Profecias e quiromancias: a Terra Incógnita de Múcio Teixeira

Paulo Henrique Pergher

Terra Incógnita

Múcio Teixeira

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Múcio Scevola Lopes Teixeira, nascido em 1858, na cidade de Porto Alegre, escreveu Terra Incógnita em 1916, quando residia no Rio de Janeiro e assinava pela alcunha Barão Ergonte. Neste período, Múcio profetizava calamidades públicas em páginas de jornais, fato não pouco polêmico, e atendia em sua residência, utilizando conhecimentos esotéricos e da palmística. Parte de sua produção intelectual e poética, inclusive poemas desse livro, podiam, na época, ser encontrados no Almanach do Barão Ergonte1, produzido e vendido pelo autor. A bibliografia do escritor, de qualquer modo, é bastante extensa, e, em termos de abordagens, gêneros e temas, ampla. Múcio escreveu incansavelmente e em consonância com vários dos movimentos do período, ora aproximando-se mais do romantismo, ora do parnasianismo, para então distoar de tais. Poderíamos citar aqui alguns de seus títulos de maior repercussão, tanto em prosa quanto em poesia, quais sejam: Vozes Trêmulas (1873); Violetas (1875); Sombras e Clarões (1877); Novos Ideais (1880); Poesias (1880); Prismas e Vibrações (1882); Celajes (1889); Campo Santo (1902); Terra Incógnita (1916); Brazas e Cinzas (1921); O negro da quinta imperial (1926). Além destes, é importante citar sua biografia de Castro Alves, de 1896, além da organização de traduções de poemas de Victor Hugo, intitulada Hugonianas (1885). Tratemos agora, pois, do título em destaque: Terra Incógnita.

O livro de poemas Terra Incógnita, em conformidade com sua produção da época, apresenta poemas sobre a Cabala, a palmística, o ocultismo, as ciências ocultas, a teosofia, entre outros assuntos. Poderíamos citar alguns trechos de poemas aqui, a fim de melhor demonstrar tais disposições… Vejamos o poema O hierofante, que tem como epígrafe um axioma de quiromancia, da arte divinatória:

O hierofante

Quem mostra a palma, mostra a alma.
(Axioma de Quiromancia).

Quando eu era pequeno, uma cigana
Linda, trigueira, de olhos azougados,
Leu-me as linhas da mão, sorriu ufana
E estranhas coisas disse, em altos brados.

Como falasse a língua dos bohemios,
Pouco entendi do muito que dizia;
Mas isto ou vi: — “Foge dos homens, teme-os,
Que só neles verás hipocrisia.

Como é descomunal a inteligência
Que em teu crânio infantil sacode as asas,
Esgotarás, nos filtros da ciência,
Uns venenos que queimam como brasas.

Cheio de crenças, sonhos e esperanças,
Verás teu bergantim de mocidade
Se afundar, na enseada das lembranças,
Sobrenadando apenas a saudade.

De então por diante, náufrago sombrio,
Errando sempre por distantes portos,
Quando voltares ao teu lar vazio,
Os que te amavam acharás já mortos.

Só nas mulheres tu verás ternura,
Mas vê que na ternura das mulheres
Brilha a chama sinistra da loucura,
E da loucura delas nada esperes.

Todos, então, com sede de vingança
Hão de espreitar-te, sem ousar ferir-te:
Porém da Injúria há de roçar-te a lança,
E da Calúnia galgarás a sirte

E aconteceu tudo quanto ela disse,
A trigueira dos olhos azougados,
Que me beijou, sorrindo com meiguice,
Vendo os sinais na minha mão traçados.

— Menestrel-paladino — fui poeta
E guerreiro, na flor da mocidade;
Chamaram-me mais tarde de profeta,
Por vêr que eu predizia com verdade.

Converso com as árvores… escuto
A linguagem das coisas silenciosas…
E no vôo dos pássaros perscruto
Hieroglíficas cifras portentosas!…

No meneio do leque das palmeiras
Vejo o que um dia baixará dos ares;
E no gélido riso das caveiras
Do ceticismo vil noto os esgares.

Quando do que mais olho me descuido,
Povôo de miragens o deserto;
E vibrando em meu ser o eterno fluido,
Leio nos astros como em livro aberto.
(TEIXEIRA, 1916).

No poema, em versos decassílabos, Múcio ficcionaliza sua transformação em profeta, depois de ter sido poeta, confirmando a leitura da cigana, das linhas de sua mão. É interessante que, neste poema, figuram questões de sua realidade imediata: a leitura nos astros, suas profecias; o ceticismo de seus compatriotas; e sua necessidade de ir além do científico, da ciência e da tradição ocidental. Outros poemas, como é o caso de Evocação, pontuam este posicionamento do escritor, de negar conhecimentos advindos dela:

Conhecimentos vãos da vã sciencia humana!
Mente o raio visual, e o raciocínio engana.
A chímica, a geodesia, a historia, a geographia,
As leis da medicina e as leis da astronomia,
Tudo parte do nada e para o nada volve.
Um fluido de inconsciência a humanidade envolve.

[…]
(TEIXEIRA, 1916).

Os poemas supracitados encontram-se na primeira secção de Terra Ingógnita, intitulada Contemplação e crença. O livro conta, ainda, com outras duas, precedidas por uma Gênesis espiritual, dedicada aos guias espirituais e imortais que guiam o autor: Os precursores e Irradiações. A segunda parte – Os precursores -, que conta com quinze poemas, trata de teósofos e filósofos influentes nas elaborações do escritor. Múcio escreve sobre: Zoroastro, Platão, Sócrates, Aristóteles, Pitágoras, Hermes Trimegisto, Moisés, “Ave, Maria”, os Reis Magos, Jesus Cristo, Apolônio de Tiana, Hipátia, Paracelso, Cornélio Agrippa e Helena Blavatsky. Os poemas discorrem sobre as proposições e histórias de tais figuras, como é o caso de Moisés:

Hierofante dos templos prodigiosos
De Heliópolis e Thebas, hoje em ruínas;
Tu, que domaste as multidões tigrinas
Do Egito pelos meandros tenebrosos;

Tu, o maior dos vultos grandiosos
Do Antigo Testamento, – onde dominas
Com teus preceitos e lições divinas
Dos Hebreus, os destinos misteriosos…

Tu, que viste o Senhor na sarça ardente!
Duvidaste do Verbo Onipotente,
Foi-te vedada a Terra prometida.

Do Alto do Sinai as leis ditaste:
Mas do nada de tudo não falaste…
Num silêncio de morte sobre a vida!…
(TEIXEIRA, 1916, p. 271-272)

A terceira parte – Irradiações -, por sua vez, traz a tradução de quatro atos da peça El drama universal2, de Campoamor, assim como de versos dourados de Pitágoras. É importante destacar, por fim, que a produção de Múcio Teixeira é bastante vasta e sua fase de profecias não deve tendenciar a leitura de sua obra como um todo. De qualquer modo, Terra Incógnita, não mais editado no Brasil, é um livro deveras interessante para aqueles que estudam a transição do século XIX para o XX, evidenciando o questionamento da tradição católica no país, tendo em vista a fertilidade de novas religiões no período, assim como o cientificismo, lembrando que, neste período, o positivismo mostrava-se em alta.

Referências

ALMANACH do Barão Ergonte de Múcio Teixeira para 1913. A Época, Rio de Janeiro, 17 ago. 1913.

TEIXEIRA, Múcio. Terra Incógnita. São Paulo: Ed. Casa Duprat, 1916.

 

1 ALMANACH do Barão Ergonte de Múcio Teixeira para 1913. A Época, Rio de Janeiro, 17 ago. 1913.

2 Disponível em: <http://www.cervantesvirtual.com/obra/el-drama-universal-poema-en-ocho-jornadas/>.