A querela dos dois lagartos ou Não existe pequena querela, de Amadou Hampâté Bâ

Mayara Matsu Marinho

Nos tempos em que as criaturas da terra se compreendiam ainda entre elas, um chefe de família abastada vivia em um pequeno vilarejo, no seio de um país fértil. Sua velha mãe ainda estava perto dele.

No vasto recinto familiar cercado pelas cabanas dos diferentes membros da família, vários animais, dentre os quais um cachorro, um galo, um bode, um boi e um cavalo, deambulavam em liberdade.

Um dia, em um vilarejo situado a cerca de dois dias de caminhada, um velho, reputado pela sua sabedoria, veio a morrer. O chefe de família foi obrigado a se ausentar para ir ao seu funeral, em companhia de alguns outros habitantes do vilarejo.

“Eu me sinto muito cansada, disse-lhe sua velha mamãe. Volte o mais rápido possível.

– Fique tranquila, mãe, eu não tardarei. Em cinco ou seis dias no máximo, estarei de volta”.

Sua mãe lhe deu benção para a viagem e então foi se deitar em sua cabana.

No momento da partida, o chefe de família chamou o cão:

“Cão! disse. Durante minha ausência você será o guardião da casa. Mantenha-se aqui na entrada do recinto. Vigie tudo que se passa dentro assim como fora, e em nenhum caso deixe seu posto! Se um incidente acontecer no interior, que o galo, o bode, o boi ou o cavalo se ocupem e coloquem ordem se for preciso. Você me entendeu bem?

– Sim, mestre!” disse o cão. E juntando o gesto à fala, ele mexeu o rabo e mostrou sua cabeça para ser acariciada. O mestre lhe bateu gentilmente no crânio e então, reassegurado, partiu para se juntar aos companheiros de estrada.

 

Dois dias após sua partida, em uma manhã bem cedo quando os primeiros raios do sol começavam apenas a dourar o telhado das cabanas, o cão percebeu um barulho estranho que parecia vir da cabana da velha mamãe. Esta, ao abrigo do mosquiteiro, descansava ainda. Uma lâmpada a óleo queimava suavemente ao seu lado.

O galo da casa estava ciscando exatamente na frente da cabana da velha senhora, à procura de alguns grãos de milho caídos do pilão.

“Galo! Galo! chamou o cão.

– O que você quer de mim, cão?

– O que é esse barulho que parece vir da cabana onde descansa a mãe do mestre?

– São dois lagartos que estão se batendo, pendurados no teto da cabana. Já tem um bom tempo que eles disputam o cadáver de uma mosca morta.

– Eu lhe peço, galo, vai pedir a eles que parem sua luta. E se eles não quiserem saber de nada, obrigue-os a se separarem.

– Como, cão! indignou-se o galo, com a crista trêmula. Você me pede a mim, rei do celeiro, encarregado de anunciar a cada manhã a aparição do sol, para ir me ocupar de uma querela de lagartos?

– A mãe de nosso mestre está doente, insistiu o cão. O barulho que os lagartos estão fazendo pode incomodá-la. E também, não existe pequena querela, como não existe pequeno incêndio. Ninguém sabe no que pode resultar…

– Vai então separá-los você mesmo!

– Eu não posso. O mestre me ordenou de não sair deste lugar…

– Então, se vira! Não é negócio meu. Aliás, quem vai se preocupar com uma querela de lagartos!”. E, levantando as longas plumas de sua cauda, o galo recomeçou a ciscar aqui e ali.

 

O bode, barbudo como um patriarca, veio a passar:

“Bode! Bode! chamou o cão.

– O que você quer de mim? disse o bode.

– Você poderia ir separar os dois lagartos que estão se batendo na cabana de nossa dona? Não existe pequena querela…

– Quem você acha que eu sou? berrou o bode. É realmente a mim que você se dirige, eu, o mestre incontestável de toda uma linhagem de bodes, enquanto o próprio galo não quis se ocupar desse negócio? Se essa briga te perturba, por que você mesmo não se ocupa dela?

– Eu recebi ordem do mestre de não deixar a porta durante sua ausência.

– Então, fique na porta, deixe-nos em paz e deixe os lagartos com sua querela! Tudo que pode acontecer a eles é cair e quebrar a cabeça no chão, e vai ser bem feito para eles! Nunca nenhum lagarto prejudicou alguém… Uma querela de lagartos, por favor!”. E, levantando desdenhosamente sua barbicha, o bode se afastou…

 

Durante esse tempo, os dois lagartos continuavam a se emaranhar, a se mordiscar, a se dar patadas e lançar cuspes furiosos. Inquieto, o cão chamou o boi que ruminava tranquilamente em um canto do pátio:

“Boi! Boi!

– O que você quer de mim? mugiu o boi, sem dúvida interrompido em algum sonho agradável.

– Dois lagartos estão lutando na cabana de nossa dona. Você poderia ir separá-los? Nenhuma querela é pequena. Não se sabe no que pode resultar…

– Uma querela de lagartos! gargalhou o boi. Você quer que eu, boi, o mais forte e mais velho dos animais dessa casa, me ocupe de uma querela de lagartos? Mais nenhuma palavra, cão! Ou de uma só vez meus chifres afiados vão te perfurar o ventre!”

 

O cão dobrou suas orelhas e se calou. Os lagartos, cuspindo ainda mais, continuavam a se bater furiosamente.

Vendo passar o cavalo, o cão fez uma última tentativa:

“Cavalo! Cavalo!

– O que foi, cão?

– Você poderia ir separar os dois lagartos que estão se batendo por uma mosca morta na cabana da velha mamãe? Como você sabe, não existe pequena querela…

– Realmente, cão, relinchou o cavalo, você tem uma má opinião sobre mim! Quando o galo, o bode e o boi se recusaram a se ocuparem desse negócio ridículo, você quer que seja eu, o mais nobre dos animais, um puro-sangue consagrado unicamente à corrida, que vá me ocupar? O que você acha que me causa a mim, uma querela de lagartos por uma mosca morta! Vai então você mesmo se ocupar!

– Eu não posso, disse o cão. Eu recebi a ordem de não deixar meu posto.

– Então, fique aí e deixe-nos em paz! Nunca nenhum lagarto atrapalhou ninguém.” E sacudindo a crina, o cavalo se afastou por sua vez.

Desamparado, não sabendo mais o que fazer, o cão se calou. Com as orelhas baixas, o focinho sobre suas patas dianteiras, ele olhava tristemente o pátio onde cada um vagava, passeava ou descansava sem se preocupar com nada.

 

Eis então que nossos dois lagartos, de tanto se contorcerem, se soltam do teto e vêm a cair na lâmpada a óleo. O pavio queimado sai da lâmpada, toca o mosquiteiro, o mosquiteiro pega fogo, e logo a cama está em chamas. A velha mamãe pede socorro… Gritos aumentam de todo o recinto… Correm, libertam a pobre mulher, e de tanto jogar cabaças cheias de água na cama, conseguem apagar o fogo. Infelizmente, a pobre velha está gravemente queimada. Ela respira ainda, mas sua vida está por um fio.

O curandeiro do vilarejo é chamado apressadamente. Ele examina a doente, acena com a cabeça… “É necessário cobrir as queimaduras com sangue de galinha, disse ele. Encontrem uma, eu vou sacrificá-la e pronunciar sobre ela as palavras do ritual. Em seguida, façam um caldo com seus restos e tentem fazer a doente beber.

– Tem exatamente um galo no pátio!” exclama alguém. Precipitam, dão caça ao galo que corre em todo sentido batendo asas e dando cacarejos de protesto. Perda de tempo! Logo um homem o alcança, pega-o pelas patas e leva-o para fora para ser sacrificado.

Quando ele passa na frente do cão, pendurado pelas patas e com a cabeça balançando, com a voz toda rouca de tanto ter gritado, o galo geme:

“Ah, cão! Se somente eu tivesse me ocupado dessa querela de lagartos! Eis que hoje vou deixar minha vida!

– Pois é! diz o cão. Eu bem que te disse, que não existe pequena querela. Se você tivesse me escutado, não estaria aí agora”.

Depois do sacrifício do galo, cobrem as queimaduras da doente com o sangue coletado, e então preparam um bom caldo de galinha. Alguém vai jogar os ossos ao cão. “Pobre galo! diz esse. Se você tivesse aceitado usar sua autoridade para parar essa briga, não me daria hoje seus ossos como refeição…”

Mas antes mesmo de ter podido engolir um gole de caldo, a velha mamãe, muito gravemente atingida, dá seu último suspiro. Enquanto todos se lamentam na casa, um homem vai buscar o cavalo puro-sangue, põe a sela nele e o monta por um jovem moço habituado com as corridas de cavalos. Ele lhe estende um chicote. “Vai rápido! diz. Corra até o vilarejo onde se encontra o chefe de família, anuncie-lhe o falecimento de sua mãe e traga-o imediatamente. Somente ele pode se ocupar do funeral”.

O jovem moço, orgulhoso de montar um puro sangue, pula de um salto em seu dorso, dá uma chicotada e dando um grito, o faz partir como uma flecha. Durante horas ele o faz galopar, galopar, galopar… De tantos gritos, chicotadas, botinadas, ele o pressiona tanto que o pobre cavalo, arfando, a espuma escorrendo das mandíbulas, chega ao vilarejo vizinho no fim da manhã, quando o sol se encontra exatamente acima de seus crânios.

O menino percebe o chefe de família entre os homens reunidos e vai lhe anunciar o drama. Atordoado, este último tem apenas uma ideia em mente: ir para casa sem perder um instante a fim de dar à sua mãe as últimas tarefas que lhe deve. Sem se preocupar em procurar uma montaria mais fresca, ele salta no dorso do puro-sangue ainda coberto de suor, pega o menino na garupa e com grandes chicotadas, lança por sua vez o cavalo ao caminho do vilarejo.

Pobre puro-sangue, que se considerava nobre demais para se ocupar de uma vulgar história de lagartos!… Jamais ainda tinha sido submetido a tal prova! Surrado, pressionado, uma carga dupla em seu dorso, ei-lo forçado a refazer ao grande galope a longa estrada que já tinha percorrido pela manhã com tanta dificuldade.

Coberto de espuma, flancos sangrando, olhos fora de órbita, aproximadamente ao fim da tarde, ele chega enfim em frente ao recinto familiar. O mestre e o menino saltam para a terra e se juntam aos membros da família. Quanto ao pobre cavalo, os pulmões em fogo, cuspindo uma espuma avermelhada, ele dá ainda alguns passos… Aí, coração no fim, ele cai ao lado do cão. Como dizem na África, “seu coração explodiu”.

Antes de expirar, ele encontra ainda a força de dizer em um último sopro:

“Ah, cão! Se somente eu tivesse escutado seu conselho, eu não deixaria minha vida hoje nessa querela de lagartos!

– Pois é, meu amigo! suspira o cão. Eis as tristes consequências de uma ‘pequena querela’!”

Durante esse tempo, o chefe de família depois de se pôr próximo do corpo da mãe, ordena a escavação da tumba. Ora, segundo o costume do vilarejo, antes de enterrar um defunto é necessário primeiro “abrir” ritualmente sua tumba derramando nela sangue de bode. A carne do animal serve em seguida para alimentar os visitantes que vêm apresentar suas condolências.

Imediatamente, dois homens pegam o bode que, sem desconfiar, descansava no pátio. Eles o puxam pelos cornos em direção ao local dos sacrifícios. Passando em frente ao cão, o bode berra tristemente:

“Oh, cão! Como você tinha razão! Se somente eu tivesse me ocupado dessa querela de lagartos, hoje não me sacrificariam!

– Pois é, meu amigo! responde o cão. Se você tivesse se incomodado em parar essa briguinha, hoje você teria a vida salva!”

Uma vez o bode abatido, um velho recolhe seu sangue e vai “abrir” ritualmente a tumba da velha mamãe. Esta é enfim enterrada segundo as regras, com todas as honras, dada sua classe e idade. Assam o resto da carne para alimentar os visitantes e levam ao cão uma boa parte de carne e ossos…

Quarenta dias depois do falecimento, momento em que a alma dos defuntos supostamente se liberta das últimas conexões que a retém ainda no mundo terrestre, pessoas chegam de todos os vilarejos vizinhos para participar da grande cerimônia do “quadragésimo dia”. Para alimentar todo esse mundo, o chefe de família é obrigado a sacrificar o boi. Antes de morrer, este diz ao cão:

“Ah, cão! Se somente eu tivesse aceitado me ocupar dessa querela de lagartos!”

Cheio de piedade, o cão dá um longo suspiro. Mas quando um pouco mais tarde trazem-lhe uma enorme parte de osso e pedaços de carne, ele os devora sem cerimônia…

 

Assim, por causa da batalha dos dois lagartinhos por uma mosca morta, modesta querela de que ninguém quis se ocupar, não somente nosso fieis amigos galo, bode, boi e cavalo deixaram a vida, mas resultou em um incêndio e em uma morte que deixou de luto toda a família… Somente o cão, fiel ao seu dever, saiu indene desse tormento, e até encontrou uma recompensa inesperada…

 

É este conto[1] – às vezes intitulado “Um nada mata tudo” – que serve, na África, para ilustrar o adágio: “Não existe pequena querela, como não existe pequeno incêndio”.

Aqui os velhos ensinam aos jovens: “No momento em que virem uma querela, por menor que seja, intervenham, separem os combatentes e façam tudo para os reconciliarem! Pois o fogo e a querela são as duas únicas coisas que, nesta terra, podem colocar no mundo filhos mais colossais que eles mesmos: um incêndio ou uma guerra”.

Referências

BÂ, Amadou Hampâté. Il n’y a pas de petite querelle. Paris: Éditions Stock, 2000. La querelle des deux lézards ou Il n’y a pas de petite querelle, p. 16-25.

 

[1] Em outubro de 1969, de uma forma bastante resumida, Amadou Hampâté Bâ utilizou esse conto no Conselho executivo da Unesco a propósito do conflito árabe-isralense, para conscientizar cada um sobre os potenciais perigos de tal situação. Ele deixou várias versões desse conto em seus arquivos. É a versão mais completa que é apresentada aqui. (H.H.)