primeiro quanto no segundo crime há a certeza, todavia sob formas distintas: “no caso do marido a bola de chumbo figura a certeza” (GALVãO, 1972, p. 120); no caso do padre, a mentira, introduzida como certa, dá-se diretamente.

Para Walnice Galvão (1972, p. 120), ao assumir os dois crimes, Maria Mutema se desvencilha da culpa por meio da confissão pública. Ao ser posta em juízo, a ré introduz, pela mesma via que cometera os dois crimes — o conduto auditivo —, as palavras de confissão e passa à condição de inocente. Entretanto, não existe mais um pacto, pois há mais que duas pessoas envolvidas: de um lado, está Maria Mutema e, de outro, a multidão. Tal multidão não se põe passiva diante da confissão: perdoa-a e lhe atribui a condição de santa. Ela, por meio da confissão, adquire o reverso de sua posição: passa de assassina hedionda à santa.

O caso de Maria Mutema é regido pelo “princípio da reversibilidade” (CANDIDO, 2004, p.111): “o povo não fixou Maria Mutema em sua maldade para sempre; ao contrário, abriu-lhe a possibilidade de mudar” (GALVãO, 1972, p. 120). Retomando os crimes de Maria Mutema, o que distingue os dois casos, como afirmamos, não é o crime — em ambos se comete homicídio —, mas a materialidade da ação. No assassinato do marido, introduz-se algo concreto no ouvido da vítima, enquanto na morte do padre o crime se faz de maneira abstrata: por meio de confissões mentirosas introduzidas no “pai-ouvido” (ROSA, 1970, p. 171) do sacerdote. “Temos, portanto, o mesmo crime e a mesma imagem, diversos apenas quanto ao nível de concreção ou de abstração”: tanto o chumbo quanto as palavras entram pelo ouvido, aninham-se “[…] no mais íntimo de um homem, seu cérebro ou sua mente” e matam (GALVãO, 1972, p. 120-121).

A parábola de Maria Mutema, na fala de Galvão (1972, p. 121), demonstra o pacto como um acordo do “certo no incerto”: evitar a “morte real” — o fim a que se presta o pacto — e a corrupção da alma do pactário — “morte abstrata” — certeza na incerteza. Ao invocar o demo na encruzilhada das Veredas Mortas, Riobaldo, pleiteia fim certo — “Ali [nas Veredas—Mortas] eu [Riobaldo] tive limite certo” (ROSA, 1970, p. 304) —, entretanto, a via é incerta. O agente do pacto — o diabo — não aparece e o pacto fica no nível da abstração. A concreção do pacto — questionada ao longo da obra pelo protagonista — é suposta pelas mudanças ocorridas após o episódio — o cavalo que se assanha diante de Riobaldo, o cessar de seus sonhos e fatos prodigiosos como a travessia pelo Liso do Sussuarão (LEONEL, 2008, p. 118). O modo de ser do jagunço também é alterado após a noite obscura na encruzilhada: Riobaldo “[…] só esboça atos não cumpridos, ordena sem fazer ele próprio e, afinal, apenas presencia” (CANDIDO, 2004, p. 118). No combate no arraial do Paredão, Riobaldo lança tiros do alto do sobrado, mas priva-se da batalha em que Hermógenes e Diadorim se matam. Com o pacto, “agora é o mundo que vem a Riobaldo.” (CANDIDO, 2004, p. 118).

Maria Mutema — nos crimes que comete — é a representação do mal puro, não há motivação. Riobaldo — ao iniciar-se na peleia jagunça — não é conduzido pelo mal puro, pois a carreira como jagunço ocorre a contragosto e é resultado de dois acontecimentos: o encontro com o “Menino” no porto do “de-Janeiro” (ROSA, 1970, p. 81) — ponto de partida — e, anos mais tarde, no reencontro com Menino já homem, passando a integrar-se ao bando de Joca Ramiro. A passagem de Riobaldo a Riobaldo-jagunço associa-se mais à fatalidade: “disponibilidade redunda em dependência” (GALVÃO, 1972, 97). Para ajustar-se à condição de jagunço e poder cumprir o que será sua grande missão — acabar com o inimigo Hermógenes, que, como Maria Mutema, edifica o mal em si — Riobaldo precisa de transfundir em si a essência maligna: o diabo. O pacto com o demo seria a abstração que o levaria à concreção dos atos. Acreditando esposado com o mal, Riobaldo dá materialidade a ele, nivelando-se ao poder e às forças do inimigo.

O protagonista assimila uma entidade sobrenatural para que, como Maria Mutema e Hermógenes, dote-se do “prazer de cão” e, acreditando-se aliado às forças do demo, possa cumprir a ação pleiteada. Como afirma Walter Benjamin (1984, p. 253), “o modo de existência mais autêntico do Mal é o saber, e não a ação”. O pacto — como assimilação do mal — é “[…] a tentativa de certeza dentro da incerteza do viver.” (GALVãO, 1972, p. 121).

Retomando o que discutimos anteriormente, nas condutas humanas difusas sob tensões paradoxais, o jagunço “[…] dá vida às possibilidades atrofiadas do ser, porque o sertão assim exige.” (CANDIDO, 2004, p. 114). Tal como os crimes cometidos por Maria Mutema — iguais em essência e distintos na materialização —, o que diferencia o ser jagunço do não-jagunço é o nível de materialização: o jagunço é aquele que adota uma postura compatível às exigências do sertão. Entretanto, ao encarar os problemas comuns do homem, transcendendo a particularidade do sertão, o jagunço torna visível a conduta humana — ambígua e lábil —, passando a representar o próprio homem.

Segundo Antonio Candido (2000, p. 131), a ascensão de Riobaldo na ordem jagunça, inicialmente Tatarana e depois — quando chefe — cognominado Urutu Branco, está associada à aquisição da “própria capacidade” de comando simbolizada pelo pacto com o diabo. Com o abstrato pacto na encruzilhada das Veredas Mortas, Riobaldo dá concretude à missão jagunça. Cabe lembrar que Antonio Candido (2000, p. 131) reporta-se em sua análise aos romances de cavalaria, como mencionamos, configurando Riobaldo como o herói paladino e o pacto como “rito iniciatório”.

Quando moribundo, Medeiro Vaz — chefe do bando após o assassínio de Joca Ramiro por Hermógenes — aponta Riobaldo como sucessor no comando jagunço; o protagonista não aceita a missão por saber que não possuía requisitos básicos para gerir o bando: “Aprovavam. Me queriam governando. Assim estremeci por interno, me gelei de não poder palavra. Eu não queria, não queria. Aquilo revi muito por cima de minhas capacidades.” (ROSA, 1970, p. 57).

“No bando que ocupa o vértice da narrativa, a sucessão de Joca Ramiro cabe a Medeiro Vaz; morto este, passa brevemente a Marcelino Pampa, e logo a Zé Bebelo, do qual é arrebatado pelo narrador.” (CANDIDO, 2000, 134). Esse arrebatamento do poder por Riobaldo é viabilizado pelo pacto, “vislumbre de simbolismo sacrificial” (CANDIDO, 2000, p. 134). Como aponta Franklin de Oliveira (1970, p. 510): “Riobaldo só foi chefe quando pactário. Quer isto dizer que nas comunidades reificantes o homem só se afirma quando ‘vende’ sua alma.”

O pacto demoníaco em Grande Sertão: Veredas marca movimentos distintos na trama e, consequentemente, na trajetória de Riobaldo no jaguncismo: antes do pacto Riobaldo é um homem cercado de incertezas e divergência com as pessoas que o cercam. Assim, na distinção feita por Franklin de Oliveira (1970, p. 508), “há três Riobaldos: o jagunço, herói problemático; o fáustico, pactário — herói resoluto, mas que se trai a si mesmo; e o místico, herói frustrado, a partir do qual é dada a narrativa.” Se a mudança do primeiro para o segundo Riobaldo é concedida pelo pacto, a mudança do segundo para o terceiro se faz pelo convencimento — ou tentativa de convencimento — da inexistência do pacto. Ao narrar sua história, transformando fatos em palavras, Riobaldo, jagunço aposentado, procura, confessando o suposto pacto — tal como Maria Mutema faz com a confissão na porta da igreja — mover-se em caminho oposto ao que o conduziu às trevas nas Veredas Mortas e se desvencilhar da culpa pela morte de Diadorim. O pacto, como explica Galvão (1972, p. 121), interrompe o fluir da vida — a labilidade que faz, por exemplo, da mandioca mansa, mandioca-brava. Se pudesse se convencer de que o pacto não houve, Riobaldo retomaria o fluxo da vida com menor apreensão.

Antes do pacto, não está totalmente incorporado ao protagonista o sentimento de vingança. Tal como o “porco gordo” (ROSA, 1970, p. 11), “cada dia mais feliz bruto”, que engole “por sua comodidade o mundo todo”, na segunda metade do romance, ao se submeter ao ritual pactário demoníaco, o móvel de Riobaldo passa a ser o mal puro. O que impulsiona Riobaldo, herói resoluto, é o desejo vingança e não a justiça, como no anterior herói problemático. Apelando às forças extraordinárias, a trajetória de Riobaldo é impulsionada pelo ódio concentrado no combate a Hermógenes. Conforme analisa Galvão (1972, p. 132),

[…] embora [Riobaldo] ache justo o motivo da vingança, não tem nisso tanto empenho como Diadorim: ele secunda e apoia Diadorim, mas a empresa não é dele. Só por meio do pacto com o Diabo adquire a certeza de que é necessário acabar com o Hermógenes; e torna-se um só, ou seja, só chefe de jagunços. Para enfrentar um pactário é preciso outro pactário: o Diabo está com o Hermógenes mas também está com Riobaldo.

Cedido ao pacto, Riobaldo — que não possuía obstinação por vingança — incorpora o ódio porfiado de Diadorim por Hermógenes e passa a se mover pelo sentimento de vingança. Nas palavras de Galvão (1972, p. 134), após o pacto, “Riobaldo consegue caminhar em linha reta para o objetivo. Toma a chefia que antes recusara por saber que não possuía requisitos para ela”. Na fala de Leonel (2008, p. 118), “[…] a personagem rosiana faz o pacto porque Hermógenes era pactário e esse seria o modo de não apenas lutar contra ele de igual para igual, mas de vencê-lo. Há em Riobaldo a consciência plena da relação demônio-violência que Hermógenes encarna”. “O intuito do pacto não é nobre nem humanista” (LEONEL, 2008, p. 118) — o que leva a estudiosa, na esteira de Roberto Schwarz, a diferenciar o pacto em Grande Sertão: Veredas daquele de Goethe e de Thomas Mann. Riobaldo “[…] deseja vingança, embora ela seja também um modo de limpar o sertão do erro que Hermógenes e o bando representam” (LEONEL, 2008, p. 118). Convergindo para a fala de Riobaldo: “O mal ou o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que dão.” (ROSA, 1970, p.89).

Um dos mais notórios estudos sobre o pacto em Grande Sertão: Veredas é justamente Grande Sertão e Dr. Faustus (1970), de Roberto Schwarz que aponta, dentro da tradição literária do drama fáustico, traços de convergência entre o sertanejo rosiano e o professor alemão de Thomas Mann no sentido de trazerem à tona, na figura do pactário, prospecções existenciais do homem. Na visão do crítico (SCHWARZ, 1970, p. 387), o pacto no romance de Guimarães Rosa “[…] é a questão de fidelidade” de Riobaldo a Diadorim. Para o ensaísta, Diadorim — “delicado e terrível” (ROSA, 1970, p. 324) — não é só cordura, mesmo que à própria revelia, “[…] é também a máscara do engano, rosto do diabo”. Diadorim não é o diabo, mas a origem dele: Diadorim “[…] é a espetadela do destino que põe Riobaldo fora dos eixos” e que leva Riobaldo a selar o pacto. “Riobaldo aceita o destino de combater Hermógenes, embora não tenha nenhuma vinculação pessoal com a tarefa, e quer deixá-la muitas vezes. Não sente também o desejo ou a vocação do mando, a que chega pelo trato com o demônio.”

Riobaldo se compromete com o demo, pois “[…] está desequilibrado, com vistas nos avessos do homem, por amor de Diadorim.” (SCHWARZ, 1970, p. 387). Como declara o ex-jagunço: “Só o Hermógenes foi que nasceu formado tigre, e assassim. E o ‘Urutu-Branco’? Ah, não me fale. Ah, esse… tristonho levado, que foi — que era um pobre menino do destino…” (ROSA, 1970, p. 16).

Conforme expõe Antonio Candido (2000, p. 131), o amadurecimento de Riobaldo para o comando do bando é gradativo, à medida que assimila a aversão de Diadorim por Hermógenes e o seu desejo de vingança pelo assassínio de Joca Ramiro, adquire “força íntima que permite a tomada de decisões”. O pacto com o diabo confere autoconfiança ao protagonista, supressão do medo e assimilação do ódio. Esses elementos, conjuntamente, garantem a Riobaldo “força íntima” que o torna capaz de ombrear com o poder oponente, Hermógenes “positivo pactário”, e confere a ele poder e virtudes de mando para o cumprimento da tarefa — dar cabo do inimigo.

De fato, a missão se cumpre, “[…] como pactário [é] que Riobaldo, chefiando jagunços, vence o bando de Hermógenes” (CANDIDO, 2004, p. 119). Contudo, “[…] na luta final, Hermógenes e Diadorim matam um ao outro, de forma que aquilo que é ganho de um lado, é perda do outro” (LEONEL, 2008, p. 119); assim retomamos o que propusemos no início desta análise: morte real e morte abstrata, — certo no incerto (GALVÃO, 1972, p. 121). A luta em que Hermógenes e Diadorim se destroem — a imagem do combate sugere um turbilhão remoinhoso, “O diabo na rua, no meio do redemoinho” (ROSA, 1970, p. 11, 319, 450; grifo do autor) — tem como rescaldo, na alma do herói Riobaldo, agora “herói frustrado” (OLIVEIRA, 2001, p. 508) —, nem o mal nem o bem, mas seu “tecido inextrincável” (CANDIDO 2004, p. 112) fiado na trama narrada.

Willi Bolle (2004, p. 141), autor de grandesertão.br, introduz o capítulo que analisa o pacto diabólico em Grande Sertão: Veredas com o título questionador: “O pacto — esoterismo ou lei fundadora?”. Afastando sua interpretação do suposto pacto firmado por Riobaldo da primeira esfera interrogada — “esoterismo” — e considerando insuficientes os estudos “folclóricos” e “existencialistas”, calcados na “tradição beletrística”, o ensaísta (BOLLE, 2004, p 151) analisa o ato de se pactuar como um transigir social, remetendo-se ao contrato social rousseaunianista. A vitória de Riobaldo sobre Hermógenes lhe proporciona vantagens inatingidas pelos demais companheiros do bando. “O problema das diferenças de classe, que Riobaldo chegou a sentir na pele, foi ‘resolvido’ pelo pacto. Assim como o fazendeiro ‘seo’ Habão consegue mobilizar os peões a trabalharem para ele, assim também Riobaldo recruta e sacrifica seus jagunços.”

Caber dizer que Willi Bolle (2004, p. 8-9) interpreta a obra de Guimarães Rosa como um “romance de formação do Brasil” que estrutura as “redes de discursos sobre o país” por meio de “redes temáticas” —, nas quais “[…] o sertão é o mapa alegórico do Brasil; o sistema jagunço, a instituição entre a lei e o crime; o pacto com o Diabo, a alegoria de um falso pacto social; a figura de Diadorim, o desafio para desvendar o dissimulado […]”. é possível, pois, reconhecer, “[…] no texto de Grande Sertão: Veredas, os fragmentos esparsos de uma história criptografada” (2004, p. 148), na qual o pacto é a “representação criptografada da modernização do Brasil”: no episódio do pacto “[…] estão centrados todos os demais acontecimentos do romance. é o Diabo que garante a manutenção da guerra — o estado de exceção, em que são suspensas as leis vigentes e forjadas leis novas pelo mais forte.” (BOLLE, 2004, p. 151).

Desprendendo-se da dimensão que circunscreve a base argumentativa de Willi Bolle (2004), Benedito Nunes, (2009, p. 142) associa o pacto no romance rosiano ao halo mítico e à “sedução diabólica” por Diadorim: a existência do demônio e da natureza do mal se atrela à “flamejante e dúbia paixão pelo amigo Diadorim” (2009, p. 137). Para Nunes (2009, p. 137; grifo do autor), Grande sertão é “[…] espaço mítico onde se desencadeia a luta entre o Bem e o Mal, inseparável das marchas e contramarchas do amor, recebe um nome definitivo: travessia“: “Para Guimarães Rosa, não há, de um lado, o mundo, e, de outro, que o homem que o atravessa. Além de viajante, o homem é a viagem — objeto e sujeito da travessia, em cujo processo o mundo se faz.” (NUNES, 2009, p. 172).

“Nonada. O diabo não há! é o que eu digo se for… Existe é homem humano. Travessia” (ROSA, 1970, p. 460). Essas palavras encerram o discurso narrativo de Grande Sertão: Veredas. Todavia, a substituição da palavra fim pelo símbolo do infinito mostra que a travessia de Riobaldo transcende o itinerário de jagunço no sertão: é o próprio movimento da vida — cíclico e infinito. O pacto faústico em plena região do Urucuia é elo de transcendência de Riobaldo na travessia de Grande sertão: transporta o jagunço de molde histórico e social — ponto de partida — para o além-documento. “Nessa água que não pára, de longas beiras” (ROSA, 1962, p. 37), o balouçar das reflexões metafísicas de Riobaldo o faz imergir por “[…] um outro rio secreto de coisas fundas, acompanhando as andanças do herói, rio que revém ao seu espírito e aflora à vista do leitor” (ARRIGUCCI JúNIOR, 19994, p. 9): “rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.” (ROSA, 1962, p. 37).

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