A questão do Amor em Gil Vicente e Schopenhauer

Bruno Felipe Marques Pinheiro

RESUMO: No âmbito da Literatura Portuguesa, o presente artigo tem como intuito investigar a questão do amor na obra teatral de Gil Vicente, tomando como corpus de estudo a peça Auto da Índia, de 1509. Para isso, concentramos nossa análise na personagem Ama, de nome Constança, o que possibilitará abrir um diálogo com o pensamento filosófico de Arthur Schopenhauer, especialmente em sua obra Metafísica do amor, metafísica da morte (2000). Nesse artigo, mostramos que a Ama é fruto da simbiose literário-filosófica, a partir dos conceitos de Vontade, Impulso Sexual e Adultério, além de observamos o rendimento estético da obra literária.

PALAVRAS-CHAVE: Gil Vicente. Arthur Schopenhauer. Vontade. Impulso Sexual. Adultério.

ABSTRACT: Within the scope of the Portuguese Literature, this article has the intention to investigate the question of love in the play of Gil Vicente, taking as the corpus of study the piece Auto da India, 1509. For this, we focus our analysis on the character Ama, who is called Constance, making possible to open a dialogue with the philosophical thought of Arthur Schopenhauer, especially in his Metaphysics Lovework and his Metaphysics Death work (2000). In this paper, we show that Love is the fruit of literary-philosophical symbiosis, from the concepts of Will, Sex Drive and Adultery, and observed the aesthetic performance of the literary work.

KEYWORDS: Gil Vicente. Arthur Schopenhauer. Will. Sex Drive. Adultery.

 

Desde a Antiguidade Clássica, é possível enxergar uma relação entre filosofia e literatura, pois “vários foram os poetas que trouxeram teses e doutrinas filosóficas para suas obras, diluindo-as em sua criação literária, bem como filósofos valeram-se do discurso literário para a construção de seu pensamento filosófico” (ARAUJO, 2014, p. 15). Dessa maneira, pode-se afirmar que “a filosofia e a arte são irmãs gêmeas, mas falam línguas diversas: o máximo que se pode esperar é que a primeira nos auxilie a compreender a segunda” (REALE, 1982, p. 10). A princípio, portanto, tanto uma visão filosófica pode contribuir para o entendimento de uma obra literária, quanto uma obra literária pode já conter uma atmosfera que convide a filosofia, ou a reflexão filosófica, para o seu centro.

Do ponto de vista da crítica, faz-se necessária uma abertura para ambos pensamentos e um diálogo entre a obra literária e as correntes filosóficas; o diálogo é aqui pensado “no mínimo, em três acepções: “diálogo entre campos disciplinares, entre obras e entre obra e contexto” (ARAUJO, 2014, p. 17-18). Deve-se haver um diálogo que favoreça a intertextualidade entre os campos e que ajude a descobrir novos impasses, evoluindo, assim, a capacidade de reflexão.

No âmbito da literatura portuguesa, o presente artigo tem como intuito investigar a questão do amor na obra teatral de Gil Vicente, tomando como corpus de estudo a peça Auto da Índia, de 1509. Para isso, concentramos nossa análise na personagem Ama, de nome Constança, o que possibilitará abrir um diálogo com o pensamento filosófico de Arthur Schopenhauer, especialmente sua obra Metafísica do amor, metafísica da morte (2000).

Por que investigar o tema do amor? Do clássico ao contemporâneo, tanto poetas quanto filósofos debruçaram-se em temas como o amor, a morte, a existência. De cariz mítico (lembrando que os mitos são sempre articuladores entre filosofia e literatura), o amor já tem grande relevo nas bases da literatura portuguesa, quer dizer, no período poético-musical das cantigas trovadorescas – ou “cantares trovadorescos”, como chama atenção José Carlos Miranda (2010, p. 163) para a designação mais adequada, visto que o termo “cantar” era mais corrente e pondo em xeque o próprio termo “cantiga”. Este é, inclusive, o tema nuclear da própria literatura medieval galego-portuguesa. Em face disto, a questão do amor – também o binômio amor-dor – será decisiva não só para o período medieval, como também para a obra de Gil Vicente.

Já na filosofia, o tema do amor esteve presente na meditação filosófica de forma direta ou indireta. Por que, então, a escolha da obra de Schopenhauer? E o que resulta deste encontro? Mais conhecido por seu pessimismo constante na monumental obra O mundo como vontade e representação (2005), Schopenhauer protagoniza um grande entrave com o pensamento hegeliano. Sobre esta clássica obra e sobre Hegel, Terry Eagleton, em O problema dos desconhecidos (2010, p. 226), tem uma observação sagaz e que nos põe a pensar: “O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer, [é] uma sinistra paródia do pensamento de seu colega acadêmico Hegel”. Há na obra de Schopenhauer, segundo Eagleton, um jogo entre Eros e Tânatos, entre pulsão de vida e desejo de morte no horizonte da “estetização da realidade” (Ibdem, p. 230). O que tem, então, Schopenhauer a nos dizer sobre a questão do amor e que possa constituir-se como terreno propício para uma intersecção com o auto de Gil Vicente? Já no primeiro capítulo de seu livro Metafísica do Amor (2000), o filósofo alemão se espanta pela ausência de reflexões filosóficas acerca do amor. Para Schopenhauer, esse tema não foi tratado de forma satisfatória pela filosofia, tendo, porém, alcançado grande relevo no pensamento de Platão, em diálogos como O Banquete e Fedro, e também na exegese do neoplatônico Plotino. O pensador alemão também se revela espantado pelo que Rousseau, Kant, Platner e Spinoza falaram e afirmaram sobre esse assunto. Conclui que “de acordo com isto, não tenho predecessores para me valer, nem para me refutar: o assunto se impôs a mim de maneira objetiva e entrou por si mesmo no contexto de minha concepção de mundo.” (SCHOPENHAUER, 2004, p. 06).

Em Metafísica do amor, Schopenhauer afirma que os poetas e ficcionistas notaram o amor com maior inteligência, até mais que os filósofos. A poesia transmite aos seus admiradores as Ideias e os próprios conceitos sobre o amor. De fato, o poeta é aquele capaz de contemplar a Ideia do homem e, nesta, está contida o amor, que para Schopenhauer é o desejo sexual, revelação na qual podemos construir o paralelo entre este pensamento e Gil Vicente, no Auto da Índia.

Não existindo o sentimento do amor, as obras não existiriam e não poderiam ser tão belas, pois somente o amor:

[…] é o tema capital de todas as obras dramáticas, sejam elas trágicas ou cômicas, românticas ou clássicas, indianas ou europeias: é também, em larga escala, a matéria da maior poesia lírica, assim como da épica. (SCHOPENHAUER, 2003, p. 3).

O Auto da Índia, de 1509, teatralizado em Almada perante a rainha D. Leonor, é o primeiro texto teatral no qual é representada uma intriga, história completa e atual. A personagem Ama é a única que permanece em cena desde o início ao fim da peça e é em torno dela que gira toda a ação. A ideia principal da peça é o adultério cometido pela personagem principal, de nome Constância[i]. Suas circunstâncias são das primeiras décadas do século XVI, quando por trás da expansão ultramarina já era possível perceber as profundas alterações no comportamento das pessoas e o que causava para a sociedade portuguesa.

Essa mesma ideia será feita por Camões, sessenta anos mais tarde, no episódio do Velho do Restelo. Gil Vicente o primeiro a contar uma intriga com princípio e fim e também sua primeira “Farsa”, sendo a primeira das suas peças escritas. Uma citação de Benjamin Abdala Júnior (2003, p. 11) é esclarecedora quanto à caracterização do teatro de Gil Vicente:

O teatro de Gil Vicente, embora dirigido a um público palaciano, foi popular na forma e no conteúdo. Suas raízes são medievais, de onde incorporou alegorias, símbolos e temas bíblicos; personagens populares com suas linguagens e costumes; danças, cantigas e narrativas folclóricas.

É notório vislumbrar que este Auto possui uma estrutura tripartida: a câmara da Ama, onde decorre a maior parte das ações das personagens; a cozinha, onde se esconde Lemos em um determinado momento da peça, e que é referida no discurso outras vezes; por último, o quintal, onde Castelhano aguarda, noite afora, a autorização para entrar.

Podemos compreender o motivo que leva a Ama a aceitar o assédio dos dois amantes a partir do conceito schopenhaueriano de Vontade. Segundo o filósofo alemão, a Vontade é autodiscórdia, uma fome eterna que se alimenta de si mesma – o que faz, inclusive, Nietzsche corroborar com este conceito de Vontade, embora o tornando múltiplo, uma espécie de potência que quer a si mesma, mas com uma vontade de lutar.

Com isto, logo se percebe que, para Schopenhauer, o mundo marcado pela Vontade (enquanto essência) carrega a marca do egoísmo, presente também na personagem principal da peça, isto porque a Vontade que a Ama carrega é a força que rege e abarca todas suas atitudes durante os atos da apresentação, uma espécie de força regente dos fenômenos da ilusão do mundo marcada pela busca de si mesma e sua completa autorrealização. Assim, como afirma o próprio filósofo alemão, “a motivação principal e fundamental, tanto no homem como no animal, é o egoísmo, que quer dizer o ímpeto para a existência e o bem-estar” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 120)

O ponto chave do Auto da Índia é o episódio do adultério mostrado ao público cometido pela Ama na ausência do marido, dividido também em três partes: a primeira corresponde à fase de expectativa da Ama, ao se indagar se o marido foi ou não para sua viagem à Índia, a distensão que segue a peça após a confirmação e a predisposição dela pela prática do adultério; a segunda parte é a fase da concreção do adultério, em que seus dois pretendentes entram em cena (Castelhano e Lemos); a terceira parte corresponde à chegada do marido, desaparecendo as condições que pudessem propiciar um adultério por parte da Ama, marcada por sua hipocrisia.

Essa característica revela o lado crítico de uma perspectiva popular que ocorre nas peças de Gil Vicente, considerando o uso do humor não por si só, mas um cunho satírico dentro da sociedade, revelando assim “a hipocrisia e a ânsia pela ascensão social a todo custo mostram-se atitudes existenciais mais gerais, própria de sociedades consumistas” (ABDALA JÚNIOR, 2003, p. 12) e como sua peça tem a função de tentar levar a reflexão essas atitudes.

Tendo em vista o fato de o adultério ser uma ideia central da peça, pode-se conferir o teor de tragédia confirmada por Aristóteles (1991), como a encenação de uma ação de caráter elevado que, despertando o terror e a piedade, conduz à catarse dessas emoções, por ele consideradas ruins:

[…] as várias propostas em torno do vocábulo “catarse” podem ser resumidas em duas principais: ora se entende que a purgação constitui a experiência da piedade e terror que o espectador sofre perante a tragédia que contempla, de molde a ‘viver’ a situação infausta do herói e aprender a distanciá-la de si; ora se julga que a visualização do tormento alheiro proporciona à plateia o alívio da próprias tensões, ao menos enquanto dura o espetáculo. (MOISES, 2004, p. 79)

Essa espécie de catarse, que nada mais é que uma depuração de sentimentos, ações e emoções, pode ser encontrada no Auto da Índia, resultando em uma tragédia, e também na filosofia de Schopenhauer, quando o filósofo concebe tragicamente a existência, colocando ao mesmo tempo como objetivo o provocar para uma espécie de catarse diante dela.

A Ama de Gil Vicente e a filosofia de Schopenhauer

Vontade e Ilusão

Em o Auto da Índia, temos um terreno propício para pensarmos a questão da Vontade e do Amor. No pensamento de Schopenhauer, temos a questão da Vontade como algo metafísico de toda realidade, é a coisa-em-si dos fenômenos do mundo.

Segundo Schopenhauer, a Vontade pode ser conhecida por três vieses: o primeiro a partir da observação do funcionamento do organismo, que, nesse caso, não há intenção de se deter, pois não é o intuito explicar a partir de uma perspectiva científico/naturalista. O segundo é através da percepção dos estados da alma e das paixões que movimentam o corpo – esse sim é o ponto chave para explicar as ações da Ama e a forma de agir da personagem na peça. Há um terceiro viés que o filósofo se detém, a partir da experiência estética, porém aqui, existe uma negação momentânea da Vontade, que para a personagem isso não ocorre, pois ela se entrega facilmente as suas vontades.

Gil Vicente, ao mostrar o comportamento imoral da esposa na ausência do marido, a maneira que ela age com Tristão quando este vai para Índia e, por sua vez, aceita sem dificuldades os dois namorados da peça, convida o leitor para pensar o conceito de Vontade expresso no pensamento de Schopenhauer, que diz que a Vontade se pressupõe em relação à razão. Nesse sentido, percebe-se a Vontade como “algo sem nenhuma meta ou finalidade, um querer irracional e inconsciente”[ii].

A Vontade que a Ama expressa na obra é uma espécie de potência, força cega que nos faz ser quem somos, com nossos desejos mais profundos, sensações e prazeres. E, como afirma o filósofo alemão, a Vontade é uma “essência íntima do mundo”, que é livre, independente e incondicionada:

A vontade do indivíduo entra em cena numa potência mais elevada, como vontade da espécie, que repousa o patético e sublime das questões amorosas, o transcendente de seus enlevos e dores, que há séculos, em inúmeros exemplos, os poetas não se cansam de expor. (SCHOPENHAUER, 2000, p. 9)

Podemos aferir que Gil Vicente faz revelar essas características acima citadas nas atitudes da Ama, concebendo como um princípio de racionalizar suas ações ao se apresentar como “moça e formosa”, tentando transmitir uma imagem de mulher virtuosa, mas que se serve disso como justificativa para tal comportamento e abarcar suas vontades para estabelecer uma relação com seus namorados.

Gil Vicente põe, implicitamente, estas questões em xeque para criticar as atitudes das esposas para com seus maridos. Pelo fato de retratar e denunciar a sociedade da época, ele expõe diversas atitudes e comportamentos condenados e censurados pela própria sociedade. Vemos aqui, portanto, um autor que toma posição perante a sociedade, que retoma (e com maior relevo e intensidade) algo dos cantares trovadoresco, embora muito timidamente presente no medievo, que é a crítica social.

É interessante perceber que a Ama é dita como uma mulher hipócrita, meticulosa e incapaz de controlar suas vontades sexuais durante a viagem do marido, mas na realidade essas atitudes revelam uma espécie de ilusão. Jair Barbosa chama o amor schopenhaureniano de ilusão, “pois o indivíduo pensa perseguir seus fins próprios, imaginando procurar um gozo particular, quando na verdade trabalha para algo universal: a espécie”[iii].

É a criada da Ama que, por convenções do teatro, irá se dirigir ao público sem que as demais personagens ouçam-na, revelando que o marido deixou a Ama com recursos: “Que entendeis? Ando dizendo / Que quem assim fica sem nada / Como vós, que é obrigada… já vós vais entendendo” (VICENTE, 2003, p. 18). Percebe-se, assim, a razão pela qual a Moça aponta a infidelidade da Ama com a desculpa de que ficará sem recursos.

Justamente aqui há um exemplo de como o amor é tido como uma ilusão, que, por sua vez, é o próprio instinto. Instinto esse que acontece de uma forma natural está presente em todos e, na maioria dos casos, como ocorre no Auto:

Deve-se considerá-lo como o sentido da espécie, que expõe à vontade o que lhe é favorável. Mas, como aqui a Vontade se tornou individual, ela tem de ser iludida de tal maneira que perceba pelo sentido da espécie a ela apresenta, presumindo, portanto, seguir fins individuais, enquanto na verdade, persegue meros fins gerais. (SCHOPENHAUER, 2000, p. 16).

Segundo Schopenhauer, a Vontade é astuta e usa da ilusão para que haja uma maior paixão. E o desejo proporcionado pelo instinto pode ser tão ardente que o indivíduo ludibriado não consiga se desenvencilhar.

Essa ilusão acontece com a Ama, mas também com as personagens do Castelhano, Lemos e o próprio Tristão, pois o homem movido pelo amor (que é a própria ilusão) busca satisfazer suas vontades no sexo oposto, podendo ser uma que se insinue, no caso dos dois amantes da personagem principal ou do marido que toma como posse sua esposa e vê nela sua felicidade completa.

Assim, para Schopenhauer, a Vontade é intrinsecamente uma espécie de autodiscórdia, o que faz do enredo da peça Auto da Índia um ato trágico, traduzido na famosa tese schopenhaueriana: “alleslebenleindenist” (toda vida é sofrimento).

Amor e impulso sexual

O amor é uma verdade. Para Schopenhauer, o amor nada mais é do que o “impulso sexual” que, com graduações e nuanças, ocupa a maior parte dos pensamentos dos jovens, coloca em confusão as mais sérias cabeças, intromete-se na ciência, na política, na arte e é, ao lado do amor à vida, a mais forte e ativa das molas impulsoras do homem.

É este tipo de amor que permeia a peça de Gil Vicente, como podemos observar neste trecho em que a Ama conversa com Castelhano: “Vós queríeis ficar cá? / Agora é cedo ainda; / Tomareis vós outra vinda, / E tudo se bem fará[iv]” (VICENTE, 2003, p. 22). Aqui fica claro a mulher sensual e leviana que é, em busca de uma satisfação do gozo e uma busca para o ato sexual fosse consumado, que paira pela própria existência dela. E que necessita de uma satisfação imediata.

Isto se dá pelo fato da existência da Ama ser condicionada pelo impulso sexual e sua essência ser pautada pela escolha individual para satisfação do desejo, por isso, na peça ela não possuir nenhuma crise de consciência ao trair o marido com seus dois amantes.

Ainda sobre essa busca pelos acessos da paixão e uma busca avassaladora por um desejo proibido, de acordo com a moral e os valores que abarcam a sociedade da época retratada na obra de Gil Vicente, Jean Lefranc (2007, p. 133) afirma que “A necessidade sexual é mais fundamental do que a fome pelo fato de ligar cada indivíduo à espécie” (LEFRANC, 2007, p. 133).

Pode-se entender o porquê da Ama se deter nesse aspecto e a incapacidade que ela possui de não controlar suas vontades sexuais durante a viagem do marido, enganando tanto o companheiro como também seus amantes, pois Castelhano não sabe da existência de Lemos e vice-versa. Neste ponto, é salutar lembrarmos da seguinte passagem da obra de Schopenhauer:

É ele [impulso sexual] a meta final de quase todo esforço humano, exercendo influencia prejudicial nos mais importantes casos […] rompendo as relações mais valiosas, desfazendo os laços mais estreitos, ás vezes tomando por vítima a vida, ou a saúde, ás vezes a riqueza, a posição e a felicidade, sim, fazendo mesmo do outrora honesto um inescrupuloso, do até então leal um traidor, entretanto em cena, assim, em toda parte como um demônio hostil, que a tudo se empenha por subverter, confundir e pôr abaixo (SCHOPENHAUER, 2005, 7-8).

No Auto da Índia, a protagonista usa-se de várias artimanhas, e usa uma espécie de máscara para numa mesma personagem realizar duas façanhas. Como nesse diálogo no início da peça, entre a Ama e a Moça, sua criada:

MOÇA: Jesus! Jesus! Que é agora isso? / E porque se parte a armada!
AMA: Olhade a mal estreada![v] / Eu hei-de chorar por isso?
MOÇA: Por minha alma, que cuidei / e que sempre imaginei / que choráveis por nosso amo
AMA: Por qual demo ou por qual gamo[vi] / ali hora chorarei? (VICENTE, 2003, p. 16).

Ou até mesmo nesse trecho da peça onde a Ama, quando seu marido chega de viagem, revela-se uma esposa prestativa e chorosa por sua chegada

MARIDO: Ora, como vos foi lá? / Muita tempestade passei
AMA: E eu, oh! Quanto chorei! / quando a armada foi de cá! / E quando vi desferir[vii] / que começaste de partir, / Jesus! Eu fiquei finada! / Três dias não comi nada, / a alma se me queira sair (VICENTE, 2003, p. 31).

Esses trechos acima citados mostram que essas atitudes da Ama são consequências de uma necessidade do amor sexual. É este o responsável por cegar a sua consciência ao ponto de tornar-se uma mulher contraditória e se valer de duas atitudes e agir de maneiras distintas e acabar usando duas máscaras, uma na ausência do marido e outra na sua chegada de viagem, como podemos ver a partir desta passagem da Metafísica do Amor, de Schopenhauer (2000, p. 10) “O impulso sexual, embora sendo de fato uma necessidade subjetiva, sabe pôr, com habilidade, a máscara de uma admiração objetiva, iludindo assim a consciência”.

Desta forma, a construção da peça configura um enamorar-se entre as personagens, seja a personagem protagonista, bem como seu marido e amantes. Todos são movidos pelo impulso sexual, sendo este determinado, especializado e individualizado. E é ele o responsável para uma consciência totalmente desleixada das personagens.

Amor e adultério

O clímax da peça Auto da Índia certamente ocorre no momento do adultério da personagem Ama com seus amantes, como vemos nos seguintes trechos:

AMA: Vós queríeis ficar cá?
Agora é cedo ainda;
Tomareis vós outra vinda,
E tudo se bem fará[viii]
CASTELHANO: Á qué hora me mandais?
AMA: Às nove horas e não mais.
E atirar uma pedrinha,
pedra muito pequenina,
à janela dos quintais
AMA: Não é ele homem dessa arte.[ix]
MOÇA: Pois ainda ele não esquece?
Há muito não aparece.
AMA: quanto a mim não sei dele parte[x]
           Quando ele souber, à fé[xi]
           Que nosso amo aqui não é,
Lemos vos visitará,
LEMOS: Hou de casa!
AMA: quem é lá?
LEMOS: Subirei?
AMA: Suba quem é
LEMOS: Vosso apaixonado, senhora (VICENTE, 2003, p. 23)

Aqui, o adultério é traduzido como uma degradação moral da família, pois é considerado como algo transgressor cometido pela mulher, principalmente no contexto social e político em que a peça foi escrita e, nesse caso, a moral foi corrompida pela mulher. Neste ponto, a filosofia schopenhaueriana, no que tange ao fundamento da moral, parece ser um horizonte possível para este trânsito com a obra vicentina, pois “toda ação cujo fim último é o bem-estar e mal-estar do próprio agente é uma ação egoísta” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 126).

Portanto, o adultério pode ser considerado uma ação egoísta da Ama dentro da peça como intuito principal de garantir seu bem próprio, sem preocupação para com os outros, nem mesmo seus amantes, pois um não sabe a existência do outro, revelando, assim, a única motivação que a personagem principal possui, que é a sua autorrealização. Dessa forma, “se uma ação tiver um fim egoísta como um motivo, então ela não pode ter nenhum valor moral” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 133).

Para Schopenhauer, adultérios, ciúmes, morte e tormentos fazem parte da trama do amor, os fins que motivam a espécie são poderosos, submetendo aos amantes as piores loucuras que podem levar a pessoa a realizar em busca dos seus objetivos. No caso da Ama, a ausência do marido cria a situação essencial para que haja a leviandade resultando na infidelidade conjugal, razão pela qual a guia para tal prática. Esta atitude revela, para o pensador alemão, um tipo de egoísmo “guiado pela razão que o torna capaz, por meio da reflexão, de perseguir seu alvo planejado” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 120), que para Constância nada mais é do que o adultério. Por isso, ao enganar o marido e seus dois amantes, sua motivação é extremamente hipócrita e revela o egoísmo para com o mundo, pois “o egoísmo é a primeira e a mais importante potência, embora não seja a única, que a motivação moral tem de combater” (SCHOPENHAUER, 2001, 124).

O adultério, para a época de Gil Vicente, é algo inaceitável, principalmente para mulher, amparado no preceito divino, porque neste tempo temos a presença do Cristianismo embebecido em toda sociedade e suas leis são severas em relação a esse tipo de atitude. E também do ponto de vista da moral em Schopenhauer, esse tipo de atitude não condiz com a estrutura da mulher, pois para ele não faz parte da natureza ontológica da mulher a infidelidade conjugal, sendo que esse tipo de atitude a torna imperdoável. Nas palavras de Schopenhauer (2000, p. 22-23)

A infidelidade conjugal é artificial para o homem, para a mulher natural, e, portanto, o adultério da mulher, tanto em termos objetivos, devido às consequências, quanto em termos subjetivos, enquanto contrário à natureza, é muito mais imperdoável que o homem.

É interessante perceber que Gil Vicente, ao trazer esse tipo de atitude da mulher, revela seu papel de transgressora em relação aos costumes e às leis presentes na época e, em sua própria carga linguística, é perceptível sua postura diante de seus amantes e durante a chegada do marido “Jesus! Eu fiquei finada! / Três dias não comi nada, / A alma se me queria sair” (VICENTE, 2003, p. 31).

Esse tipo de atitude na ação e expressão já foi dito por Salvato Trigo, em seu artigo “Gil Vicente e a Teatralização das Linguagens” (1984), em que a linguagem revela essa transgressão da personagem principal em sua ação para com o marido, como também na expressão diante do público, contrastando profundamente com seu comportamento moral e linguístico, revelando uma espécie de discurso carnavalesco[xii]. Diz-nos Salvato Trigo (1984, p. 219):

Tendo-se que o carnaval se baseia fundamentalmente na transgressão da lei, seja ela moral ou social, não custa a considerar que é justamente esse o elemento estruturante de todos os textos de Gil Vicente, que traz para a cena os mais diversos tipos sociais para fazê-los assumir a sua faceta transgressora, isto é, carnavalesca, do clérigo ao juiz, da mulher casada ao nobre.

Gil Vicente revela, assim, a mulher transgressora em sua peça, tanto em suas atitudes como na própria carga linguística. Essa última causa o riso e as situações cômicas na peça, exercendo a função poética na encenação ou pela coreografia das variadas falas dentro do auto, significando, assim, que a transgressão cumpre a principal regra do carnaval.

 Considerações finais

Se o crítico Terry Eagleton parece nos induzir a um Schopenhauer meramente à sombra de Hegel, devemos tomar Schopenhauer como um filósofo que teve um método claro e objetivo na forma e no esforço de entender a realidade, um filósofo peculiar dentro da metafísica ocidental e um dos pensadores que, pela via da Estética (sublime), erigiu uma correspondência com o Oriente, uma “ligação umbilical”, como nos diz Vitor Moura (1999, p. 117), que já o conservador Edmund Burke já apontava em suas Investigações sobre o belo e o sublime. Falar de Schopenhauer e de sua doutrina é, sem dúvidas, falar de um pensador que, como aponta Icilio Vecchiotti em sua clássica obra La dottrinadi Schopenhauer (1969, p. 317), minuciosa investigação da relação de Schopenhauer com a doutrina indiana, levou “o problema da Vontade como um problema ontológico”. Se termos em mente que, ainda nas palavras Vecchiotti (1969, p. 327), a “Vontade constitui-se como o elemento imediato de nossa mente”, podemos ver como isto faz ecoar o texto vicentino.

Não se quer dizer aqui que entre Schopenhauer e Gil Vicente haja uma relação arbitrária ou que os conceitos schopenhauerianos servem de “lentes de contato” para enxergar a peça vicentina. Mas que, fundamentalmente, há um horizonte possível entre o pensador alemão e o autor português se tomarmos como articuladores os temas da vontade, da moral.

Referências

ARAUJO, Rodrigo Michell dos Santos. Haikai do mundo hakai de mim: o nada na poesia de Paulo Leminski. Dissertação (mestrado em Letras). Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão, 2014, 119f.: il.

ARISTÓTELES. Arte poética. Vol. 2. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1991 (Os Pensadores).

CIDADE, Hernani. A Literatura Portuguesa e a expansão Ultramarina. 2ª ed. Coimbra: Armênio Amado, 1963.

EAGLETON, Terry. O problema dos desconhecidos: um estudo da ética. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Trad. Mário Sabino Filho. Rio de Janeiro: Globo, 1989.

FERNANDES, Brenda Juliana. Amor e Morte em Schopenhauer. Dissertação (Mestrado em Filosofia). XX f. São Paulo, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Filosofia e Ciências, 2012, 109 f.: il

GUEROULT, Martial. Introdução. In: SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor, metafísica da morte. Tradução, apresentação e notas de Jair Barbosa. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LEFRANC, Jean. Compreender Schopenhauer. Petrópolis: Vozes, 2007.

LEXICOTECA, vol. 8, Círculo de Leitores, 1998.

MIRANDA, José Carlos Ribeiro. Cantar ou cantiga? Sobre a designação genérica da poesia galego-portuguesa. In: BREA, Mercedes; MARTÍNEZ-MORÁS, Santiago López. Aproximacións ao estudo do VocabularioTrobadoresco. Santiago de Compostela: Centro Ramón Piñeiro para a Investigaciónen Humanidades, 2010. p. 161-179.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa através dos textos. São Paulo: Cultrix, 1978.

_________. A criação literária: prosa. São Paulo: Cultrix, 1985.

_________Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004.

MOURA, Vitor. Uma investigação filosófica de Edmund Burke: o excesso por fascículos. In: LOURO, Maria Fillomenaet. all. Inquérito à modernidade: bi-centenário da morte de Edmund Burke (1729-1797). Braga: Editora da Universidade do Minho, 1999, p. 89-118.

REALE, Miguel. A filosofia na obra de Machado de Assis & Antologia filosófica de Machado de Assis. São Paulo: Pioneira, 1982.

SARAIVA, Antônio José. Iniciação à Literatura Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1999a.

_________. Breve História da Literatura Portuguesa. São Paulo: Lisboa, 1999b.

SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor, metafísica da morte. Tradução de Jair Barboza. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

__________. Sobre o fundamento da Moral. Trad. Maria Lúcia Mello Oliveira Cacciola. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

__________. Metafísica do belo. Tradução e notas de Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2003.

__________. O Mundo como vontade e como representação. Tradução de Jair Lopes Barbosa. São Paulo: Unesp, 2005.

TRIGO, Salvato. Gil Vicente e a Teatralização das Linguagens. Revista da Faculdade de Letras. Vol. 1, 1984, p. 209-225

VECCHIOTTI, Icilio. La dottrinadi Schopenhauer. Roma: Ubaldini Editore, 1969.

 

[i] Interessante que Gil Vicente usa esse nome, cujo significado é fidelidade, revelando uma ironia também a ser analisado como aspecto para a personagem.

[ii] INTRODUÇÃO. In: SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. 5 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores), p. XI.

[iii] INTRODUÇÃO. In: Metafísica do Amor, Metafísica da Morte. 2 ed. Tradução, apresentação e notas de Jair Barbosa. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 24.

[iv] E então faremos amor.

[v] Olha a boba!

[vi] Marido traído.

[vii] Içar as velas.

[viii] E então faremos amor.

[ix] Desse tipo.

[x] Não tenho notícias dele.

[xi] Tenho certeza.

[xii] Entenda-se, pois, por discurso carnavalesco aquele que transgride as regras do código linguístico, bem como as da moral social, ao adotar uma lógica de sonho, isto é, aquele que a linguagem se parodia e se relativiza, repudiando o seu papel de representação (o que provoca o riso), sem chegar, contudo, a separar-se dela.