Guiomar de Grammont e as palavras que se cruzam

Tiago Ribeiro

Guiomar Maria de Grammont Machado de Araújo Souza é mineira de Ouro Preto, historiadora, filósofa, escritora e professora de Filosofia na Universidade Federal de Ouro Preto. Desde 2005, organiza o Fórum das Letras de Ouro Preto, evento do qual é idealizadora. Já foi curadora de grandes eventos literários, incluindo o Salão do Livro Latino-Americano de Paris. É autora de contos, obras de dramaturgia e acabou de publicar o seu mais novo romance: Palavras Cruzadas.

 


 

(Mafuá) Numa das minhas primeiras aulas de Literatura no Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto, onde você também estudou, eu aprendi com uma de minhas professoras que quem lê deseja conhecer o mundo e quem escreve deseja mudar o mundo. O que você acha disso?

(Guiomar) Na verdade, acho que o escritor sempre será um leitor e, muitas vezes, o leitor também escreve, mesmo que não se torne escritor. Todo mundo que domina a palavra, escreve, de alguma forma. Com isso quero dizer que tanto o leitor quanto o escritor querem conhecer o mundo e expressar o que conhecem dele e de si mesmos, de alguma forma.

Quanto a escrever para mudar o mundo… sim, o escritor escreve para inventar um mundo que, seguramente, não é aquele em que vive, não é o dia a dia. Mas essa invenção de um mundo nem sempre é utópica, ou seja, nem sempre é positiva. Os mundos inventados pelos escritores podem ser monstruosos como os seres que Goya pintou nas paredes de sua casa, podem ser terríveis como as figuras de Guernica, de Picasso, ou desarmônicos, como os acordes de Gershwin. Enfim, há um inconformismo e, quando se trata de uma grande obra, sempre é transformador, sempre tem um potencial revolucionário; mas nem todo escritor teve essa intenção. Enfim, os bons escritores almejam revelar o invisível, mesmo que o resultado não seja agradável.

(M) A partir de seus diversos trânsitos – como escritora, como organizadora do Fórum das Letras de Ouro Preto, como curadora de importantes eventos literários nacionais e internacionais e como editora da seção de ficção nacional da Record –, quais são as maiores dificuldades encontradas pelos jovens escritores quando batem à porta das editoras?

(G) O jovem escritor raramente tem chance de ser publicado por uma grande editora. Em geral, é preciso a indicação de algum crítico ou escritor mais importante da casa, ou um prêmio, algo, enfim, que mostre que o livro do jovem autor pode vir a atrair a atenção do público leitor ou da mídia. As editoras comerciais precisam vender livros para continuarem existindo, por isso, costumam fazer apostas com alguma margem de segurança. Felizmente, hoje é cada vez mais fácil publicar, seja na internet, seja em papel. O jovem escritor não deve ficar esperando uma chance: deve fazer tudo que pode para construir ele mesmo essa chance. Assim, ele acabara chamando a atenção das editoras.

(M) Qual o lugar da literatura brasileira, hoje, em relação ao conjunto da literatura mundial?

(G) O Brasil tem atraído muito a atenção da mídia nos últimos anos, antes por uma boa imagem, agora, nem tanto. Investiu-se muito nas homenagens ao Brasil em feiras literárias no exterior e em bolsas de tradução. Isso ampliou consideravelmente o conhecimento da literatura, dos autores contemporâneos, do Brasil em outros países. Diria mesmo que houve um salto positivo nessa direção, mas esse esforço precisa ser continuado ou tudo que foi construído até agora se perderá.

(M) Em seu livro Palavras Cruzadas, você percorre os limites entre a ficção e a realidade, tema discutido inúmeras vezes nas várias edições do Fórum das Letras de Ouro Preto. Tratando de sua trajetória pessoal, você conseguiu resolver algumas coisas consigo mesma escrevendo esse livro?

(G) Quando comecei a escrever o romance Palavras Cruzadas, minha intenção era desenvolver uma obra sobre a morte do meu pai, que se deu em 1975, de forma ainda inexplicada. Ele morreu como o Herzog, um mês depois, mas não desapareceu, como o irmão de Sofia, minha protagonista, espécie de Antígona contemporânea, que lida com essa angústia. Acho, porém, que escrever sobre o drama da perda, vivido por ela em cumplicidade com a mãe, me ajudou, sim, a lidar com essa falta, teve um efeito redentor, ainda que não catártico. Penso que ainda preciso voltar ao tema original e escrever sobre meu pai.

(M) Nos países que viveram períodos de exceção houve vários movimentos de mulheres, em busca de notícias de seus esposos e filhos desaparecidos, como o movimento das Madres de la Plaza de Mayo, na Argentina. Em seu romance, a personagem Sofia busca Leonardo, o irmão desaparecido na Guerrilha do Araguaia. De que forma a história narrada em seu livro dialoga com tantas histórias doloridas, vividas na pele por mulheres que até hoje não sabem o paradeiro de seus entes queridos?

(G) Fiz muitas pesquisas para escrever esse livro, não só sobre a guerrilha, mas também sobre a forma como os parentes viveram o desaparecimento de membros de suas famílias em condições misteriosas. Realmente, meu desejo é de que todas as pessoas que viveram esse drama, se reconheçam, de alguma forma, na história de Sofia, de forma a lidarem melhor com os sentimentos contraditórios provocados pela perda. Minhas personagens vivem até questões prosaicas, como a dificuldade de divisão dos bens herdados, por exemplo, quando há um parente que desapareceu. A burocracia não tinha mecanismos para lidar com essa questão crucial, vivida por todos os países latino-americanos.

(M) Como foi a experiência de escrever o seu primeiro romance?

(G) Foi muito difícil, pois foi sob pressão, uma vez que eu tinha recebido, por concurso, uma bolsa importante da prestigiada Fundação Vitae, de São Paulo. Além disso, eu estava grávida de sete meses, do meu terceiro filho, quando recebi a notícia desse prêmio.  Esses percalços fizeram com que eu tivesse dificuldades em organizar bem essa obra e acho que a publicação foi precipitada: um romance precisa passar por inúmeras releituras e revisões antes de ser dado como terminado.

(M) Você acha que o tema da Ditadura ainda é pouco debatido nas esferas política e cultural brasileiras?

(G) Talvez esse tema tenha sido muito debatido, mas sem que se colocasse de fato o dedo na ferida. Acho que a Lei da anistia e o fato de o Brasil ter sido o único país das Américas que não teve a coragem de julgar os crimes de responsabilidade cometidos na ditadura, questões que eu discuto em meu livro, são uma das causas dessa anestesia política em que mergulhamos depois e que hoje torna tão difícil a consolidação da democracia.

(M) Você poderia falar um pouco sobre a criação da Casa Brasileira de Refúgio?

(G) Em Paris, agora em março de 2016, participei da décima assembleia do ICORN, a ONG de proteção a escritores da qual eu faço parte e que me levou a iniciar o projeto de uma casa refúgio para escritores em Ouro Preto, que terá pleno funcionamento em breve.  Hoje, há milhares de escritores e jornalistas no mundo que são ameaçados de prisão ou de morte apenas por exporem suas ideias em livros, jornais ou pela internet. A proteção a esses escritores é uma questão de alcance mundial, como mostrou a comoção em torno do massacre da redação do jornal satírico Charlie Hebdo, e felizmente a consciência sobre a necessidade de protegê-los está se ampliando no mundo.

(M) O livro resultante de sua tese de Doutorado, Aleijadinho e o Aeroplano, pode ser considerado um livro muito corajoso, uma vez que desconstrói o mito sobre o Aleijadinho criado no século XIX.

De onde veio a ideia de escrever sobre isso?

(G) Eu iniciei meu doutorado na USP, sob orientação do João Adolfo Hansen, que é um pesquisador genial, especialista no Barroco. Fiz uma bolsa sanduíche na França sob orientação do Roger Chartier e frequentei cursos de professores como o Christian Jouhaud, sobre a história da leitura, ou seja, de como cada contexto histórico constrói a sua interpretação. Não há o real, o que há é um olhar. No início, meu doutorado era sobre os conceitos de “barroco” e “neobarroco” na literatura brasileira e latino-americana. Desse conceito cheguei ao “herói barroco”, do qual o Aleijadinho é a nossa melhor expressão. O “herói barroco” seria uma espécie de Macunaíma, que “come” a cultura do colonizador e a digere, antropofagicamente, criando formas híbridas, manifestações artísticas que mesclam ambas as culturas, a sua e a do Outro europeu. Essa imagem se tornou o paradigma da própria cultura brasileira e Aleijadinho o seu maior símbolo. Essa figura foi desenvolvida, ao mesmo tempo, por grandes escritores que foram ou são, ao mesmo tempo, pensadores da literatura, como Alejo Carpentier e Lezama Lima, em Cuba e, no Brasil, Mario de Andrade e os modernistas em geral. Além de Carlos Drummond de Andrade e Affonso Ávila, que escreveram textos belíssimos e muito pessoais que contribuíram para a construção dessa imagem do Brasil híbrido, culturalmente tão rico e tão sincrético, forma com que nos percebemos e nos definimos perante outras culturas, até a atualidade. Considero essas versões mais fascinantes e férteis para o conhecimento, do que questionáveis. Ao contrário do que muita gente julgou que eu teria escrito, no livro, eu observo, através da análise de toda a documentação encontrada sobre o artífice, que Antônio Francisco Lisboa foi um escultor pobre e mulato que efetivamente existiu e viveu no século XVIII. O personagem “Aleijadinho”, por outro lado, foi sucessivamente apropriado em diversos discursos sobre letras e artes no Brasil.

(M) E, para finalizar, gostaria de saber o que Ouro Preto significa para você.

(G) Tenho uma relação orgânica com Ouro Preto. Eu nasci ali e a cidade é a minha casa. Láa estão minha mãe e irmãos, os ossos dos meus avós estão enterrados na Igreja das Dores. Sofro, por exemplo, com as casas que se multiplicam nos morros, com a urbanização desenfreada, como se estivessem ferindo meu corpo. Quando houve o incêndio na Praça Tiradentes, eu assisti chorando, ligando desesperada para que as empresas e cidades vizinhas mandassem bombeiros. Eu tenho um genuíno amor por Ouro Preto, me reconheço ali, é como um espelho.