As representações das personagens femininas em O Fantástico Mistério de Feiurinha: uma análise revisionista

Lívia Maria de Oliveira

RESUMO: Esse artigo tem por objetivo apresentar parte dos resultados finais obtidos através da realização da iniciação científica intitulada “As representações das personagens femininas em O Fantástico Mistério de Feiurinha: uma análise revisionista”, sob a orientação da Professora Doutora Maria Cristina Martins. A partir de uma perspectiva revisionista, o presente artigo possui como objeto de estudo a obra infantil O Fantástico Mistério de Feiurinha, de Pedro Bandeira. A proposta de revisão desse autor advém da retomada dos contos de fadas a partir do consagrado final “viveram felizes para sempre”, de forma a introduzir uma nova personagem: Feiurinha. Dessa forma, as questões destacadas por nós, nesta pesquisa, dizem respeito aos comportamentos e costumes, bem como aos atributos físicos, à posição e à representação das personagens femininas dos contos de fadas nesta releitura. Tais análises objetivam a identificação, nessa releitura contemporânea, dos níveis de revisionismo ficcional propostos por Maria Cristina Martins que abrangem o revisionismo questionador, o revisionismo transgressor/subversivo e o revisionismo reconstrutivo.

PALAVRAS-CHAVE: Contos de fadas. Revisionismo. O Fantástico Mistério de Feiurinha.

ABSTRACT: This article aims to present the final results obtained through the completion of undergraduate research, entitled “As representações das personagens femininas em O Fantástico Mistério de Feiurinha: uma análise revisionista” under the supervision of Professor Maria Cristina Martins. From the revisionist perspective, this research aims at studying the children’s book O Fantástico Mistério de Feiurinha, by Pedro Bandeira. The proposed revision of the author comes from the revival of fairy tales from the declared ending “happily ever after” in order to introduce a new character: Feiurinha. This way, the issues highlighted by us in this research concern about the behavior and customs, as well as physical attributes, the position and representation of the female characters of fairy tales in this rereading. Such analysis aimed at identifying, in this contemporary rereading, levels of fictional revisionism proposed by Maria Cristina Martins: the questioning revisionism, the transgressive/subversive revisionism and the reconstructive revisionism.

KEYWORDS: Fairy tales. Revisionism. O Fantástico Mistério de Feiurinha.

 

1. Os contos de fadas e a perspectiva revisionista

Desde tempos imemoráveis, as histórias que transitam entre gerações, seja oralmente ou em suporte papel, tem contribuído para um dos papéis fundamentais que a literatura desempenha: alimentar e revigorar a fabulação advinda dos seres humanos no início, meio ou final de suas vidas. Um, dentre tantos tipos de história, se destaca devido ao seu inegável valor de memória: os contos de fadas. Quanto ao seu valor de memória, Nelly Novaes Coelho afirma que

não há como negar que estamos vivendo um momento propício à volta do maravilhoso […] em cuja esfera o homem tenta reencontrar o sentido último da vida e responder à pergunta-chave de sua existência: Quem sou eu? Por que estou aqui? Para onde vou? É no sentido dessa inquietação existencial que vemos o atual fascínio pela redescoberta dos tempos inaugurais/míticos, nos quais a aventura humana teria começado. (COELHO, 2008, p. 21-22)

Por serem considerados a inauguração da aventura humana, cujas narrativas são fontes de pesquisa em diversas áreas como a antropologia, a história, a literatura, a psicologia, a psiquiatria, entre outros,

os contos de fadas fazem parte desses livros eternos que os séculos não conseguem destruir e que, a cada geração, são redescobertos e voltam a encantar leitores ou ouvintes de todas as idades (COELHO, 2008, p. 27)

Essa resistência ao tempo somente encontra seu valor na afirmação de que “o onírico, o fantástico, o imaginário deixaram de ser vistos como pura fantasia, para serem pressentidos como portas que abrem para verdades humanas ocultas.” (COELHO, 2008, p. 23, grifo da autora). Por isso, “os contos de fadas, as lendas, os mitos, entre outros, […] vem sendo redescobertos como autênticas fontes de conhecimento do homem e de seu lugar no mundo.” (COELHO, 2008, p. 23).

Os contos de fadas tiveram início como tradição oral, sendo narrados pelos camponeses, a fim de entreterem as pessoas que faziam parte de sua comunidade e que se reuniam para escutar narrativas, como forma de lazer, mas também como fonte de aprendizagem, a partir dos ensinamentos de, em sua grande maioria, comportamentos sociais contidos nessas histórias orais. Essas narrativas eram contadas por adultos para outros adultos e até mesmo crianças, que acompanhavam seus pais nestes momentos de lazer. Uma vez consideradas como fonte de entretenimento e de ensinamentos, era comum, no final das narrativas, haver morais explícitas.

No decorrer do tempo, a partir da necessidade de serem construídos registros dessas narrativas orais, o francês Charles Perrault inicia um trabalho de materialidade dessas práticas orais, seguido, décadas depois, pelos irmãos Grimm, sendo que cada um atribuiu, em suas narrativas, as novas condições de produção de sua época, atreladas às questões sociais e ideológicas vigentes.

Partindo desse viés da materialidade das práticas orais, pensemos a questão dos escritores. Outro destaque, em relação ao gênero contos de fadas, é que mais da metade dos autores de fábulas referentes a esse gênero literário não era homens, mas sim mulheres. Contudo, o que ficou marcado historicamente nos contos de fadas é seu caráter estritamente patriarcal, perpassado pelo discurso masculino.

Esse silenciamento das mulheres ocorreu não somente entre aquelas que produziam as histórias, mas também durante o processo de produção literária, no qual era comum que as falas atribuídas às personagens femininas fossem revistas e retiradas das narrativas. Esse silenciamento sujeitado às personagens e às escritoras femininas caracteriza um reflexo da sociedade alemã da época, como observado das versões dos irmãos Grimm e evidenciado por Ruth B. Bottigheimer, em seu texto “Silenced Women in the Grimms’ Tales: The ‘Fit’ between Fairy Tales and Society in Their Historical Context”, de 1986.

Dessa forma, é recorrente, no senso comum, referenciar a criação dos clássicos contos de fadas a escritores como Charles Perrault (1628-1703), Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859), Hans Christian Andersen (1805-1875), entre outros, não nos esquecendo, é claro, de variáveis desses clássicos como apresentados por Walt Disney, em suas incontáveis releituras cinematográficas.

Tomando por base que, em sua grande maioria, tais contos possuem como foco principal retratar histórias de superação, subserviência, merecimento ou exemplos sociais a serem seguidos de protagonistas femininas, juntamente às questões sociais às quais estavam inseridas, – dependendo, é claro, do ponto de vista que lançamos às narrativas -, é significativo, portanto, pensar que a literatura então construída – e, como não poderia deixar de ser, independentemente de seu tempo ou espaço -, está situada em um lugar social que a influencia, isto é, através da literatura nos é permitido uma visão sistêmico-social da mesma. Considerando-se tal questão da vinculação entre as condições de produção literária e a estrutura social, evidencia-se, em meio aos séculos de Perrault, irmãos Grimm, Andersen, respectivamente XVII, XVIII e XIX, o caráter típico do discurso patriarcal, já evidenciado como característica marcante para o destaque dessas narrativas clássicas.

Na França do século XVII, Charles Perrault escreve Contos da Mãe Gansa, precisamente em 1697, reunindo as seguintes histórias provenientes da memória popular: A Bela Adormecida no Bosque; Chapeuzinho Vermelho; O Barba Azul; O Gato de Botas; As Fadas; Cinderela ou A Gata Borralheira; Henrique do Topete e O Pequeno Polegar. Com essas narrativas, Perrault “entrou para a história, não como poeta e intelectual de destaque na corte de Luís XIV, mas como o iniciador da literatura infantil” (COELHO, 2008, p. 81). No entanto, ao se considerar a história, a análise dessas narrativas nos leva, consoante Coelho (2008), à constatação de que seu intuito não era escrever para as crianças.

Seu principal alvo era valorizar o gênio moderno (francês) em relação ao gênio antigo (dos gregos e romanos), então consagrado pela cultura oficial européia como modelo superior. (COELHO, 2008, p. 81)

A fim de concretizar seu objetivo, o escritor francês “se empenhou em resgatar a literatura folclórica francesa, preservada do esquecimento pela memória popular” (COELHO, 2008, p. 82), além de defender os preceitos do feminismo, uma vez que sua sobrinha fazia parte do movimento. Neste momento,

Perrault volta-se inteiramente para essa redescoberta da narrativa popular maravilhosa, com um duplo intuito: provar a equivalência de valores ou de sabedoria entre os antigos greco-latinos e os antigos nacionais, e, com esse material redescoberto, divertir as crianças, principalmente as meninas, orientando sua formação moral. (COELHO, 2008, p. 83).

Já no século XVIII, Jacob e Wilhelm Grimm, a partir de um intuito linguístico, reuniram textos provenientes principalmente de duas mulheres: Katherina Wieckmann e Jeannette Hassenpflug, e

foram descobrindo o fantástico acervo de narrativas maravilhosas, que, selecionadas entre as centenas registradas pela memória do povo, acabaram por formar a coletânea que é hoje conhecida como Literatura Clássica Infantil. Entre os contos mais conhecidos estão: A Bela Adormecida; Branca de Neve e os Sete Anões; Chapeuzinho Vermelho; A Gata Borralheira; O ganso de Ouro; Os Sete Corvos; Os Músicos de Bremem; A Guardadora de Gansos; Joãozinho e Maria; O Pequeno Polegar; As Três Fiandeiras; O Príncipe Sapo e dezenas de outros, que correm o mundo. Publicados avulsamente entre 1812 e 1822, posteriormente foram reunidos no volume Contos de Fadas para Crianças e Adultos (hoje conhecidos como Contos de Grimm). (COELHO, 2008, p. 29)

Os irmãos Grimm reescrevem e adaptam as histórias populares, transformando-as especialmente para o público infantil, ao contrário de Perrault, cujas narrativas não possuíam a característica de serem exclusivamente direcionadas para as crianças, no que diz respeito à totalidade de sua obra literária. Por terem sido influenciados pelo cristianismo, a revisão dos contos proposta pelos alemães consistia, na segunda edição, da retirada da violência e da maldade atestadas contra as crianças.

Inicia-se então o gênero Literatura Infantil que, no século XIX, contaria com as contribuições do dinamarquês Hans Christian Andersen. Segundo Coelho (2008, p. 30), Andersen estava “sintonizado com os ideais românticos de exaltação da sensibilidade, a fé cristã, dos valores populares, dos ideais da fraternidade e da generosidade humana”. Nesse sentido, “os Contos de Andersen, resgatados do folclore nórdico ou inventados, mostram as injustiças que estão na base [d]a sociedade, mas, ao mesmo tempo, oferecem o caminho para neutralizá-las: a fé religiosa.” (COELHO, 2008, p. 31).

Ainda que esses escritores tenham adicionado características de acordo com seus preceitos de ordem social ou religiosa, “isso não implica necessariamente mudanças significativas em relação à ideologia patriarcal subjacente aos textos.” (MARTINS, 2005, p. 10).

Leslee Farish Kaykendal e Brian W. Sturm, em seu artigo “We said feminist fairy tales, not fractured fairy tales! The construction of the feminist fairy tales: female agency over role reversal”, de 2007, traçam algumas características do que vem a ser esse discurso patriarcal. Primeiramente, os autores consideram serem os contos de fadas, atualmente, a primeira exposição das crianças à literatura, mais específica e frequentemente um conto de fadas derivado daqueles clássicos de Perrault e dos Irmãos Grimm.

De acordo com Kaykendal & Sturm (2007), os contos de fadas representam as normas culturais relativas aos processos de socialização da criança, de forma que esta desenvolva seu gênero identitário e seu comportamento. Contudo, tais livros estereotipam este gênero, uma vez que sua representação prima pelos padrões de dominância masculina e subserviência feminina. De maneira simples e objetiva, esse cânone europeu tradicional dos contos de fadas reflete e reproduz os valores de uma sociedade patriarcal, que abordam as mulheres através de características como passivas, fracas, submissas, dependentes e que se autossacrificam, enquanto os homens são poderosos, ativos e dominantes. Tais categorias sociais são extremamente rígidas, de forma que não podem ser subvertidas, uma vez que a mulher se encontra subordinada aos pensamentos masculinos.

Segundo Martha Giudice Narvaz (2005, p. 30, grifo da autora),

o patriarcado não designa o poder do pai, mas dos homens, ou do masculino enquanto categoria social (Goldner, 1985, 1988; Saffioti, 2001). O patriarcado é um modo universal ou, ao menos, predominante (Narvaz e Nardi, no prelo), geográfico e histórico, de relacionamentos, nos quais a política sexual implica o fato de que os homens estabelecem as regras de poder e de controle social (Goldner, 1988; Jones, 1994; Lerner, 1999; Millet, 1970; Pateman, 1993; Urry, 1994). O patriarcado é uma forma de organização social na qual as relações são regidas por dois princípios básicos: 1) as mulheres estão hierarquicamente subordinadas aos homens; e, 2) os jovens estão hierarquicamente subordinados aos homens mais velhos (Millet, 1970).

Como já foi afirmado anteriormente em relação ao discurso patriarcal, a partir da credibilidade entre esse discurso masculino em sua essência e os escritores homens, além do inquestionável valor de memória que os contos de fadas carregam, tais narrativas são famosas até hoje.

Contribuindo com a possibilidade de visão mágica do mundo, ao lermos os contos de fadas encontramos um ambiente propício à consolidação desse fantástico vivido internamente que ainda causa impacto no tempo e espaço atuais, seja a partir de leituras das histórias tradicionais ou do que chamamos releituras. Quando não pelas traduções e adaptações parafrásticas, há ainda a ocorrência de releituras parodísticas, construídas na perspectiva do revisionismo.

Uma vez que compreendemos “a cultura como um processo intertextual, em que cada produção humana dialoga necessariamente com as outras” (PAULINO et al., 1997, p. 13), não poderíamos deixar de considerar o processo revisionista de contos de fadas em geral como um produto da intertextualidade. Paulino afirma que

na esteira de Bakhtin, Julia Kristeva, na França, desenvolve o conceito de intertextualidade. Diz a autora que todo texto é um mosaico de citações, todo texto é uma retomada de outros textos. Tal apropriação pode-se dar desde a simples vinculação a um gênero, até a retomada explícita de um determinado texto. (PAULINO, 1997, p. 21-22)

Consoante Paulino et al. (1997), a paráfrase seria a retomada de um texto realizada explicitamente e de forma dialógica, a fim de apropriação ideológica, enquanto que a paródia, por sua vez, reflete um rompimento com o texto que retoma. É por isso que determinamos o processo revisionista como uma releitura parodística, visto que é desejado que um rompimento, de alguma ordem, seja efetuado, seja como transgressão ou subversão.

Dessa forma, estes recursos literários, atrelados ao conceito de intertextualidade, contribuem para que a memória dos contos de fadas permaneça viva até nossos dias, de forma que o texto literário em si receba uma nova carga de vitalidade a cada leitura realizada – vitalidade esta atrelada à condição de recepção e circulação, nas quais o leitor se encontra inserido.

Cabe, nesse momento do texto, explicitarmos nossa referência à perspectiva revisionista. O revisionismo considerado por nós envolve a manipulação de convenções literárias de forma que as histórias possam ser reavaliadas a partir de uma perspectiva até então inusitada. Assim, o processo de revisão seria, como o define Adrienne Rich, “o ato de olhar para trás, de ver com novos olhos, de entrar em um texto antigo a partir de uma nova direção crítica” (RICH, 1985, p. 2045), além de possuir a característica básica de ser “um processo duplo de repetição e diferenciação” (MARTINS, 2005, p. 29).

Ainda nesse sentido, afirma Maria Cristina Martins que

a revisão produz um ato duplo de reconhecimento e estranhamento, ou seja, remete-nos à história original, porém dela nos distanciando, desnaturalizando as pretensões míticas das fontes, permitindo, assim, que subtextos silenciados ou emudecidos ganhem visibilidade” (MARTINS, 2005, p. 30),

e também ganhem voz e vez nas interpretações que surgem a partir dessa visibilidade. Se, ao retomar o texto original, o processo revisionista prima por um novo olhar, é preciso considerar, então, que esse novo olhar alterará “sensivelmente as mensagens subliminares cristalizadas pela tradição” (MARTINS, 2005, p. 37), de forma que essa possibilidade de novos olhares esteja atrelada às condições de produção, recepção e circulação, o que, por sua vez, acarreta à literatura um sentido consoante às manifestações sócio-históricas. Acordado a isso, Martins afirma que

esse processo de exposição dos artifícios dos contos de fadas tradicionais emerge no cenário da literatura e promove mais do que a mera alteração de nossa visão original dessas narrativas, uma vez que as releituras funcionam como um teste ideológico dirigido às interpretações convencionais cristalizadas pela tradição. (MARTINS, 2005, p. 39)

Essa nova direção crítica requisitada pelo processo revisionista, vinculada ao questionamento ideológico, pode ser vista como o momento de reaparição, atuação e questionamento das personagens protagonistas femininas quanto à sua condição inferior, baseada na passividade e submissão, abordada pelas narrativas clássicas. Esse silêncio sujeitado a essas personagens é derivado da representação das mulheres submissas e subservientes dentro da perspectiva patriarcal.

A exigência de uma crítica feminista se consolida, a fim de que seja confrontado o papel que à personagem feminina dos contos de fadas foi atribuído durante tantos anos. Afinal, como dito por Adrienne Rich, e salientado por nós, a “re-visão” compreende “mais do que um capítulo na história cultural: é um ato de sobrevivência” para todas essas mulheres silenciadas no passado (RICH, 1985, p. 2045). Nesse sentido,

o processo revisionista dos contos de fadas move-se exatamente no sentido de expor a questionamento significados cristalizados dos contos de fadas, a fim de minar o contexto discursivo dessas histórias e de provocar rupturas para que as mulheres possam, por exemplo, ganhar voz nos contextos em que, até então, estavam emudecidas. Essa é a chance do surgimento de uma outra história que conte tanto o que foi antes apagado, quanto o que sequer se ousava insinuar. Portanto, a tarefa de revisão, quando assim conduzida, é, em si, um ato político de rompimento, de transgressão e subversão da ordem patriarcal estabelecida nos textos tradicionais. Isso possibilita a emersão de outros significados que, de algum modo, possam contribuir para uma mudança efetiva tanto das práticas sociais vigentes quanto dos modelos de comportamento internalizados, muitas vezes responsáveis pela opressão e diminuição intelectual das mulheres. (MARTINS, 2005, p. 41)

Assim, o processo revisionista pode ser visto tanto como uma reivindicação acerca de seus significados cristalizados, quanto como um texto não cabível mais no contexto discursivo de seus leitores na contemporaneidade. Quanto a isso, Bottigheimer afirma que

lugares comuns da cultura, tais como o desejo de silenciar as mulheres, determinam os acontecimentos dos contos de fadas, que como um gênero despojado deve negociar com as realidades sociais, a fim de fazer sentido para os seus leitores ou ouvintes. Sem subtramas e um grande elenco de personagens que podem explorar gradações de significado e nuances de práticas sociais, os contos de fadas e seus enredos alcançam validade em suas próprias culturas, aludindo a crenças generalizadas, mesmo que essas crenças em si são uma ilusão, uma ilusão que prevê a sua própria sobrevivência funcionando como um paradigma para as gerações subsequentes (BOTTIGHEIMER, 1986, p. 119)[1]

Esse silenciamento das personagens femininas nos contos de fadas que revela, entre outras coisas, submissão e subserviência, é posto em questionamento pelo processo revisionista através, principalmente, das escritoras feministas que primam por uma revisão do papel feminino desempenhado pelas protagonistas dos contos de fadas clássicos, cujas bases patriarcais requerem mulheres passivas e reprimidas.

Um dos nossos interesses é, a partir do entendimento do não destaque ou do silenciamento tanto das escritoras quanto, e com maior ênfase, das personagens femininas na época de predomínio do discurso patriarcal, analisar uma obra revisionista contemporânea dos contos de fadas escrita por um homem, com o intuito de identificar o que permanece e o que é modificado no que se refere à representação das personagens femininas. Para tanto, o corpus literário selecionado para essa pesquisa é a obra infantil O Fantástico Mistério de Feiurinha, de Pedro Bandeira, na qual analisaremos as representações das personagens femininas dos contos de fadas clássicos. A partir disso, avaliaremos os níveis de revisionismo alcançado pela história que totaliza uma dentre as duas que compõem a obra.

Segundo Martins (2005, p. 17), “a investigação do universo dos contos de fadas tradicionais tem evidenciado que, nessas histórias, a passividade e o mutismo aparecem muito frequentemente ligados à imagem das mulheres”. Nesse sentido, ao se considerar a beleza um atributo de salvação, pensando as personagens femininas dos contos de fadas, não se torna necessário, então, um papel ativo e intelectual, uma vez que somente sua beleza será o princípio condutor de atitudes e de atividades provenientes dos personagens masculinos que solucionarão a trama e salvarão a personagem feminina de sua condição inferior.

Assim, enquanto os contos de fadas tradicionais evidenciam significados cristalizados, as releituras, a partir de um aspecto carnavalesco, transgridem tais significados, a fim de questionar e até mesmo desmistificar ideologias dominantes, como é o caso do sistema do patriarcado.

Segundo Maria Cristina Martins e Marisa Gama-Khalil,

essas práticas do carnaval estão sedimentadas na literatura assim como o carnavalesco que usa o riso, o grotesco, os diversos tipos de inversão estrutural ou de desordem para destronar ou desmistificar a ideologia dominante, porém sempre dentro de um contexto em que haja a permissão e autorização das instituições dominantes. Na concepção bakhtiniana, o carnaval é visto como a subversão do discurso oficial e a liberação da censura, e está intimamente associada ao riso, à caricatura, à paródia, à comédia, à improvisação e à quebra de hierarquia (GAMA-KHALIL; MARTINS, 2011, p. 71).

Em O Fantástico Mistério de Feiurinha, observa-se que aspectos carnavalescos se fazem presentes nas atitudes das personagens clássicas vinte cinco anos depois do final “felizes para sempre”. Ao apontarem questões que não se encaixam em uma felicidade prometida, o carnaval se faz presente ao desmistificar a ideologia dominante, considerando o novo contexto possibilitado pelo distanciamento temporal evidenciado na obra a todo o momento.

Nesse sentido, essa pesquisa considera, em sua análise, os textos fonte que serviram de inspiração para a criação dessa releitura contemporânea dos contos de fadas tradicionais, de forma a evidenciar o discurso patriarcal que os marca. Por conseguinte, o processo revisionista será considerado como possibilidade de dar voz às personagens femininas que antes se encontravam silenciadas – como reflexo de sua condição em relação a seu gênero -, bem como o conceito de carnaval, uma vez que este contribui para o destronamento de conceitos cristalizados pelas narrativas clássicas.

2. Apresentando O Fantástico Mistério de Feiurinha: uma análise revisionista

Martins afirma que, em se tratando de releituras de contos de fadas,

[…] para abordá-las criticamente não há como desconsiderar as fontes dessas revisões. Com esse reconhecimento dos traços da(s) história(s) original(ais), o esquema intertextual de leitura é ativado, tornando possível a construção de um número considerável de significados para os textos revisionistas (MARTINS, 2005, 28-29).

Assim, consideramos a existência de diversas versões de uma mesma história, como é o caso da variedade de narrativas que abordam a personagem Chapeuzinho Vermelho, e ponderamos para a necessidade de sempre nos voltarmos ao texto fonte das releituras, a fim de que possamos estabelecer, na comparação entre o texto fonte e a releitura, quais aspectos ou situações foram retirados, reestruturados ou totalmente modificados, e o efeito que isso acarreta para a nova leitura e interpretação que são propostas. Afinal, o que foi perpetuado? O que precisou realmente ser revisto em tempo e espaço atuais de revisão?

A obra literária O Fantástico Mistério de Feiurinha é de autoria de Pedro Bandeira, a partir da qual, em 1986, ganhou o Prêmio Jabuti de melhor texto infantil. Tal livro é reflexo de releituras de grandes clássicos, como Cinderela, Branca de Neve, Bela Adormecida, Rapunzel, Chapeuzinho Vermelho, entre outros.

No “Capítulo Zero”, que por sinal é o primeiro capítulo da obra, o narrador-personagem – que, por conseguinte, iremos descobrir se tratar de um escritor que não é acometido por nenhuma ideia para escrever uma história -, a partir de um fluxo de consciência, traz para seu texto a seguinte passagem:

Eu me meti no fim de todas as histórias. Você se lembra, não é? Quase todas as histórias antigas que você leu terminavam dizendo que a princesa casava-se com o príncipe encantado e pronto. Iam viver felizes para sempre e estava acabado. Mas o que significa “viver feliz para sempre”? Significa casar, ter filhos, engordar e reunir a família no domingo pra comer macarronada? Quer dizer que a felicidade é não viver mais nenhuma aventura? Nada mais de anõezinhos, maçãs envenenadas e sapatinhos de cristal? Como é que alguém pode viver feliz sem aventuras? Ah, não pode ser! Não é possível que heróis e heroínas tão sensacionais tenham passado o resto da vida assistindo ao tempo passar feito novela de televisão. É preciso saber o que acontece depois do fim. (BANDEIRA, 1997, p.7-8, grifo do autor).

Assim, com esse desejo de saber o que acontece depois do “viveram felizes para sempre”, uma busca é posta em jogo no intuito de (re)descobrir a história da Feiurinha, com o auxílio das princesas dos reinos dos contos de fadas. Tal abordagem dos contos de fadas clássicos é realizada sob uma nova perspectiva dos acontecimentos pós-fim.

3. Discutindo a transgressão e a perpetuação dos significados dos contos de fadas

Consideremos, em primeira instância, na revisão proposta por Bandeira em relação às personagens femininas dos clássicos contos de fadas, como o discurso patriarcal, tão marcado nestes, é agora abordado. Se direcionarmos nossos olhares para questões básicas de caracterização física e psicológica, dentro do patriarcado, enfatizamos que

nos contos de fadas tradicionais, não é fazendo uso de sua capacidade intelectual e perspicácia que as protagonistas costumam encontrar a solução para seus problemas, mas sim através de outros atributos, como, por exemplo, beleza,trabalho árduo e refreamento da fala” (TATAR, 1987 apud MARTINS, 2005, p. 17, grifo nosso).

Através do destaque dado por nós nessa passagem, consideremos a dualidade proposta por esses elementos evidenciados. Por um lado, a capacidade intelectual e a perspicácia estão fora do patamar de requerimento e desejo que uma mulher pode almejar para sua vida, numa sociedade marcada pelo discurso masculino, visto que são qualidades que os homens detêm, isto é, fazem parte do universo masculino, advindos de qualidades que exigem uma atividade maior do indivíduo, transformando-os em seres ativos quanto às suas decisões, desejos e atividades.

Ao contrário disso, são considerados atributos aceitáveis para as mulheres a beleza, o trabalho árduo e o refreamento da fala. A beleza se encontra aqui como um atributo externo e independente da mulher, uma vez que sua natureza é inata. Por sua vez, o trabalho árduo não é realizado com a consciência de ascensão social ou profissional, como conhecemos em nossa sociedade capitalista atual, pelo contrário, é uma questão imposta para a mulher que deseja a realeza, leiam-se casamento e submissão aos desígnios masculinos. Por fim, há o atributo do refreamento da fala, diretamente relacionado ao discurso patriarcal – tomando discurso em seu sentido mais primário, isto é, de falas e enunciados. Se, em um discurso predominantemente masculino, houver a presença de falas femininas, estas devem estar abaixo das masculinas, uma vez que, através do discurso masculino, se concretizam questões como subordinação da linguagem. Nesse sentido, “a investigação do universo dos contos de fadas tradicionais tem evidenciado que, nessas histórias, a passividade e o mutismo aparecem muito frequentemente ligados à imagem das mulheres.” (MARTINS, 2005, p. 17, grifo nosso).

Somando a essas considerações a característica do processo revisionista de contos de fadas como um produto da intertextualidade, bem como a evidência parodística de muitas revisões, trazemos para a discussão os níveis de revisionismo atestados por Martins (2005). A partir de análise das releituras de Margaret Atwood, A. S. Byatt e Angela Carter, a pesquisadora identificou três níveis de revisionismo que consideraremos nesta pesquisa: “revisionismo questionador, revisionismo transgressor/subversivo e revisionismo reconstrutivo”.

Segundo a autora (2005, p. 215-216), o revisionismo questionador possui a característica de expor ao questionamento ou desestabilizar “aspectos ou significados importantes dos contos de fadas tradicionais sem, no entanto, subverter tão radicalmente as histórias”. Já de um revisionismo transgressor/subversivo, são esperadas

intervenções narrativas que resultam em textos que não só questionam, mas conseguem subverter frontalmente leituras e interpretações tradicionais e significados cristalizados no processo de transmissão dos contos de fadas ao longo dos tempos (MARTINS, 2005, p. 215-216).

E, em relação ao revisionismo reconstrutivo, afirma a autora serem características deste as “instâncias revisionistas que não só questionam e subvertem, mas que também contrapõem propostas alternativas às narrativas tradicionais” (MARTINS, 2005, p. 215-216).

A partir dessas elucidações, e considerando, em primeiro lugar, a análise da abordagem das personagens femininas na releitura de Bandeira, afirmamos que, nesse sentido, ele realiza uma revisão dos contos de fadas tradicionais que transgride parcialmente o discurso patriarcal por estes difundido.

Após vinte e cinco anos de casamento, ao viverem uma nova aventura, as princesas questionam a necessidade da presença dos príncipes em seus momentos atuais, reflexão esta que parte das suas histórias enquanto jovens, isto é, vinte e cinco anos atrás: “príncipe de história de fada não serve para nada. A gente tem que se virar sozinha a história inteira, passar por mil perigos, enquanto eles só aparecem no final para o casamento.” (BANDEIRA, 1997, p. 17).

Ao questionarem a ineficiência de seus príncipes encantados durante as aventuras de cada narrativa, uma vez que o foco dos contos de fadas são as personagens femininas, as princesas tomam a frente e a vez, assumindo, então, um papel ativo na jornada que as espera, decorrente da história de Feiurinha. Esse papel ativo só é possível porque o questionamento da passividade feminina nos contos de fadas tradicionais agora ocorre em um cenário sócio-histórico de ascensão aos direitos por tanto tempo negados às mulheres.

Na releitura, além desse papel ativo das personagens femininas, estas passam a descrever seus maridos não mais com as feições perfeitas e extremamente estereotipadas como as das narrativas tradicionais. A partir de afirmações como

[…] [Dona Branca Encantado] – E a sua história, então? Quer mau gosto maior do que o Príncipe ficar experimentando o sapatinho de cristal no chulé de todas as mulheres do reino? Se ele estava tão apaixonado, não era capaz de reconhecê-la simplesmente olhando pra sua cara?
– É que o Príncipe é meio míope, coitadinho… – defendeu-se Dona Cinderela. (BANDEIRA, 1997, p. 21-22)

[Dona Rapunzel Encantado] – Pois é por causa dele que eu estou com essa dor de cabeça. Toda noite ele esquece a chave do castelo e cisma de entrar em casa subindo pelas minhas tranças. Não aguento mais de dor de cabeça! O Príncipe já não é tão magrinho como antigamente… (BANDEIRA, 1997, p. 23)

[Dona Bela-Fera Encantado] – É que eu não consegui dormir a noite toda. Ontem foi noite de lua cheia… […] Nessas ocasiões, meu marido passa a noite toda uivando pra lua. Vocês sabem, não é? Ele tem saudades do seu tempo de Fera… (BANDEIRA, 1997, p. 28)

as princesas revelam os defeitos de seus príncipes nunca antes revelados nos contos de fadas e, dessa forma, tais afirmações contribuem para o questionamento da imutabilidade dos significados transmitidos por essas narrativas clássicas, no caso a felicidade que se pretende quando declarado um final feliz a todas com seus príncipes encantados dotados de magia e heroísmo. A credibilidade dada a esse questionamento provém do fato advir de falas das próprias personagens femininas que, desnudadas do encantamento e da devoção – características dos textos fonte -, conseguem discernir entre essas duas características e a realidade da convivência.

Outra transgressão a essa relacionada é a de que, transcorridos os vinte e cinco anos, as princesas, ao se envolverem em uma nova aventura, dependem única e exclusivamente de sua capacidade intelectual e perspicácia, ainda que seja para encontrarem terceiros para realizar suas ideias primárias.

Nas revisões, mulheres que transgridem, subvertem, e desobedecem normas não são apresentadas como anormalidades, mas como figuras femininas criativas, ousadas. Portanto, diferentemente do que ocorre nos contos tradicionais, nos textos revisionistas observa-se uma ênfase especial aos aspectos positivos desses gestos que não respeitam fronteiras de gênero, definidas no modelo patriarcal, ainda que, em alguns casos, isso não seja muito bem aceito ou compreendido pela sociedade na qual as personagens se encontram inseridas. (MARTINS, 2005, p. 19)

Nesse sentido, “as reescrituras só podem ser consideradas politicamente subversivas se conseguem ‘expor ou perturbar os paradigmas de autoridade inerentes nos textos que apropriam'” (WALKER, 1995, p. 6-7, apud MARTINS, 2005, p. 39). Este paradigma de autoridades exposto é questionado justamente quando quem assume o papel ativo da aventura são as personagens femininas, colocando os príncipes em papéis coadjuvantes, diferentes dos papéis que assumem em narrativas clássicas. Nem sequer, vinte e cinco anos depois do “viveram felizes para sempre”, são personagens ativos nessa nova aventura.

Contudo, mesmo que as narrativas deem voz às personagens femininas – dando a essas um papel ativo em suas individualidades -, todas elas possuem, pelo menos, uma característica em comum: a maternidade. Ao se encontrarem vinte e cinco anos após o “viveram felizes para sempre”, todas as personagens femininas protagonistas dos contos de fadas tradicionais estão grávidas: Branca de Neve, Bela Adormecida, Cinderela, Rapunzel, entre outras, menos Chapeuzinho Vermelho. A condição para a gravidez é o casamento, característica dos pressupostos religiosos do cristianismo, evidenciados em algumas narrativas clássicas, sobretudo pelos irmãos Grimm.

Segundo Martins,

nas culturas patriarcais, as mulheres são reduzidas à função materna, ou seja, à reprodução. […] [Assim] ao rejeitarem a função materna, estariam também sendo rejeitadas as mulheres, a maternidade e a feminilidade. (MARTINS, 2005, p. 47)

Nesse sentido, ao negar a possibilidade de Chapeuzinho Vermelho estar grávida, Bandeira assume um posicionamento favorável ao discurso no qual o casamento é pressuposto da função materna desempenhada pelas mulheres, além de perpetuar o ciclo, trazendo todas as princesas para o desempenho desta função neste momento de suas vidas. O enquadramento a que as princesas estão confinadas é tão relevante que todas estão grávidas ao mesmo tempo.

Portanto, é através dessas constatações que afirmamos anteriormente que a transgressão de Bandeira quanto à apresentação das personagens femininas dos contos de fadas clássicos se dá parcialmente.

Desafiar a feminilidade passiva e confrontar noções distorcidas de papéis sexuais e da sexualidade feminina, ratificadas pelos contos de fadas, dentro do processo de revisão, implica, sem dúvida, transgressão, compreendida como “qualquer ato de comportamento expressivo que inverta, contradiga, revogue ou apresente de algum modo uma alternativa para os códigos, valores e normas culturais comumente validados, sejam eles linguísticos, literários ou artísticos, religiosos, sociais e políticos” (BABCOCK, 1978, p. 17, apud MARTINS, 2005, p. 46)

É importante considerar que Pedro Bandeira não muda as histórias tradicionais da forma como as conhecemos. No entanto, o autor começa sua história escrevendo além do final dos clássicos, de forma a apresentar uma alternativa possível do que teria acontecido com essas princesas e suas vidas após o consagrado final feliz e o fechamento do livro, pelo leitor.

Chama nossa atenção o fato de Bandeira trazer as personagens clássicas dos contos de fadas para o contexto da contemporaneidade, informando ao seu leitor que o mesmo as encontra no exato momento em que todas elas, exceto Chapeuzinho, estão comemorando vinte e cinco anos de casamento, ou seja, as famosas Bodas de Prata, que constituem um evento bastante comum na sociedade.

4. Conclusão

Não foi sem razão que Coelho afirmou que “estamos vivendo um momento propício à volta do maravilhoso” (2008, p. 21). O mito por muitas vezes foi objeto de fascínio para os seres humanos, uma vez que, permeado por mistério, trazia e traz, sob forma alegórica, os fenômenos da vida humana, fazendo parte da cultura dos povos.

Tal forma alegórica diz respeito à narrativa que contém um sentido figurado, isto é, simbólico, e sobre isso Carl Gustavo Jung (apud N. SILVEIRA, 1981, p. 119) comenta que “os contos de fadas encenam os dramas da alma com materiais pertencentes em comum a todos os homens”. Ainda segundo o psicanalista, “os contos de fadas […] são representações de acontecimentos psíquicos” e como tal, possibilitam o surgimento de arquétipos que, em sua essência, traduzem, nos contos, vivências típicas humanas através de temáticas puras que estão sempre reaparecendo em lugares e tempos distintos.

Contudo, consideramos que, apesar desse reaparecimento evidente e puro dos temas dos contos de fadas, quando retomados sob a perspectiva revisionista, tais temáticas podem ser apresentadas a partir de um viés de questionamento, transgressão/subversão, ou reconstrução, os quais são considerados por Martins (2005) na identificação dos níveis de revisionismo, já apresentados e que serão retomados posteriormente.

Entre esses retornos, podemos citar as releituras advindas do movimento feminista, bem como as obras cinematográficas que alcançaram grande sucesso entre públicos de todas as idades, como a sequência de quatro filmes de Shrek, Deu a louca na Chapeuzinho e Cinderela, entre outros, os quais são filmes contemporâneos que obtêm níveis revisionistas diversos.

Após a análise da trama como um todo, nosso propósito agora é avaliar o nível de revisionismo alcançado pela história criada por Bandeira e qual a extensão desse revisionismo na narrativa.

A nossa tentativa, ao analisar a obra infantil O Fantástico Mistério de Feiurinha, foi a de identificar, na história voltada para a apresentação das princesas vinte e cinco anos após o declarado final feliz, valores ou comportamentos que transgridem os padrões oferecidos pelos contos de fadas tradicionais ou que mantêm a essência primária dos textos fonte num processo de perpetuação de tais valores e comportamentos.

O intuito de análise desses valores e desses comportamentos revistos dos textos fonte de forma a serem perpetuados ou de transgredirem os significados cristalizados pelas narrativas se justifica devido a um de nossos objetivos de identificação dos níveis revisionistas alcançados com essa obra.

Quando analisamos a revisão proposta por Bandeira na apresentação das histórias das protagonistas femininas dos contos de fadas clássicos, percebemos que a postura que estas mantêm frente às situações a elas impostas é diferente das atitudes esperadas pelas princesas delineadas por Perrault ou Grimm, para não citar outros. Interessa-nos identificar, então, o nível de revisionismo alcançado com as mudanças efetivadas nessa história contemporânea.

Durante a análise foram observados padrões de matrimônio e de gravidez, de beleza feminina e comportamentos (reações) frente a uma situação inusitada. A partir desses aspectos, podemos constatar que os padrões de matrimônio são aspectos inesperados para a releitura de textos fonte, uma vez que a maioria das histórias clássicas termina com “e foram felizes para sempre”, deixando aos leitores possibilidades inúmeras de continuarem a narrativa em suas interpretações. A leitura além do desfecho tradicional das narrativas clássicas proposta por Bandeira com a apresentação do casamento depois de celebrado é uma inovação, uma vez que introduz uma nova história e novas situações de personagens já consagradas pela literatura, oferecendo uma visão das experiências pós-matrimônio que não constam nos textos fonte.

Neste matrimônio, encontramos questões semelhantes a todas as princesas que tinham um príncipe em suas histórias. Todas essas que possuíam uma possibilidade de se juntarem à figura masculina já o realizaram. Contudo, isso não foi possível para aquela protagonista feminina que não se relacionou com nenhum príncipe durante sua narrativa tradicional, no caso, Chapeuzinho Vermelho. Neste quesito de análise, acreditamos que Bandeira somente deu continuidade à possibilidade visível das histórias dessas protagonistas, de acordo com o preceito de matrimônio estabelecido pelo discurso patriarcal.

Além da visão do casamento que já dura vinte e cinco anos, outra abordagem trazida por Bandeira, que necessitou primeiramente a consagração do matrimônio, é a gravidez. As protagonistas que foram submetidas a um final feliz precisavam construir uma família com seus príncipes encantados, uma vez que dar à luz crianças era uma forma de serem preenchidos alguns dos acordos matrimoniais regidos pelo patriarcado.

Esses dois aspectos, pós-matrimônio e gravidez, não representam características de uma revisão no intuito de transgredir valores padrões dos contos de fadas, uma vez que são possibilidades de ocorrência de acordo com os preceitos de um discurso masculino que vê a mulher como aquela que precisa ser resgatada de um perigo e alçada à realeza para completar a função do homem, sem jamais discutir ou questionar seu papel familiar ou social, mas de perpetuar tais valores padrões das narrativas clássicas.

Contudo, atentemos para um questionamento realizado por Bandeira quanto à felicidade das princesas após a consagração do casamento. Já no início de seu texto, como já exposto neste trabalho, Bandeira questiona o que é ser “feliz para sempre”:

Quase todas as histórias antigas que você leu terminavam dizendo que a princesa casava-se com o príncipe encantado e pronto. Iam viver felizes para sempre e estava acabado. Mas o que significa “viver feliz para sempre”? Significa casar, ter filhos, engordar e reunir a família no domingo pra comer macarronada? Quer dizer que a felicidade é não viver mais nenhuma aventura? (BANDEIRA, 1997, p. 7-8, grifo nosso)

Ao longo da narrativa, constatamos que as suposições por ele realizadas vão se concretizando no intuito de revelar o que acontece com as princesas após o casamento com o príncipe encantado e o desejo de felicidade eterna. No entanto, como ele próprio afirma, esses acontecimentos para a vida de uma princesa, que passou por tantos problemas e fantasias até o momento de seu casamento, não são aventuras de fato. Essa rotina de vida retira das princesas a aventura e a fantasia que as caracterizam.

Além dessa rotina, podemos constatar que nas estruturas das narrativas há uma regularidade nas ações das princesas e dos príncipes, bem como das situações por eles vividas e das conclusões. Bandeira, ao partir de um elemento visível nas conclusões dos contos de fadas, “e foram felizes para sempre”, apresenta princesas já mulheres formadas, com responsabilidades sociais e familiares, seguindo uma mesma regularidade: a comemoração de bodas de prata pelos vinte e cinco anos de casamento; a continuação em um mesmo casamento, sem a cogitação do divórcio, por exemplo, visto cada princesa estar “feliz” como anteriormente declarado, fazendo com que a magia dos contos de fadas e do casamento se consagrasse em uma união duradoura; e a gravidez, somente possível dentro do matrimônio.

Por fim, em relação aos comportamentos (reações) frente a uma situação inusitada, detectamos um revisionismo que se enquadra no nível transgressor/subversivo, pois as protagonistas dos contos de fadas tradicionais conseguiram, na apresentação temporal de vinte e cinco anos depois do declarado final feliz, subverter o silêncio a que estavam submetidas durante sua representação nos textos fonte. Ao invés de nos depararmos com personagens, como já analisado, cujas características são “beleza, trabalho árduo e refreamento da fala” (TATAR, 1987, p. 116 apud MARTINS, 2005, p. 17), nos são apresentadas, através dessa revisão, personagens femininas que desejam viver aventuras nas quais elas possam representar os papéis ativos na busca, na descoberta e na solução dos problemas. Ao questionarem os papéis de seus príncipes e a aventura que lhes falta após o matrimônio, ativam a “capacidade intelectual e perspicácia” (TATAR, 1987, p. 116 apud MARTINS, 2005, p. 17) que a elas foram negadas nas histórias tradicionais, no intuito de refrearem suas falas.

Essa noção de princesas mais ativas, que buscam soluções para determinado problema, condiz, novamente, com o conceito de carnavalização de Bakhtin, uma vez que essa nova postura das princesas inverte ou destrona a noção de que somente os homens podem solucionar qualquer tipo de problema. No entanto, essa inversão ou destronamento é observado até certo ponto, pois as princesas conseguem apenas encontrar a solução para determinados aspectos da história de Feiurinha, deixando para o narrador-personagem a função de concluir a história ou, no caso, reconstruir, a partir do suporte papel, a história dessa nova princesa.

Nesse sentido, observamos que a história como um todo não nos permite afirmar que seja um texto de caráter marcadamente revisionista. Há aspectos revisionistas dentro do texto de Bandeira, como também há aspectos que mantêm a essência primária dos textos fonte num processo de perpetuação dos valores e dos comportamentos trazidos por estes, uma vez que as próprias princesas, apresentadas sob um viés ora questionador, ora transgressivo/subversivo, desejam construir uma história para Feiurinha que possua um final feliz, como os delas. No entanto, o que se percebe é que o desfecho da história de Feiurinha é deixado em aberto e não determina a felicidade eterna, apenas acentuando que “Feiurunha casou-se com o Príncipe Encantado e eles viveram…” (BANDEIRA, 1997, p. 74).

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

BANDEIRA, Pedro. O fantástico mistério de Feiurinha. 20. Ed. São Paulo: FTD, 1997.

BOTTIGHEIMER, Ruth B. Silenced Women in the Grimms’ Tales: The “Fit” Between Fairy Tales and Society in Their Historical Context. In: Bottigheimer, Ruth B.Fairy Tales and Society: Illusion, Allusion and Paradigm. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. 1986.

COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: símbolos – mitos – arquétipos. 1. ed. – São Paulo: Paulinas, 2008.

GAMA-KHALIL, M. M.; MARTINS, M. C. Outros olhares sobre os estudos literários: contribuições bakhtinianas. In: TOLLENDAL, E. J.; AZEVEDO, L.. (Org.).Relendo a teoria. 1ed. Uberlândia – EDUFU, 2011, v. 3, p. 49-74.

KUYKENDAL, Leslee Farish; STURM, Brian W. We said feminist fairy tales, not fractured fairy tales! The Construction of the Feminist Fairy Tale: Female Agency over Role Reversal. In: Children and Libraries. Winter, 2007. Disponível em <http://www.csun.edu/~bashforth/305_PDF/305_FinalProj/305FP_Gender/WeSaidFemiistNotFracturedFairyTales_Winter07.pdf>. Acesso em: 29 Jan. 2011.

MARTINS, Maria Cristina. “E foram(?) felizes para sempre…” : (Sub)Versões do feminino em Margaret Atwood, A. S. Byatt e Angela Carter. 2005. 295 f. Tese (Doutorado em Letras: Estudos Literários) Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005.

NARVAZ, Martha Giudice. Submissão e resistÆncia: explodindo o discurso patriarcal da dominação feminina. (Dissertação de Mestrado). 2005.

PAULINO, Graça; WALTY, Ivete; CURY, Maria Zilda. Intertextualidades: Teoria e Prática. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Lê, 1997.

RICH, Adrienne. When We Dead Awaken: Writing as Re-vision. In: GILBERT, Sandra M.; GUBAR, Susan (Ed). The Norton Anthology of Literature by Women: The Tradition in English. New York: W.W. Norton, 1985. p. 2044-56.

SILVEIRA, Nise da. Vida e obra de Jung. 9. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

WARNER, Marina. Da Fera à Loira: sobre contos de fadas e seus narradores. Tradução de Thelma Médici Nóbrega. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

 

[1] Texto original: Commonplaces of culture such as the desire for silence in women determine the events of fairy tales, which as a stripped-down genre must negotiate with social realities in order to make sense to their readers or hearers. Without subplots and a large cast of characters who can explore gradations of meaning and nuances of social practices, fairy tales and their plots achieve validity in their own cultures by alluding to generally held beliefs, even if these beliefs themselves are an illusion, an illusion which provides for its own survival by functioning as a paradigm for subsequent generations (BOTTIGHEIMER, 1986, p. 119).