Análise de “A mão e a luva”, de Machado de Assis, segundo conceitos da filosofia de Schopenhauer

Miguel Ângelo Andriolo Mangini

RESUMO: A intenção deste trabalho é analisar o romance A mão e a luva, de Machado de Assis, sustentando-se por determinados conceitos dos estudos, de Schopenhauer, da conduta humana, no quarto tomo de O mundo como vontade e representação. Para tanto, realiza-se uma introdução aos conceitos utilizados da filosofia schopenhaueriana. Em seguida, passa-se a uma análise narrativo-associativa do romance de modo a ver-se a presença de tal filosofia em A mão e a luva. Dessa análise, resulta que é possível sistematizar A mão e a luva com base em conceitos, de Schopenhauer, verificáveis em várias instâncias da obra. Por fim, tem-se que a filosofia de Schopenhauer pode ser aplicada à investigação machadiana da conduta humana, considerando que a literatura de Machado explora essa conduta com profundidade.

PALAVRAS-CHAVE: A mão e a luva. Literatura e filosofia. Machado de Assis. Schopenhauer.

ABSTRACT: This article’s intention is to analyze Machado de Assis’ romance A mão e a luva by sustaining itself by some of Schopenhauer’s studies about human conduct, in the fourth tome of his O mundo como vontade e representação. To achieve so, the paper introduces the schopenhauerian concepts utilized. Followingly, the research proceeds with a romance narrative-associative analysis in order to notice that philosophy’s presence in A mão e a luva. From this analysis, results that it is possible to systematize A mão e a luva by Schopenhauer’s conceptual creation, verifiable in several instances of this romance. At last, there is that Schopenhauer’s philosophy can be applied to the machadian human conduct investigation, considering that Machado’s literature explores this conduct with profoundness.

KEYWORDS: A mão e a luva; Literature and philosophy; Machado de Assis; Schopenhauer.

 

Este trabalho intenta analisar a obra literária A mão e a luva ([19–]), de Machado de Assis, à luz de alguns dos conceitos filosóficos da autoria de Arthur Schopenhauer, em O mundo como vontade e representação. Para isso, introduzem-se os conceitos da obra de Schopenhauer contidos nestes capítulos: “Vida e morte”, “Necessidade dos atos da Vontade”, “Viver é sofrer” e “O suicídio” ([19–]). Depois, à luz desses conceitos, procura-se citar alguns trechos de A mão e a luva como segmentos de objeto desta análise, que formam a progressão narrativo-associativa. Seguindo essa metodologia, torna-se possível uma análise do romance A mão e a luva a partir de conceitos de Schopenhauer.

Adiante, cabe especificar a temática que se faz mais presente nessa análise: a morte e o sofrimento. Aborda-se essa temática na medida em que ela se faz muito presente no romance e permite entender alguns desdobramentos dos conflitos pessoais. E o presente texto busca verificar esses desdobramentos no romance, ao perceber como alguns conceitos da filosofia schopenhaueriana estão presentes em A mão e a Luva. Então, a fim de bem estruturar esse propósito, este artigo é dividido em seções. A segunda seção introduz a filosofia de Schopenhauer e seus conceitos utilizados neste trabalho, sobre os quais se disserta mais profundamente na análise. Enfim, a análise se dá na terceira seção, em que o romance será resumidamente parafraseado, citado e relacionado a tais conceitos. Finalmente, em Considerações finais, a pesquisa é brevemente retomada com o fim de terminá-la.

Vontade, Sofrimento, Negação

A mão e a luva ([19–]) aprosa profundas questões da idiossincrasia humana e sua interação com a sociedade; por conseguinte, os conceitos escolhidos de Schopenhauer têm a ver com uma investigação da conduta humana, retirados de Vida e morte, Necessidade dos atos da vontade, Viver é sofrer e O suicídio.

Inicialmente, é necessário compreender dois conceitos da filosofia de Schopenhauer que são base para os outros. O primeiro, a representação, é uma realização formal do segundo, a vontade. Entende-se pelo segundo que a vontade é a própria existência da coisa. Em outros termos, vontade é aspiração, inclinação, de forma que, se algo existe, esse algo é aspiração (SCHOPENHAUER, [19–]). Existe-se, então, como inclinação. Mas é preciso pontuar que algo somente existe enquanto uma representação das coisas produzida por receptores existenciais da natureza, a exemplo dos órgãos sensoriais, como se esse órgãos concebessem as coisas. Em outras palavras, a coisa existe na medida em que a vontade recebe sua forma desses receptores; recebendo essa forma, a vontade se faz presente no mundo. A representação dá forma necessária à vontade. Porém, não é o caso que essa geração seja necessariamente uma fábrica imagética das coisas, como a imaginação. Isto é: a aspiração não obrigatoriamente é representada mentalmente.

Portanto, a vontade é a aspiração à coisa e é a coisa em si, e seu plano existencial é representação. Resta saber, porém, como esses conceitos são úteis para a análise da conduta humana. Acerca disso, sabe-se que, no humano, a vontade se manifesta por uma inclinação desejante, paralela à criação da existência em si; e entenda-se por “desejo” não uma agitação sentimental condicional para a existência, mas um modo específico de o humano representar a existência (SCHOPENHAUER, [19–]). No caso humano, deseja-se algo e esse algo é criado, porque a aspiração é a forma de concepção da existência no humano. Mas, segundo o pensador ([19–]), o requerimento material dessa aspiração é sua realização, de que não depende a vontade como coisa em si e como aspiração, isto é, algo pode existir e não ser realizado, de modo que o desejo exista distante de sua realização, e é isso que origina a possibilidade do sofrimento ou da felicidade. Schopenhauer ([19–]) explica disso que, enquanto a vontade existe, a distância entre a aspiração, coisa em si, e a sua realização, materialização da aspiração, é o próprio sofrimento.

No entanto, Schopenhauer ([19–]) destaca que a vontade não é autossuficiente para realizar-se: o sofrimento é a irrealização da vontade. É como se a existência devesse ser afirmada materialmente. Dito de outra forma, é como se a existência enquanto aspiração necessitasse de um complemento para funcionar com coerência – esse complemento é a realização no mundo. Por outro lado, o autor ([19–]) pensa que a felicidade é a realização da vontade, mas pontua que há uma dificuldade natural para alcançar a realização e, portanto, a felicidade. Sendo assim, as realizações são instantâneas e intervaladas demoradamente por irrealização, de modo que a felicidade seja rara na duração do sofrimento. Por essa razão, a existência é dita desconfortante, porque a vontade é variável e independente, de maneira que não haja uma continuidade de realização, tampouco uma solução definitiva para o sofrimento.

Há, porém, aqueles que assumam que o sofrimento possa ser terminado com o término da vontade, quando há muita irrealização. Assim, aponta-se outro aspecto que Schopenhauer ([19–]) dá à vontade, o de eternidade, já que é necessário não poder existir senão no presente, e, se o presente é interminável, a vontade supõe uma eternidade no presente. Conseguintemente, a morte, outra manifestação da vontade, não a encerra.

Se a morte não encerra definitivamente a existência, informa Schopenhauer ([19–]), então a crença do indivíduo no término pela morte é incoerente com natureza da vontade. Isso é explicado por a vontade ser eterna e ter objetos de aspiração intermitentes e diversos – as diferentes coisas; uma mão ou uma luva, por exemplo. Mas esses objetos são em si invariáveis: ocorre que eles “circulam” entre existência real e possível com máxima imprevisibilidade, considerando que a vontade é imprevisível e livre. Logo, crer no término definitivo do sofrimento é incorreto e ilusório, já que o sofrer sempre pode vir a ser. Consoante o filósofo ([19–]), a morte não é mais que a “desatenção” da vontade a um fenômeno seu específico, que sempre pode voltar a ser. Apesar disso, quando ela é acreditada como término definitivo da vontade, a ideia da morte fomenta o suicídio, que é aspiração que clama pela cessação da irrealização da vontade. Enfim, Schopenhauer ([19–]) percebe uma alternativa ao suicídio, a negação da vontade, que quer dizer expulsar a aspiração do sujeito consciente, através da razão do caráter inteligível, contrário ao caráter empírico, que são os instintos e as ações visíveis, das quais se induz a inteligência alheia. A negação é um processo racional de desprendimento da aspiração.

Os aspirantes

A mão e a luva, de Machado de Assis, anuncia desde cedo o desejo pela morte: Estêvão, um dos personagens centrais, declara sua aspiração suicida a Luís Alves – amigo sóbrio e menos sensível – porque foi rejeitado por Guiomar, objeto máximo de paixão de Estêvão ([19–]). A narração desse desejo é textualmente anterior à descrição de sua justificativa, depois aqui mostrada. De toda maneira, Estêvão diz a particularidade da sua morte: “Morrer-se. Quem não padeceu estas dores não as pode avaliar.” (DE ASSIS, [19–], p. 27). Com isso, Estêvão justifica um desejo que, segundo Schopenhauer ([19–]), não é precisamente pela morte, mas por cessar a irrealização, portanto o sofrimento. Então, a personagem, ao desejá-lo, evidencia que sua vontade foi privada a níveis perigosos: a privação da vontade faz prevalecer o sofrimento. A vontade foi privada, conforme se saberá, em razão de Estêvão clamar pela realização do seu objeto de desejo: Guiomar.

O narrador de A mão e a luva ([19–]) conta que a história dessa privação é protagonizada por Estêvão e Guiomar. O apaixonado nunca soube claramente se sua amada o amava ou não; porém, a resposta a essa incerteza aparece quando Estêvão, decidido a viajar para outra cidade, pergunta-lhe se ela lhe enviaria alguma carta, enquanto longe. Guiomar diz que não. Desolado, Estêvão quer matar-se, contudo seu fiel amigo Luís Alves o consola. Estêvão, então, vai a São Paulo e lá se torna jurista, mas ocorre que seu aguerrimento político não existe “[…] porque ele não tinha em si a força indispensável a todo o homem que põe a mira acima do estado em que nasceu.” (DE ASSIS, [19–], p. 40). Nesse trecho, explicita-se que a vontade de Estêvão não é originalmente de política, de jurisdição, mas sua vontade poderia ser direcionada a ela através da determinação eletiva, ou seja, da deliberação racional que decide entre uma ação e outra guiada por um motivo (SCHOPENHAUER, [19–]).

O motivo pode fazer com que a ação seja outra em relação àquela aspirada originalmente; esse é o poder do caráter inteligível, é a habilidade do ser que não somente traz a vontade à luz da consciência, mas também permite que a razão decida qual ação é a melhor a ser tomada: se é a que foi aspirada, ou se é uma outra (SCHOPENHAUER, [19–]). Por isso, o poder que o inteligível exerce sobre o empírico – esquema de instintos e as ações, do qual se pode extrair logicamente o inteligível – é perigoso: desestabiliza a certidão da vontade, que provoca dor quando não realizada. Dessa forma, a vontade que Estêvão “tem” motiva sua paixão por Guiomar, ressuscitada anos depois de ser rejeitado, porque ele, “[…] que nascera para amar, […] tinha em si o contraste do nascimento com o instinto, um berço obscuro e umas aspirações à vida elegante […].” (DE ASSIS, [19–], p. 47). Assim, esse fenômeno da vontade é uma aspiração à elegância.

Por conseguinte, a “vida elegante” encontra-se em Guiomar, vislumbrada outra vez por Estêvão, por vestir um roupão que “[…] não deixava ver toda graça do talhe, que devia ser e era elegante […].” (DE ASSIS, [19–], p. 45). Já que a vontade por Guiomar é gritante, a paixão de Estêvão reaparece, e ele buscará com toda força satisfazer essa vontade, predeterminada para si. Mas a falha em satisfazê-la priva-o da vontade e produz necessários efeitos negativos, dor – portanto, a vontade gera Guiomar, mas o ser consciente dessa vontade não realiza Guiomar, que permanece como aspiração. O porquê da dificuldade em realizar Guiomar é narrado em um caso de seu passado, depois de, ainda menina, fitar séria algumas moças vagando: “A noite veio, a menina recolheu-se pensativa e melancólica […]. Mas, como a mãe se entristecesse com aquilo, Guiomar domou o próprio espírito […].” (DE ASSIS, [19–], p. 62). Então, Guiomar é inacessível por ser capaz avaliar as ações com cautela e, antes de tomar ações de instinto, reprimir suas emoções, se for preciso. Logo não cede seu amor a Estêvão.

Primeiramente, para Schopenhauer ([19–]), a meditação acerca da infinidade de possibilidades para ação, que vão ou não de acordo com a vontade, ocasiona dor. Portanto, na citação acima, a pensatividade de Guiomar é causa de sua dor: por ela ter caráter inteligível – exercício da determinação eletiva elevado, sofre mais, e não se deixa perder na paixão de Estêvão. Porém, outro caráter é o adquirido. Desse caráter, tem-se que é o que destaca as diferenças de cada ser, já que se trata da forma como o ser interage com o mundo a partir das suas decisões e ações, sendo esse caráter perceptível pelos outros (SCHOPENHAUER, [19–]). Assim sendo, Guiomar sabe da relevância de seu adquirido, então deseja não se mostrar triste à mãe, expondo-lhe outra ação, passada pela gestão do inteligível e exposta pelo empírico. Desse modo, a dor de Guiomar vem de suas cogitações, mas opta por escondê-las. Ainda, essa melancolia vem de uma privação, talvez da sua inclinação à elegância, por enquanto limitada.

Mais tarde, já órfã, Guiomar ingressa definitivamente na família de sua madrinha, que a adotou, e onde permanece até o presente. Na casa da madrinha, ou baronesa, Guiomar pôde evoluir a elegância que seu estado imaturo de infância não lhe permitiu. E o narrador elogia a realização de sua vontade: “[…] a borboleta [Guiomar desenvolvida, que também é paixão ressuscitada de Estêvão] fazia esquecer a crisálida [Guiomar imatura, que foi primeira paixão de Estêvão].” (DE ASSIS, [19–], p. 65). Por “paixão ressuscitada”, entende-se que Estêvão encontra Guiomar no jardim da baronesa e nota que a paixão não morreu. Não morreu porque a vontade é invariável e imprevisível, e ele sabia do perigo disso, embora tivesse “[…] o coração meio inclinado a amar de novo a mulher que tanto o fizera padecer um dia.” (DE ASSIS, [19–], p. 67). O narrador situa o conflito: “Tinha Estêvão contra si o passado e o futuro.” (DE ASSIS, [19–], p. 68). Porém, passado e futuro são períodos ilusórios, afirma Schopenhauer ([19–]), em decorrência de o presente ser eterno.

Schopenhauer ([19–]) nega que a vontade exista no passado ou no futuro, porque a coisa só pode existir no presente. Diante dessa perspectiva, o passado é um compilado de ideias sobre o que aconteceu no presente; por outro lado, o futuro é o conjunto de projeções, de expectativas ou temores que sustenta o mito da vida póstuma (SCHOPENHAUER, [19–]). Para Estêvão, não é diferente: as recordações do prazer com a antiga Guiomar e a esperança de que a reunião entre ele e ela renovada triunfasse causam perigo: a vontade de Guiomar é claramente desfavorável a Estêvão. Portanto, influências ilusórias o guiam ao sofrimento do obstáculo à realização. Quanto maior for a expectativa de melhoria da reunião em relação ao passado, maior será o impacto da irrealização. Assim, Estêvão deveria ater-se ao presente, para tomar uma decisão favorável. Contudo, seu caráter inteligível não lhe permitiu avaliar bem a sua vontade, e ele acabou cedendo à sua aspiração apaixonada a Guiomar. “Eu amo-a […]; talvez me espere algum grande desgosto; mas são reflexões, e eu não reflito agora, eu sinto…” (DE ASSIS, [19–], p. 70).

De fato, suprimir essa paixão seria privar-se da vontade, mas Estêvão não é capaz de deixar sua paixão, ainda que a aspiração a Guiomar lhe cause sofrimento, por ele não poder acessá-la. Dessa forma, Estêvão afirma, nesse aspecto, a presença dominante do caráter empírico, que tem a ver com as ações mais primitivas sem terem passado pelo caráter inteligível. A referida dominância traduz-se na segunda confissão de Estêvão a Guiomar, que inclui lembrança do sofrimento da primeira relação que tiveram, isto é, de quando sua vontade encontrou um obstáculo, e que inclui esperanças para o futuro do casal, que é dito apaixonadamente por Estêvão. Porém, “Era ilusão, disse ela. O sentimento que acaba de revelar inteiro, ninguém o recebe ou nutre de vontade; a natureza o infunde ou nega.” (DE ASSIS, [19–], p. 86). Com isso, Guiomar afirma que a vontade pode ser pela aparência das coisas e que Estêvão está iludido porque ao que ele aspira é a aparência de Guiomar, sem que ele tenha conhecimento do interior, do todo da moça. Ainda, Guiomar pensa que o sentimento de absoluto amor não existe nas pessoas. A natureza anula esse sentimento, porque ninguém, segundo ela, pode amar o todo de outrem.

Traduzindo a afirmação de Guiomar para termos schopenhauerianos, sabe-se que esse sentimento doloroso e de dependência de uma pessoa é um desuso do caráter inteligível na tomada de decisões, predominando o empírico. Esses caracteres muitas vezes não correspondentes em razão de possíveis fingimentos deliberados. Havendo fingimento, é impossível saber o que se pensa a partir das ações. Por isso, Estêvão está iludido: Guiomar diz que Estêvão não ama sua “sublime” totalidade, mas sim seu caráter empírico – que corresponde ou não à inteligência –, e que ele nunca poderia amar tudo de alguém. Nesse sentido, Guiomar considera que o todo do caráter de alguém seria um obstáculo para a realização dessa mesma pessoa, assim como a totalidade de Guiomar não seria sua elegância, que, como foi dito, é talvez só o que Estêvão aprecie. Porém, a vontade não pode ser “enganada” pela aparência, mas deliberada eletivamente. Desse modo, Guiomar qualifica a paixão de Estêvão como uma ilusão e assim elege que o melhor a ser feito é rejeitá-lo novamente. Fê-lo, mas também se machucou.

Leia-se: “Guiomar não tinha um coração tão mau, que lhe não doessem as mágoas de um homem que acertara ou desacertara de a amar.” (DE ASSIS, [19–], p. 90). É daí que as preocupações e os remorsos de Guiomar vêm: Schopenhauer ([19–]) conceitua o arrependimento como a “indigestão” emocional inútil provocada pela ideia de substituição de uma ação passada por outra considerada melhor. É o caso, então, que Guiomar queira ter dado a Estêvão outra resposta. Entretanto, somente seu arrependimento não é o bastante para pensar que queria aceitá-lo, mas sim para inferir que Estêvão não lhe é irrelevante. Isso tudo, porém, é cogitado por Guiomar apesar da restrição da existência ao presente, que impossibilita a volta ao passado (SCHOPENHAUER, [19–]). Então, Guiomar, inutilmente aflita e atormentada, expõe seu corpo à vastidão da noite, cuja eternidade “[…] é a mais desconsoladora lição que nos poderia dar Deus […].” (DE ASSIS, [19–], p. 90), sendo essa aflição também motivada pelas declarações apaixonadas de Estêvão.

Consoante Schopenhauer ([19–]), a vontade se manifesta através de uma formatação temporal regida pelo nascimento e pela morte. Disso, prova-se que a ideia de que, após a morte, passa-se a outro estado temporal é ilusória: se a morte é a interrupção possivelmente momentânea de algum fenômeno entre infinitos da vontade, não se pode sobreviver à vontade, porque a vontade é a coisa em si, e nada que existe é “à parte” da vontade. Em função dessa delimitação – breve ou não – da existência, o narrador do romance em questão confere um aspecto desconsolador à eternidade, já que a consciência da eternidade do presente nega a crença na infinidade da vida. A eternidade, nesse caso, não garante a vida eterna de todos os fenômenos da vontade, mas impossibilita o passado e o futuro (SCHOPENHAUER, [19–]).

Então, Guiomar padece não só de arrependimentos, mas também da fugacidade da vida, de “[…] dores de um dia, gozos de um instante, que se acabam e passam conosco, debaixo daquela azul eternidade, impassível e muda como a morte.” (DE ASSIS, [19–], p. 90). Vale acrescer, ainda, que a dor vem da consciência da eternidade, na medida em que indica a infinidade de todos os motivos para as ações posteriores. Entre infinitas possibilidades, deve-se decidir por algumas ações, em um tempo fugaz.

E os motivos não cessam de aparecer a Guiomar, pois ela tem decisões singulares a tomar, já que as crises apaixonadas de Estêvão são frequentes. Talvez, essa e outras situações difíceis com que Guiomar deveu lidar durante sua vida a obrigaram a cogitar um futuro melhor com seu “[…] pensamento, ainda que o presente nada mais lhe dera.” (DE ASSIS, [19–], p. 91). Considerado isso, Guiomar cultiva a ilusão que foge daquele desconsolo da eternidade. Segundo ela, o futuro é alcançável substituindo o tempo da vida, o presente, pela ideia de um futuro próspero; todavia, Estêvão parecia ser, a ela, uma exceção: a moça se manteve pensando no apaixonado. Então, a reciprocidade entre os dois pode ser cogitada. Mas isso é improvável: o rival amoroso de Estêvão é Jorge, e esse surge suscitando novas interrogações em Guiomar, já importunada pelo número de apaixonados. Jorge declara um antigo amor a ela, por um bilhete. Jorge é o sobrinho da baronesa, então ele e Guiomar sempre conviveram próximos.

Quanto a Estêvão e ao bilhete, que pedia um sinal de reciprocidade, Guiomar procurou ficar indiferente, “[…] mas sentiu-os, pesou-os antes de os arredar de si, o que revelará ao leitor em que proporção estavam nela combinados o sentimento e a razão […].” (DE ASSIS, [19–], p. 99). Nesse excerto, nota-se que, apesar do caráter inteligível elevado de Guiomar, ela não deixa totalmente de sentir. Antes disso, concilia sua vontade, expressa por seus sentimentos, e sua razão. Dessa conciliação, compreende-se a negação da vontade: Schopenhauer ([19–]) afirma que, com um caráter inteligível elevado, é possível negar a vontade, de modo que a aspiração seja eliminada trazendo-a à luz da consciência. Não se trata de privar a vontade, mas rejeitá-la conscientemente. Logo, negar a coisa em si é o que faz Guiomar ao rejeitar a ação instintiva e sua incerta realização – talvez, por presumir sua inviabilidade –, que é a única forma de prevenir-se do sofrimento das irrealizações.

Nesse caso, a ação instintiva seria ceder a um ou a outro amante em razão de algum indício de reciprocidade amorosa ou de um motivo específico. Um motivo que aponta para Jorge é o da baronesa – muito querida por Guiomar -, porque a madrinha gostaria de ver seu estimado sobrinho casado com a afilhada. Nessa situação, Jorge foi encorajado pela baronesa e por Mrs. Oswald, próxima à madrinha, a enviar aquele bilhete. Mas, quando Guiomar suspeita da influência de Mrs. Oswald no pedido de casamento de Jorge, a moça responde a ela, justificando seu silêncio a Jorge: “Amores não se encomendam como vestidos, sobretudo não se fingem […].” (DE ASSIS, [19–], p. 103). No caso de fingir uma reciprocidade, para satisfazer a baronesa, isso seria mau, já que a ação que contrária a vontade a priva. Além disso, é impossível “encomendar” uma outra vontade, logo Guiomar não ama Jorge, e Mrs. Oswald se resigna, dizendo: “Quem não ama não ama.” (DE ASSIS, [19–], p. 103).

De toda forma, os conselhos de Mrs. Oswald, inglesa, são bem recebidos por Guiomar, que “[…] não tinha nem a experiência nem a idade da inglesa […]; mas a experiência e a idade eram substituídas […] por um grande tino e sagacidade naturais.” (DE ASSIS, [19–], p. 106). Nisso, outro caráter surge da sagacidade natural de Guiomar. Schopenhauer ([19–]) afirma que o caráter adquirido provém de uma vivência de aspirações que permite o autoconhecimento das próprias aspirações. Esse amadurecimento permite saber como a própria estrutura aspirante funciona e assim saber como negar a própria aspiração. Assim, Guiomar nega Estêvão e sua declaração amorosa, que desabafa a Luís Alves. “Não tenho outro recurso, pensou ele; é necessário que morra. É uma dor só e a liberdade.” (DE ASSIS, [19–], p. 110). Alves não se surpreende.

Fortemente ressentido pela não-reciprocidade entre a vontade de Guiomar e a sua, Estêvão prepara-se para morrer. Ele deseja morrer porque encontrou distanciamento definitivo entre aspiração e realização do objeto desejado, apesar de que a morte não ofereça uma vida além da vida presente. Por outro lado, Estêvão pode saber que a morte não garante algo melhor e chamar, mesmo assim, o suicídio de “liberdade”, considerando-o uma cessação da irrealização da vontade, a saber, a reciprocidade amorosa. Mas o que lhe serviu de motivo para viver foi outra ilusão, a esperança – crença no futuro – de receber outra resposta de Guiomar. Ele “[…] chegara ao estado de esperar um pretexto para transigir consigo mesmo.” (DE ASSIS, [19–], p. 112). Isto é, aproveitaria qualquer situação para ver Guiomar, mesmo que isso fosse destruí-lo. Ao mesmo tempo, Luís Alves tenta ajudar seu amigo e entender a vontade da moça.

Com demora, Alves pensa em planos para obter essa informação, e o narrador oculta os propósitos do confidente de Estêvão. “Paciência, leitor: sabê-los-ás daqui a nada.” (DE ASSIS, [19–], p. 116). Talvez, já esteja aqui um esboço deles: o plano inesperado da família da baronesa – ela, Guiomar e Mrs. Oswald – de viajar à roça atrai a atenção de Alves, que questiona a autoria desse projeto. A pressão familiar para o casamento entre Guiomar e Jorge deixa clara a resposta: o plano é de Guiomar, para afastar-se de Jorge, mesmo que brevemente. Mas falha, porque Jorge se convida a ir, e nisso é louvado pela baronesa. Por isso, Guiomar passa a repudiar a viagem, contudo Alves percebe isso. Para ela, um fenômeno da vontade que representasse um objeto aspirado por ela ainda não ocorreu da incerteza da vontade. Guiomar ama suficientemente a si mesma; e os dois amantes só causam insatisfação. Agora, Jorge é quem mais aborrece Guiomar, motivado pela baronesa.

A insatisfação, ou sofrimento, de Guiomar é descrita pelo narrador, quando Jorge se oferece para viajar junto: ela “[…] mordeu o lábio inferior, com uma expressão de despeito […], sem que ninguém a percebesse, ninguém, exceto Luís Alves.” (DE ASSIS, [19–], p. 122). Curioso, Alves interroga Guiomar. Dessa interrogação, ele conclui que: Jorge está iludido sobre a reciprocidade que teria com Guiomar; a baronesa aspira a que Jorge viaje junto; e, principalmente, que essa interrogação despertou uma confusão sentimental em Guiomar. Isso aconteceu porque ele não foi intimidado pela nobreza da moça. Os recentes acontecimentos, então, dão novos motivos a Guiomar. Lembra-se de que, quanto mais motivos, maior é o sofrimento, porque a grande quantidade de ações que eles mostram indica a possibilidade de desviar-se da vontade. Como os motivos não são ação atuais, esse sofrimento é um temor de agir e sofrer com isso. Isso é preocupante porque nenhuma das três vontades, Estêvão, Jorge e Alves, parecem lhe ser satisfatórias, e isso confunde Guiomar.

Por certo, a baronesa é a principal responsável pela pressão familiar, pois “[…] em Jorge parecia-lhe ver todos os dotes necessários para torná-la venturosa.” (DE ASSIS, [19–], p. 128). Segundo Guiomar, o apreço que tem pela baronesa é um motivo para agir em relação a Jorge, embora desgoste dele. Porém, a baronesa, ao aconselhar Guiomar a casar-se com Jorge, comete um erro. O erro consiste em pensar que a própria vontade também é a de Guiomar. Segundo Schopenhauer ([19–]), um ser é um fenômeno particular da vontade e tem seu leque singular de aspirações. Logo, presumir que as aspirações alheias sejam as mesmas que as próprias é incoerente, e esse é o princípio de aconselhar.

Mas considerando, agora, o que Guiomar sente, nenhum dos seus dois amantes declarados, “[…] lhe falava à alma […].” (DE ASSIS, [19–], p. 130). Os dois eram incapazes de ter com ela qualquer “[…] afinidade eletiva.” (DE ASSIS, [19–], p. 131). Com isso, o narrador informa que Guiomar não aspira nem a Estêvão, nem a Jorge, mas a qualquer outra coisa que seria impedida por um casamento com um ou outro. Portanto, o matrimônio com Jorge privaria a moça de sua vontade. Assim, a contínua pressão permite mais a ideia de futuro “[…] ocupar-lhe o pensamento, ainda que o presente nada mais lhe dera.” (DE ASSIS, [19–], p. 91). Isso é assim porque a esperança de Jorge, justificada pelo “bem da família”, prejudica o pensamento de Guiomar. Por outro lado, ela “Do passado nada queria; provavelmente havia-o esquecido.” (DE ASSIS, [19–], p. 91), o que indica que seu afeto passado, Estêvão, não pode receber reciprocidade de Guiomar. Guiomar não aspira a qualquer um deles.

A vontade enluvada

Neste momento, faz-se possível uma afirmação sobre a relação entre as vontades dos personagens expostas. Agora, entre Estêvão e Guiomar. As decisões do primeiro são guiadas pelo caráter empírico puro – ações que não passam pela avaliação do caráter inteligível -, porque ele “[…] era uma alma ardente e frouxa, nascida para desejar, não para vencer, uma espécie de condor, capaz de fitar o sol, mas sem asas para voar até lá.” (DE ASSIS, [19–], p. 131). O fracasso de Estêvão subentendido nesse trecho é explicado em termos de Schopenhauer ([19–]): a vontade irrealizada permanece como inclinação, porque a realização é dificultada pelo entrecruzamento de forças, de vontades de toda a natureza. Assim, Estêvão aspira à reciprocidade da vontade de Guiomar, porém vê-se o problema: a vontade de Guiomar é incontrolável e, assim, perigosa para Estêvão.

A partir disso, perceba-se o sofrimento de Estêvão ao aspirar a Guiomar. Qualquer esforço para conquistar a reciprocidade indica uma distância em relação à realização dessa reciprocidade. Então, o esforço apaixonado de Estêvão é o seu próprio sofrimento. Contrariamente, Guiomar toma decisões de modo diferente, em razão do seu caráter adquirido. Explica-se: Guiomar faz uso de seu caráter adquirido, ou seja, da experiência sobre as próprias aspirações, para afirmar sua identidade. Somente o instintivo caráter empírico e o caráter inteligível comum são insuficientes para diferenciar um ser de outro (SCHOPENHAUER, [19–]). Assim sendo, Estêvão mais se parece à pessoa comum que a Guiomar, porque ele não sabe como lidar bem com as aspirações. Dessa forma, o caráter adquirido é conhecer as próprias fraquezas e aspirações, o modo como a vontade se manifesta em si. Com esse conhecimento, pode-se avaliar os motivos com mais clareza. Além disso, tendo autoconhecimento das aspirações, é possível não hesitar diante de impulsos do instinto (SCHOPENHAUER, [19–]). É assim que Guiomar resiste às pressões.

Aqui, talvez, valha uma breve intromissão na narrativa para entender a disposição das vontades. Diz-se que Jorge e Estêvão, até então, têm como aspiração a reciprocidade do desejo de Guiomar. Logo, aspiram ao triunfo amoroso com Guiomar, aspiram a própria Guiomar. Contudo, a moça não é um objeto presente na representação do mundo de um apenas ser. Antes o é, no mínimo, duplamente. Portanto, dois a têm quase como um mesmo fenômeno da vontade. No entanto, Guiomar não é uma criação absolutamente condizente com a vontade de um deles, porque cada um aspira a algo, e ela é o mesmo objeto aspirado por dois. Deve haver, assim, uma interação contraditória entre as representações de Estêvão e Jorge.

Explica-se: Guiomar é o objeto criado pela totalidade da vontade de cada um dos amantes, que têm vontades desiguais entre si. Então, ocorre que uma parte distinta da vontade de um, por ser presente em Guiomar, contrasta com a vontade completa do outro, mesmo que ambas as vontades tenham muito em comum. A reciprocidade por um dos amantes é negada porque Guiomar contém uma parte que não pertence à vontade desse amante. Para haver reciprocidade, o aspirante aspira a algo que é semelhante seu. Se Guiomar é distinta da vontade de um e de outro, ela não pode oferecer a reciprocidade de aspiração desejada, porque ela não é somente a vontade de um deles. E cada um deles deseja que ela o seja. Mais importante, a própria Guiomar não pode aspirar à reciprocidade de desejo com um deles, porque nenhum dos amantes é o todo de duas vontades que ela é. Logo, Estêvão tem vontade de alguém em excesso sentimental, com tons de delírio, mas Guiomar também é sagaz e indiferente, porque ela é vontade de Jorge. Então, Guiomar é apaixonada, mas indiferente. E Estêvão é só apaixonado. Para a reciprocidade amorosa, Guiomar só teria vontade de alguém indiferente e apaixonado. Em relação a Jorge, é o mesmo: Guiomar não se contentaria com a impessoalidade desse amante, porque ela aspira também à paixão intensa, herdada de Estêvão.

Resulta disso que há um descontentamento triplo: Jorge e Estêvão sofrem a não-reciprocidade, e Guiomar sofre com a insistência dos amantes. Diante disso, Guiomar não tem vontade de reciprocidade: seu amor-próprio lhe é suficiente. Tal independência é afirmada pela negação dos amantes. Note-se que eles atraem Guiomar sentimentalmente, porque eles a constituem com suas vontades, mas a reciprocidade assim é apenas parcial, insuficiente. Por isso, Guiomar julga que cada amante é incompleto e os nega. Para ela, alguém que pudesse atender totalmente à sua reciprocidade seria mais proveitoso.

Antes de prosseguir a análise pontual do romance, resta uma questão sobre a origem, como vontade, de Estêvão e Jorge. Ora, Jorge é criação, vontade da baronesa, que ansiava pela estabilidade familiar, o que pode ser alcançado pela seriedade de Jorge. A baronesa “cria” alguém assim: Jorge. De outro lado, Estêvão não é capaz de eleger os motivos, negar a paixão pelo caráter inteligível, portanto ele é movido por impulsos primitivos. Assim, Estêvão é alguém que age pelo instinto passional da espécie, sem que tenha finalidade específica. Então, isso leva a crer que Estêvão é “criado” ou aspirado pela natureza, porque ele parece ser um produto bruto da espécie, somente.

Continuando a análise associativa do romance, lembra-se de que Guiomar pode aspirar à reciprocidade “completa”, de acordo com o seu próprio ser. Por conseguinte, vale notar a relação entre Alves e Guiomar desde o dia em que ele descobriu que ela era responsável pela viagem. Já tomado de paixão sem exagero, Alves explica a Guiomar por que ele ficou sabendo do seu plano: “Tudo é aliado do homem que sabe querer […].” (DE ASSIS, [19–], p. 136). Nesse momento, Alves surge como equilíbrio procurado pela vontade de reciprocidade de Guiomar porque, ele associa o saber ao querer, o caráter inteligível à vontade com tamanha objetividade e clareza. Sendo equilibrado, Alves aspira com êxito à reciprocidade com Guiomar, porque ela é também esse equilíbrio. Disso, vê-se a dupla criação: Guiomar inventa o que lhe é perfeito, como uma fusão dos dois amantes anteriores; Alves inventa-a em todo, como faria a fusão desses amantes.

A aspiração à reciprocidade é provada por Alves, quando diz por que ele quis impedir a viagem: “Por uma razão muito simples, porque a amo.” (DE ASSIS, [19–], p. 137). Porém, esse casal perfeito ainda não pode se unir, visto que outros motivos surgem a Guiomar, que deve tomar decisões difíceis. O motivo é agradar à baronesa, quando Jorge pede Guiomar em casamento. Quando foi pedida por Jorge, “Duas vezes pairou a negativa nos lábios da moça; mas a língua não se atrevia a repetir a palavra do coração.” (DE ASSIS, [19–], p. 147). Nota-se disso que Guiomar aspira também às realizações da baronesa. E vice-versa: a baronesa aspira às realizações de Guiomar, mas não sabe o que Guiomar busca realizar.

Por a baronesa não sabê-lo, Guiomar deve expor sua decisão com cuidado, para não ofender sua querida. Para tanto, Guiomar simula um sacrifício pela baronesa: conversando com a baronesa sobre a decisão acerca do pedido de Jorge, Guiomar a coloca acima de sua vontade e diz que aceitaria o pedido. Contudo, a madrinha percebe a falsidade das palavras de Guiomar: “Não creio, não é esse o sentimento do teu coração.” (DE ASSIS, [19–], p. 169); e compreende que ela não quer se casar com Jorge. Assim, Guiomar está livre do obstáculo para casar-se com Luís Alves.

Depois de terem se conjugado, Guiomar elogia a própria trajetória de fria avaliação dos motivos, pois afirma ter coração exigente, e isso mostra que, apesar dos muitos riscos de submissão aos impulsos, foi capaz de negar os impulsos desse coração até realizar-se plenamente. Tal realização é simbolizada pela última cena do romance, em que as mãos de Guiomar e Alves se confundem em uma só, cabendo em uma única luva.

Mas Estêvão, ao contrário do casal, sofre. Padece ainda mais sabendo que o casamento dos dois pôs entre ele e Guiomar um obstáculo infindo. Esse fato inspira o pensamento do suicídio. Reiterando Schopenhauer, o suicídio é uma última e intensa manifestação da vontade pelo objetivo de não mais sofrer devido ao impedimento das realizações, embora a única forma de não sofrer seja a negação da vontade, que exige a intervenção do princípio da razão sobre a vontade ([19–]). No entanto, Estêvão não está disposto para usar a razão e negar a aspiração a Guiomar, portanto resolve suicidar-se, mas “a frouxidão de ânimo negou-lhe sua última ambição.” (DE ASSIS, [19–], p 180). Estêvão, assim, chega a níveis de dor debilitadores, até mesmo dificultadores do suicídio. É possível, entretanto, que o narrador tenha revelado, se Estêvão não se matou, que aquele obstáculo infindo não é uma aspiração maximamente importante de Estêvão. Pode ser que Estêvão tenha padecido muito, mas talvez Guiomar não fosse sua aspiração-mor, cuja privação provocaria um sofrimento-mor, que, no caso de Estêvão, considerando seu modo de ser delirante, obrigaria que ele se suicidasse.

Considerações finais

Por fim, diz-se que o trabalho presente busca trazer um estudo para a relação entre a obra de Machado de Assis e a filosofia de Schopenhauer. Para tanto, inicialmente, este texto pretende entender que, em A mão e a luva, Machado confecciona um fenômeno amoroso quase como pretexto para a investigação de contradições, padecimentos e gozos que são causas e efeitos nas relações da conduta humana. Partindo daí, o propósito deste trabalho fica claro: a pesquisa filosófica nesse romance através do pensamento de Schopenhauer, filósofo que propõe teorias para o entendimento da conduta humana, fundamento das duas principais obras estudadas aqui, postulando conceitos como vontade, sofrimento e negação, todos os quais explicam a ação humana guiada ou não pela razão.

Para cumprir com esse propósito, faz-se uma série de associações entre os conceitos e momentos do romance. Dessas associações, nota-se que as causas e os efeitos dos acontecimentos do romance permitem observar a aplicabilidade da filosofia schopenhaueriana à atenção literária que Machado tem com as relações humanas. Por fim, concebe-se que se pôde verificar que tanto a teoria schopenhaueriana evidencia a complexidade humana articulada por Machado de Assis, quanto o romance em questão mostra a profundidade dos conflitos pessoais que aborda, que podem ser estudados através da aplicação, em A mão e a luva, da teoria de Schopenhauer sobre a conduta humana.

Referências

ASSIS, Machado de. A mão e a luva. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, [19–]. (Clássicos Brasileiros, Edições de Ouro).

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Tradução Heraldo Barbuy. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, [19–]. (Coleção Universidade, Edições de Ouro).

 

Data de envio: 20 de junho de 2017.