A mulher, o monologismo e o discurso literário: algumas considerações sobre os papéis de gênero em “Com licença poética” e “Poema de sete faces”

Ítalo Yan Santos França, Bárbara Silva Santos, Gilmar Barbosa dos Santos Filho, Jadson Lima Jesus da Silva, José Lucas Campos Antunes dos Santos, Juan Mardson Castro dos Santos, Juliana Andrade da Silva Alencar, Matheus Messias Santos, Milton Brito de Oliveira Lima, Priscila Falcão Santana, Viviane Lima dos Santos Almeida

RESUMO: O presente artigo analisa o poema “Poema de Sete Faces”, de Carlos Drummond de Andrade, e o poema “Com licença poética”, de Adélia Prado, e como dialogam com intertextos. Fazendo um contraponto com as teorias de análise do discurso anteriores aos estudos pós-estruturalistas, busca-se evidenciar como as condições de produção são inerentes à compreensão da obra como produto de uma sociedade corrente. Ao serem trazidas essas questões, problematiza-se o papel pré-determinado discursivamente ao homem e à mulher através de uma perspectiva dualística, binária e sexista. O artigo conclui que correntes teóricas aqui adotadas não desprezam as condições de produção inerentes ao sentido. Desta feita, os poemas analisados encontram-se travejados pelo eu-tu-aqui-agora da enunciação discursiva.

PALAVRAS-CHAVE: Condições de produção. Monologismo. Dialogismo. Homem. Mulher.

ABSTRACT: The article analyzes the poem “Poema de Sete Faces”, of Carlos Drummond de Andrade, and the poem “Com licença poética”, of Adélia Prado, and how them dialogue with intertexts. Making a counterpoint to discourse analysis theories prior to poststructuralist studies, this work seeks out to show how the production conditions are inherent in the understanding of the work as the product of a current society. Considering such issues, the predetermined discursively role to men and women through a dualistic, binary and sexist perspective, is questioned. This article concludes that theoretical currents here adopted do not despise production conditions inherent to the meaning. Therefore, the analyzed poems are understood as filled with the I-you-here-now of the discursive enunciation.

KEYWORDS: Production conditions. Monologism. Dialogism. Man. Woman.

 

Introdução

Em meados do século XX, a crítica literária ganhou novas características, novos questionamentos e novas perspectivas de análise. Desse modo, a noção difundida no Romantismo de que o texto literário era resultado da subjetividade do autor entra em xeque. Tais mudanças conceituais, segundo Dominique Maingueneau, em O Discurso Literário, vêm conjuntamente com:

As teorias da enunciação linguística, as múltiplas correntes da pragmática e da análise do discurso, o desenvolvimento no campo do literário de trabalhos que recorrem a Bakhtin, à retórica, à teoria da recepção, à intertextualidade, à sociocrítica etc., impuseram progressivamente uma nova apreensão do fato literário no qual o dito e o dizer, o texto e o contexto, são indissociáveis. (MAINGUENEAU, 2012, p. 7)

Assim, vale dizer que a obra literária deixa simplesmente de ser vista como resultado de um mérito imaginativo e passa a se tornar algo situado no tempo e no espaço. O autor, por sua vez, deixa de ser um criador e passa a ser um mediador entre a infraestrutura socioeconômica de seu tempo e a superestrutura, marca de sua sociedade (o contexto econômico evocado), endossando o status quo ou negociando com ele.

Dizer que um texto é autotélico é fechar os olhos às problemáticas que perpassam a sociedade. Claro que, quando usamos aqui o termo problemáticas referimo-nos ao discurso. E é justamente nesse ponto nevrálgico que essas novas perspectivas de análise vão atuar.

Conforme Maingueneau “[a análise do discurso] traz para o primeiro plano os dispositivos comunicacionais e enunciativos, seja em termos de gênero do discurso ou de cenas de enunciação” (MAINGUENEAU, 2012, p. 37). Esse caráter investigativo pode trazer reflexões acerca da própria realidade (MAINGUENAU, 2012) evocada, desvendando, conforme o teórico, os modos de perpetuação dos discursos presentes na sociedade.

Lançar a atenção para a questão discursiva nos permite desvendar um discurso, posto acima do bem e do mal, assegurado por uma metafísica pré-definida. Tal Discurso, porém, não é nada imanente. Muito pelo contrário, é resultado de construções superestruturais, que marcaram as referências da tradição ocidental; e mais, tais construções se asseguram através da preservação das metanarrativasi calcadas no mesmo, no imanentismo, na inibição do dialogismo, na primazia de um ser em detrimento do outro. Tais edificações começam, através dos novos métodos de análise, a serem questionadas por suas aporias; começa-se a examinar que ética é essa que sobrepõe um ser e reduz o Outro à categoria de o(a)bjeto ao ser narrado, sem direito à vozii.

Cada sexo tem sua função, seus papéis, suas tarefas, seus espaços, seu lugar quase pré-determinados, até em seus detalhes. Paralelamente, existe um discurso dos ofícios que faz a linguagem do trabalho uma das mais sexuadas possíveis. “Ao homem, a madeira e os metais. À mulher, a família e os tecidos”, declara um delegado de operários da exposição mundial de 1867. (PERROT, 1988, p. 178)

Perrot, desse modo, permite perceber de que modo o conceito de mulher é essencialista, pois define previamente os papéis desse gênero; imanente, porque essa essência transcende a individualização da mulher e cria o estereótipo de uma mulher ideal; além de inibir o dialogismo, visto que a mulher se encontra sem voz diante das funções que lhe são previamente estabelecidas.

Dadas essas considerações iniciais, podemos iniciar nossa análise dos dois poemas, de Carlos Drummond de Andrade e de Adélia Prado, respectivamente, levando em consideração o discurso sobre a mulher como o Outro, como se edificou e como se mantém em muitos setores até hoje.

Parte Integrante da obra Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade, o “Poema de sete faces” foi publicado em 1930, oito anos depois da Semana de Arte Moderna. O caráter estrutural do texto pode comprovar uma característica fundamental dos modernistas: a quebra dos paradigmas da forma fixa poética.

Também o poema de Adélia Prado, “Com licença poética”. Publicado em 1976, na obra Bagagem, ratifica, 54 anos depois da Semana, o possível distanciamento dos ditames da forma. Trata-se de uma paródia do “Poema de sete faces”; possui uma só estrofe, versos livres e brancos.

Vê-se que os textos são escritos em tempos distintos. No entanto, há que se atentar a como os discursos sobre a mulher permanecem inseridos na sociedade, seja para que se dialogue com o já posto, seja para que se rasure e se construa uma nova perspectivaiii.

Poema de sete faces: o homem em meio à inadaptação

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo. 

Carlos Drummond de Andrade, Alguma poesia (1930)

De sete estrofes se compõe o poema de Drummond. Estas variam em questão de número de versos: vão desde tercetos a quintilhas. Os versos são livres e, quanto à rima, ora há (como na sexta estrofe), ora não há. Prevalece, em todo caso, a irregularidade.

Cada uma das estrofes mostra a face de um homem, do eu poético/sujeito da enunciaçãoiv. Assim, Drummond apresenta, nesse poema, uma temática de cunho existencialista, para a qual se torna necessário apresentar-se em várias faces de suas escolhas, pois a essência do homem é construída na sua existência em sociedade, nos seus desdobramentos, nas várias funções sociais, que deve cumprir; mas o eu evocado por Drummond é inadaptado a essas personas sociais, pois é gauche, é torto como o anjo que o orienta.

Em seu livro A Construção Social da Masculinidade (2004), Pedro Paulo de Oliveira explica a condição duma sociedade que não aceita a heterogeneidade de seus integrantes. Consoante suas ideias,

Para um ideal de masculinidade que se confundia com a própria imagem positiva da sociedade burguesa, onde qualidades como autocontrole, disciplina, força, iniciativa, coragem, responsabilidade etc., definiam as virtudes sociais em si, quaisquer agentes que não estivessem dentro dos padrões estipulados destacavam-se como bizarros, estranhos e perigosos. Enfraquecidos pela própria dinâmica social, mantenedora de hierarquias valorativas e simbólicas que afiançavam o desenho de uma assimetria social que lhes negava qualquer forma de poder e influência, logo passavam a representar a própria fraqueza e, num efeito inverso, suas mazelas simbólicas apareciam como fruto de seus defeitos, exprimindo-se como constitutivas dos indivíduos pertencentes a esses grupos. (OLIVEIRA, 2004, p. 79-80)

Se adentrarmos na poesia, percebemos que o eu poético/sujeito da enunciação encontra-se em desencanto e busca compreender o papel masculino de ser-estar no mundo. Em sua concepção, o mundo é vasto e o homem, aquele que assume papéis, como em uma peça de teatrov. Isso significa dizer que, enquanto o homem pode (e deve) assumir diversas funções no âmbito social, asseguradas por um direito positivo, estabelecido pelo Estado, para a mulher resta a função doméstica, orientada por um direito natural, derivado apenas da natureza humana.

O autor vai utilizar um recurso singular para caracterizar o modelo de homem social: a polifonia, o que, de alguma maneira, remonta aos estudos bakhtinianos. Em seu livro Problemas de la poética de Dostoievski (2003), Mikhail Bakhtin frisa a emergência de um novo gênero literário: o romance polifônico.

Antes dele, as tentativas de se interpretar Dostoievski se pautavam nas características do romance monológico. É claro que não alcançaram o sucesso desejado, visto que o romance polifônico possui uma natureza dialógica; as personagens deixam de ser portadoras do discurso do sujeito que as narra e passam a ser enunciadoras de sua própria palavra. (BAJTÍN, 2003, p. 13-15, tradução nossa)

A emergência desse novo gênero não significa, conforme o próprio Bakhtin, a completa extinção dos gêneros ditos monofônicos; no entanto, propõe uma nova maneira de enxergá-los. Assim, Drummond preserva esse caráter polifônico na medida em que cada faceta de seu eu poético/sujeito da enunciação possui uma voz que dialoga de modo ambivalente com as demais. No entanto, o diálogo de Drummond nada mais é que um monólogo: são as várias visões de mundo de um só ser, ainda que multifacetado.

Percebe-se uma mistura de vozes gramaticais no texto; ora a terceira pessoa, ora a primeira. Essa característica reflete a multiplicidade de eus necessária para se viver em sociedade, e Drummond coloca em questão as dificuldades de se adaptar a essas múltiplas vertentes, lamentando o fato de ter sido predestinado ao erro por não conseguir se adequar às normas dominantes esperadas para um homem em sociedade. No artigo Discursos sobre a Masculinidade (1998), publicado na Revista Estudos Feministas, da Universidade Federal de Santa Catarina, Pedro Paulo de Oliveira esclarece-nos acerca das construções discursivas impostas ao homem alfa.

Segundo ele,

[…] autores [desde o final da década de 50] […] destacavam em seus trabalhos os vários aspectos problemáticos do fato de ser homem. Desde a questão da alienação no trabalho, burocracia na política e na guerra, comercialização da sexualidade solapando a masculinidade, contradição entre a imagem do macho hegemônico e a condição real de vida dos homens, até os conflitos oriundos de exigências paradoxais na construção da identidade masculina e que levavam a um sentimento de impotência. (OLIVEIRA, 1998, p. 3)

Ora, essa tomada de consciência, conforme o próprio autor coloca, surge de uma reação auto-nomeativa e vitimatória do homem (OLIVEIRA, 1998, p. 2). Parece ser essa a discursividade que permeia a poesia de Drummond, presente, por exemplo, na quinta estrofe: “Meu Deus, por que me abandonaste / se sabias que eu não era Deus / se sabias que eu era fraco.” (ANDRADE, 2013, p. 11-12). Tal passagem mostra uma fragilidade diante do mundo, algo, aliás, atribuído à mulher, no campo passividade, da submissão, destituída de um logos. Tal afirmativa pode ser corroborada pelo que Simone de Beauvoir descreve como gênero negativo em O Segundo Sexo: A experiência vivida (1967):

Com efeito, o homem representa hoje o positivo e o neutro, isto é, o masculino e o ser humano, ao passo que a mulher é unicamente o negativo, a fêmea. Cada vez que ela se conduz como ser humano, declara-se que ela se identifica com o macho. (BEAUVOIR, 1967, p. 148)

No entanto, uma análise mais profunda revela uma série de incompletudes resultantes entre o domínio simbólico imposto e o vivenciado pelo homem. Oliveira (1998) nos cita algumas, dentre elas, talvez a mais digna de nota seja o fato de o homem se tornar vítima de seu próprio poder exercido na sociedade. No momento em que ele assim é visto, são trazidas a segundo plano as conflituosas relações de classe, de gênero e etnia.
O homem é vítima não passiva, mas ativa. Ele desde sempre é sujeito de sua própria enunciação, logo traz suas angústias e seus receios como consequência de um sistema impiedoso, o que não é bem verdade. Esse sistema é, em realidade, fruto de uma construção social em que o próprio homem tem primazia. O que ele sofre, pois, nada mais são do que as dores de sua dominação simbólicavi, dores essas – vale reafirmar – mais sentidas pelos que estão em segundo plano; por aqueles que não têm voz, tidos como objetos ou abjetos.

Com licença poética: a mulher em sociedade

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.  Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado, Bagagem (1993)

O poema aborda a problemática do indivíduo como ser social, mas a partir da voz da mulher e as estratégias usadas para impor seu silenciamento. Esse eu poético/sujeito da enunciação vai tratar de seu nascimento e do modo como a mulher é vista na sociedade. Problematiza-se assim, a condição vigente da mulher, essa espécie envergonhada, subjugada.

No entanto, o locus enunciativo de onde fala, aborda possibilidade de empoderamento da mulher, com a negação de sua passividade, produto da interiorização da condição de outro. Nas palavras da poetisa, nascera a mulher para carregar bandeira (3º verso), muito embora aceite os subterfúgios que lhe cabem (6º verso).

É certo que a subjugação feminina como o Outro, isto é, o grande outro, impôs-se como estratégia discursiva para restringi-la a tarefas secundárias e rotineiras como a geração/criação de filhos e filhas relegados ao doméstico, com destituição de importância prática e intervencionista na ordem dos acontecimentos sociais. Simone de Beauvoir trata sobre essa dicotomia de forma explícita em seu livro O Segundo Sexo: fatos e mitos (1970):

[…] através de uma anexação total, a mulher seria rebaixada ao nível de uma coisa; ora, o homem pretende revestir de sua própria dignidade o que conquista e possui; o Outro conserva, a seus olhos, um pouco de sua magia primitiva; como fazer da esposa ao mesmo tempo uma serva e uma companheira […]. (BEAUVOIR, 1970, p. 102)

Tal problemática torna-se fácil de ser compreendida se fizermos uma retrospectiva aos costumes da Antiguidade, quando as sociedades hebraica, grega e romana atribuíam à figura feminina a responsabilidade pelas mazelas, que afligiam aquelas populações, em especial, o homem. Um bom exemplo dessa atribuição de qualidades negativas é como a figura de Eva, mulher de Adão, foi construída nos discursos religiosos que, ao comer o fruto do bem e do mal, põe em ruína toda a criação, logo, faz-se da mulher a personificação do pecado e responsável pelas desgraças, isso sem mencionar as bruxas da Idade Média e suas maldades secretas.

Foi a partir do questionamento à ordem vigente, que as mulheres tentaram elaborar estratégias como válvula de escape ao destino a elas atribuído. Fruto do Iluminismo, – o Feminismo nasce do intenso debate às ideias e da necessidade de mudança em contrapartida ao Antigo Regime, absolutista e estamental, – insurge-se em defesa da igualdade e possibilidade de emancipação de todos e todas. Juan Sisinio Pérez Garzón, em seu livro História del Feminismo (2012), elucida os ideais da construção desse projeto popular:

[…] o feminismo sempre tem sido expressado de forma plural, visto que é parte da democracia, e porque sua meta não é ser como os homens, mas conseguir que as mulheres sejam as protagonistas de suas próprias vidas, o que implica necessariamente uma pluralidade de perspectivas nesse caminho de construção da igualdade social. (GARZÓN, 2012, p. 21, tradução nossa)

Dessa forma, ao seguir esse raciocínio de pluralidade, igualdade social e, a princípio entre homens e mulheres, e depois de gênero, o poema em análise descreve a impossibilidade de empoderamento da mulher. Dificuldade essa apenas aparente, pois, através da licença poética, vão-se questionar e negociar com os valores reservados à mulher pela tradição, em nome de uma ressemantização/ressignificação discursiva, em atenção às narrativas não hegemônicas.

Problemáticas e possibilidades no campo da ontologia-epistemologia-ética-estética

Várias formações discursivas perpassam o poema de Drummond e de Adélia, ora em reforço a narrativas hegemônicas, ora a não hegemônicas, isto é, a princípio ao homem tudo é garantido e à mulher, a sujeição; mas, ao mesmo tempo, esboçam-se aí questionamentos acerca dos papeis assumidos socialmente, por homens e por mulheresvii. Em uma esfera maior, em termos de sociedade brasileira, só recentemente é que podemos identificar ações afirmativas em relação aos direitos das mulheres, no sentido de coibir o assédio moral e sexual, que essas sofrem. Outro dado a ser levado em conta é que o processo pela igualdade de gênero começa a ser idealizado a partir de 1945, com a Carta das Nações Unidas, mas somente trinta anos depois é que ocorre um evento em favor das mulheres como a Iª Conferência Mundial sobre a Mulher, que data de 1975!

Kubissa, em seu texto La diferencia sexual como diferencia esencial: sobre Luce Irigaray (2010), esclarece essa questão quando afirma:

A mulher – estruturada em seu desejo pelo desejo masculino e pensada como objeto também pelo sujeito masculino – resulta ser pouco mais que uma falsificação, um negativo ou uma sombra […]. De modo que a mulher foi projetada como objeto do sujeito, que a aprisiona deste modo em suas redes categoriais e simbólicas como o outro. (KUBISSA, 2010, p.267)viii

O modo passivo atribuído à mulher é uma reprodução de toda uma construção da sociedade ocidental. Segundo Amélia Valcárcel, em Feminismo en el Mundo Global (2012), tanto no Contrato Social, quanto no Emílio, ambos de 1762, Rousseau afirma:

As mulheres são um sexo segundo e sua educação deve garantir que cumpram o que lhes cabe: agradar, ajudar, criar os filhos. Para elas, não lhes foram feitos os livros e os tribunais. Sua liberdade é detestável e rebaixa a qualidade moral do conjunto social. (VALCÁRCEL, 2012, p. 61)ix

Há, dessa maneira, a necessidade, segundo o discurso da sociedade ocidental, de inibir a voz da mulher, tornando-a como mera porta-voz do já aceito como Verdade, no âmbito ontológico e epistemológico, que vê o homem como o detentor da razão. Por outro lado, se ganhasse direito à fala, deixaria de ser vista como infantex, como ocorre no poema de Adéliaxi.

Ora, se a tradição ocidental, com contornos efetivos a partir da modernidade, creditou ao homem força, foco, objetivo, razão e ciência, esse não poderia titubear diante do que lhe era esperado, sob pena de sanção da comunidade. Michele Perrot, em Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros, vai dizer que:

[…] esse velho discurso retoma no século XIX um novo vigor, apoiando-se nas descobertas da medicina e da biologia. […]. Aos homens, o cérebro (muito mais importante do que o falo), a inteligência, razão lúcida, a capacidade de decisão. Às mulheres, o coração, a sensibilidade, os sentimentos. (PERROT, 1988, p. 177)

É notório que esse discurso, essa metanarrativa, de que todos os homens devem estar para a razão e as mulheres, para a emoção, se conserva com o passar do tempo, e ainda se veem resquícios significativos durante o século XX e, quiçá, no século XXI! Adélia Prado, por outro lado, vai abordar a oposição razão x devaneio, em seu texto, para tentar rasurar tal oposição. No momento em que diz “Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.” (12º verso), há um diálogo que remonta aos discursos hegemônicos e, ao mesmo tempo, os questiona. Ora, a princípio, sentir está para o irracional e teria a mulher a sina de ser restringida ao devaneio, à não razão. Não é demais afirmar que as metanarrativas tanto de cunho filosófico, religioso, ideológico e mesmo médico não se cansaram de reforçar a misoginia. Magali Engel, em seu texto Psiquiatria e Feminilidade (1997), explora esse aspecto das ciências, quando observa que a medicina do século XIX atribuía à mulher nevroses e nevralgias devido a uma espécie de defeito do seu corpo:

[…] no organismo da mulher, na sua fisiologia específica estariam inscritas predisposições à doença mental. A menstruação, a gravidez e o parto seriam, portanto, os aspectos essencialmente priorizados na definição e no diagnóstico das moléstias mentais que afetavam mais frequentemente ou de modo específico as mulheres. (ENGEL, 1997, p. 333)

Dessa forma, apesar de ter havido a conquista da voz por parte da mulher (característica que se vê com o eu poético feminino de Adélia, dona de sua própria voz), o que diz ainda está categorizado na ordem do irracional, do devaneio, na sina de se sentir o que se escreve. Aprofundando-se, nesse aspecto, é possível perceber que nos dois poemas, aqui enfocados, ontologia, epistemologia e ética são rasuradas e questionadas, mas ainda sob a perspectiva legitimada dos primeiros dos pares, cujas narrativas se mantiveram hegemônicas nas sociedades ocidentais.
Na construção da sociedade ocidental, a ética foi sempre vista de um ângulo único, como um correto em detrimento do errado. A mulher, como se pode constatar, foi objeto desse discurso. Em relação à ética religiosa, Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo: fatos e mitos (1970), afirma que

[…] ante a Eva pecadora, a igreja foi levada a exaltar a Mãe do Redentor. Seu culto tornou-se tão importante que se pode dizer que no século XIII Deus se fizera mulher; uma mística da mulher desenvolve-se, portanto, no plano religioso. (BEAUVOIR, 1970, p. 123)

Essa mística da mulher é que vai ditar o comportamento a ser seguido, de santidade, conformidade e martírio. A santidade vai se revelar na natureza comportamental, a natureza do ser cordato, ser que concorda. Essa conformidade vai acarretar a aceitabilidade do martírio e dos subterfúgios no cumprimento da sina.

A ética, ligada aos meios de produção de determinada sociedade, vai negar a historicidade dos fatos e servir para legitimar discursos construídos na ordem do simbólico-ideológico, através de uma suposta razão metafísica, do sempre foi assim… Por outro lado, qualquer tipo de representação social deve ser vista em atenção ao uso da palavra, feita por um sujeito da enunciação, mediador, e os textos de Drummond e Adélia, aqui enfocados, confirmam o que dissemos até aqui. Sobre isso, assevera Maingueneau, em Contexte de l’Oeuvre Littéraire: énonciation, écrivain, société (1993),

Nesta perspectiva, se concebe a obra como representação, como um agenciamento de “conteúdos” que permite “exprimir” de maneira mais ou menos desviadas ideologias ou mentalidades. As obras falam efetivamente do mundo; sua enunciação é parte envolvida neste mesmo mundo, o qual é esperado representar […]. A literatura constitui assim uma atividade; não somente ela tem um discurso sobre o mundo, mas, ao mesmo tempo, gera sua própria presença no mundo. (MAINGUENEAU, 1993, p. 19-20)xii

Constituída a ética, delineia-se a atribuição do belo/feio da estética a ser internalizada pelos indivíduos de determinada sociedade. A princípio, pode-se atribuir a valoração do que seja belo ou feio à mentalidade restrita a uma época, mas, em realidade, encontra-se lastreada na tradição em modelo da tradição aceita do homem-branco-burguês-europeu, disseminado pelo Ocidente letrado. Tal concepção também se encontra presente nos poemas: Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade, e Com licença poética, de Adélia Prado, sobre o que nossas indagações se encaminham, a partir de agora.

Drummond escreve na quarta estrofe de seu Poema de sete faces: “O homem atrás do bigode / é sério, simples e forte. / Quase não conversa. / Tem poucos, raros amigos / o homem atrás dos óculos e do bigode.” Neste trecho, é perceptível o enaltecimento da virilidade do homem, que é um ser forte e justo, característica representada pelo bigode; é também um ser inteligente, detentor da razão, característica expressa pelo uso dos óculos. Vê-se, desse modo, um padrão estético referente ao homem.

Adélia Prado, por sua vez, também aponta, entre outras perspectivas, a estética feminina através de discursos muito comuns desse gênero: “Não sou tão feia que não possa casar”. Vê-se que diz respeito à beleza da mulher e parece que a autora expressa aqui o conceito beleza legitimada para uma relação social como o casamento. Enquadra-se o feminino, assim, conforme os desejos do homem.xiii

Tal discurso encerra a visão ocidental atribuída à mulher, isto é, casar, ter filhos e criá-los, enquanto ao homem foi esperada a vida produtiva, na esfera pública, e mantenedor da família. Tais valores encontram na estética também a garantia de silêncio da mulher.

Considerações Finais

Pode-se inferir que desde Drummond (década de 1930) até Adélia Prado (década de 1990) existem modificações perceptíveis na sociedade. Essas modificações ocorreram devido aos movimentos sociais de meados do século XX, entre os quais se encontra o feminismo. Por sempre ter sido considerada como ocupante do segundo dos pares da perspectiva dualista, a mulher sempre tida como infante, sem voz, sempre fora o objeto narrado; ao contrário do homem, o ser que narra a si e ao outro.
Tanto Drummond quanto Adélia Prado problematizam os discursos hegemônicos, inclusive sobre os gêneros masculino e feminino, entretanto, é possível afirmar que Drummond ainda endossa e reforça certas atitudes esperadas para um homem, enquanto Adélia, ao assumir a voz, como sujeito da enunciação, problematiza questões ligadas à vida da mulher. Assim: ontologia-epistemologia-ética-estética ainda favorecem o homem nos poemas aqui abordados.

Diante do exposto, vê-se que é característica do texto canônico se utilizar da metafísica para priorizar um ser em detrimento de outro ser. O conceito de mulher também é resultante dessa ação. Esse fato é observável na linha da ontologia, na qual o homem é tido como ser social e a mulher como ser voltado para o privado; na epistemologia, em que o homem está voltado para a razão, enquanto a mulher, para a emoção; na ética, que determina o que é certo e errado em aspectos comportamentais do homem e da mulher; e na estética, em relação ao fim a que se destina a beleza. Desse modo, o monologismo é posto em xeque, abrindo-se espaço ao dialogismo, entre vozes heterogêneas, ao questionamento da tradição e à possibilidade de assunção da voz do segundo dos pares.

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VALCÁRCEL, Amelia. Feminismo en el mundo global. Madrid: Cátedra, 2012.

SOUSA, Gladson Fabiano Andrade; CAVALCANTE, José Dino. “A ironia na obra Alguma Poesia de Carlos Drummond de Andrade. Revista Littera Online, Maranhão, Brasil, n. 5, 2012.

 

i Quem traz o conceito de metanarrativa é J-. F. Lyotard, em seu livro A condição pós-moderna. Segundo o autor, esses metadiscursos são modos de legitimação do saber tradicional, que se dá através do relato: “o que se transmite com os relatos é o grupo de regras pragmáticas que constitui o vínculo social” (LYOTARD, 2000, p.40). Ainda conforme o autor, com o advento da técnica, o relato deixa de ser saber. No entanto, a ciência não pode se legitimar como verdadeira sem se utilizar do relato que, para ele, é um não-saber (Ibid., p. 53). Isso explica o fato de tanto o saber narrativo quanto o saber científico terem assegurado tais discursividades.

ii Para melhor elucidar essa relação entre os sexos, Beauvoir afirma: “A história mostrou-nos que os homens sempre detiveram todos os poderes concretos; desde os primeiros tempos do patriarcado, julgaram útil manter a mulher em estado de dependência; seus códigos estabeleceram-se contra ela; e assim foi que ela se constituiu concretamente como Outro” (BEAUVOIR, 1970, p.179).

iii O poema Com licença poética de Adélia Prado tem uma diferença de 46 anos, em relação ao Poema de Sete Faces de Carlos Drummond de Andrade, publicado em 30, do século passado. Percebe-se que ambos refletem as condições de produção, de quando surgiram, cujos locus enunciativos indiciam contrastes do vivível. O Poema de Sete Faces dialoga com a década de trinta do século XX, em meio a um turbilhão de demandas, em relação ao contexto sócio histórico, como a queda da Bolsa de Valores em 1929, em Nova York. Especificamente, no Brasil, passávamos pela chamada Revolução de Trinta, em busca de uma Constituição cidadã, como o posterior Estado Novo ditatorial de Getúlio Vargas. Por outro lado, nos anos 70 do século passado, podemos destacar movimentos a favor das minorias e a segunda onda do feminismo, com obras como A mística Feminina (1963) de Betty Friedan, e Política Sexual (1969) de Kate Miller, sintetizada no slogan, “O pessoal é político”, isto é, tudo que ocorre no espaço privado, e o corpo encerra o que há de mais íntimo para o ser humano, legitima-se por uma moral prescrita a partir do espaço público. Tal constatação levou a uma série de revisões acerca de normas comportamentais prescritas de modo indistinto pelo Ocidente.

iv Compreendamos aqui a relativização dessas expressões. Com as novas tendências da Crítica e Teoria Literárias, esse eu poético/sujeito da enunciação passa a ser visto como veiculador dos discursos sociais de sua época. A enunciação é uma construção social, logo ela deixa de ser um mero produto da consciência imaginativa do autor apenas comprometido com suas dores e passa a ser parte de uma mentalidade de determinada sociedade. O autor, por sua vez, não vai apenas reproduzir essa mentalidade, mas servir de mediador, dialogando com ela. Assim, veem-se que as características analisadas nos poemas daqui em diante não devem servir de puro e simples rótulo desse mediador; antes, são os discursos que perpassam a sociedade da qual faz parte.

v Claro que essa concepção, em Drummond, é fortemente marcada por uma ironia em sua concepção de homem, branco e inclinado ao fracasso. Conforme o artigo de Sousa e Cavalcante, publicado na Revista Littera Online, da Universidade Federal do Maranhão, um dos aspectos da ironia drummondiana reside no “modo ambivalente de defesa e de vitória do gauche diante do mundo” (SOUSA; CAVALCANTE, 2012, p. 124). Assim, o eu poético/sujeito da enunciação reflete as dores de sua condição torta, deslocada, ao mesmo tempo em que demonstra sua condição privilegiada de homem em contraste com um Outro.

vi Bourdieu, em sua obra A dominação masculina: a condição feminina e a violência simbólica, dá-nos um conceito dessa dominação por símbolos: “Essa relação social extraordinariamente ordinária oferece também uma ocasião única de apreender a lógica da dominação, exercida em nome de um princípio simbólico conhecido e reconhecido tanto pelo dominante quanto pelo dominado, de uma língua (ou uma maneira de falar), de um estilo de vida (ou uma maneira de pensar, de falar ou de agir) e, mais geralmente, de uma propriedade distintiva, emblema ou estigma, dos quais o mais eficiente simbolicamente é essa propriedade corporal inteiramente arbitrária e não predicativa que é a cor da pele.” (BOURDIEU, 2016, p. 11)

vii Tais questionamentos podem ser constatados nos últimos versos de Com licença poética: “Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. / Mulher é desdobrável. Eu sou.” (PRADO, 2012, p.11).

viii Tradução da professora Sandra Sacramento.

ix Cf. nota nº. 8.

x Tem-se que infanta vem do latim infans, -antis, aquilo que não tem voz; que não fala.

xi A mulher, no ato de sua fala, deixa de ser vista como infante. Ao mesmo tempo, porém, reconhece o peso do discurso dominante: “vai carregar bandeira. Cargo muito pesado pra mulher, / esta espécie ainda envergonhada.” (PRADO, 2012, p.11).

xii Cf. nota nº. 8.

xiii Beauvoir ilustra essa relação quando analisa as modas: “A idéia de feminilidade impõe-se de fora a toda mulher, precisamente porque se define artificialmente pelos costumes e pelas modas; ela pode evoluir de maneira que os cânones se aproximem dos que adotam os homens: nas praias, as calças compridas tornaram-se femininas. Isso não modifica em nada o fundo da questão: o indivíduo não tem liberdade de moldá-la à vontade” (BEAUVOIR, 1967, p. 452).

 

Data de envio: 14 de maio de 2017.