A dupla essência do imaginário humano em “Uma em duas”, de Lya Luft

Elisa Capelari Pedrozo

RESUMO: Caracterizada pela presença simbólica de imagens, a prosa literária de Lya Luft proporciona um diálogo entre ficção e mito. O presente trabalho tem como objetivo examinar a ocorrência do duplo a partir da análise da personagem principal no conto Uma em duas, inserido na obra O silêncio dos amantes (2008), da autora gaúcha. O estudo, fundamentado na expressão do mitema no texto, estabelece a distinção entre as modalidades de desdobramento manifestas. A dualidade é exposta logo no início da narrativa, quando o corpo de Stessa, em sonho, parte-se ao meio, tornando-se, assim, duas. No entanto, o duplo está presente desde a escolha do nome para a personagem, que, em italiano, significa “mesma”, devido à semelhança com a irmã que havia morrido antes de seu nascimento. Otto Rank (1939) justifica a escolha do nome para personagens de ficção, ao afirmar que, com sua mudança, transforma-se também a identidade do ser. Nicole Fernandez Bravo (2000) afirma que a condição humana, nas próprias figurações, possibilita a consciência da personalidade para sempre alterada, de modo que Stessa realiza a pseudodescoberta em sonho, evidenciando a metáfora do duplo na sua relação com o mundo. São duas iguais, porém no avesso. Ela, comedida e amedrontada pelo estigma de não se enquadrar na sociedade, e a outra, que assume suas diferenças, é sinônimo de liberdade. O sujeito heterogêneo se apresenta também à luz da abordagem do reflexo no espelho, do duplo como fuga da morte, da personificação do retrato e do desejo de Stessa de se identificar com um animal. Contribuem ainda com o estudo os escritos de Clément Rosset (1988) acerca da teoria do duplo e seu real, Juan BargallóCarraté (1994), entre outros.

PALAVRAS-CHAVE: Duplo. Uma em duas. Lya Luft.

ABSTRACT: Characterized by the symbolic presence of imagery, the Luftian literary prose provides a dialogue between fiction and myth. This paper examines the occurence of Double, through the analysis of the main character in the short story Uma emduas, published in LyaLuft’sO silêncio dos amantes (2008). This study, reasoned in the expression of the myth’s essence, establishes the distinction between the kinds of Double, presented in the short story. The duality is exposed in the beginning of the narrative, when Stessa’s body dividides, becoming two. However, the Double is presented since the beginning. The main character’s name means, in Italian, “itself”, which can be related to her sister, who died before the protagonist was born. Otto Rank (1939) justifies this choice, affirming that changing a name also transforms a subject’s identity. Nicole Fernandez Bravo (2000) affirms that the human condition allows the modified conscience of the personality. Consequently, Stessa realizes it in a dream, which evidences the Double’s metaphor presented in her relation with the universe. They are two equals, however, reversed. The protagonist is reserved and frightened by the stigma of not fitting in the society. Her other half assumes her diferences and can be considered a synonym of freedom. The paper explores some of the Double representations, like the reflex on the mirror, the escape from the death, the personification of the portrait and Stessa’s desire to identify with an animal. Some writings complemented this study like Rosset (1988) over Double’s theory and its real, Juan BargallóCarraté (1994), and others.

KEYWORDS: Double. Uma em duas. Lya Luft.

 

“No fundo, todo homem sabe muito bem que só viverá uma vez, que é um caso único, e que jamais o acaso, por mais caprichoso que seja, poderá reunir duas vezes uma variedade tão singular de qualidades fundidas em um todo.” Friedrich Nietzche, Considerações Intempestivas

Considerações iniciais

Devido à difusão do elemento fantástico na literatura realista, a duplicidade se tornou assunto recorrente nos estudos literários e psicanalíticos, os quais abordam a escrita sob a perspectiva de personagens metamorfoseadas. O estudo do conto Uma em duas, de Lya Luft, busca examinar a ocorrência do duplo a partir da análise da personagem principal, Stessa. Pretende-se, dessa maneira, observar como o duplo se apresenta, podendo ser: à luz da abordagem do reflexo no espelho, do duplo como fuga da morte, da personificação do retrato e do desejo de Stessa de se identificar com um animal.

Lya Luft tem sua obra ficcional marcada pela mescla de traços contemporâneos à mitopoética, de modo que a maioria das narrativas possuem um esquema estrutural comprometido com a aproximação do cotidiano às fabulações imaginárias, imprimindo em suas personagens representações mitológicas como o duplo. Ao analisarmos suas protagonistas, encontramos, no mais íntimo grau, a personalidade desses seres. Os percalços do humano, desejos frustrados, amores fracassados e o constante medo da morte são recorrentes, feito teias familiares asfixiantes, ao exemplo do enredo de sua obra As Parceiras (1980).

As criações luftianas se alicerçam em elementos simbólicos, proporcionando caminhos desafiadores ao leitor, destacam-se, também, em modalidades prosaicas, vertentes da reflexão sobre a vida desse e de outros mundos. Os mistérios que inspiram a conduta de suas personagens vão além da aparência física, fundamentando-se no desenvolvimento psíquico plurissignificativo, principalmente das mulheres. Em meio a temas universais e pessoais, aparece o sujeito (no) feminino e suas identidades, manifestando o enigma do tempo.

De acordo com os estudos de Silvana Augusta Barbosa Carrijo (2009), os escritos da autora são um compilado de imagens que só conseguem ser reais a partir do imaginário. Desse modo, as personagens observam de seus esconderijos, o que as cercam e o outro lado de si mesmas, a fim de construir ou desconstruir o passado e o futuro.  De As Parceiras (1980) a O silêncio dos amantes (2008), pode-se perceber o convívio entre o eu e o outro e inquietações da vivência em primeira pessoa.

O duplo

De acordo com os estudos de Juan BargallóCarraté (1994), os holofotes se voltaram para a ocorrência do duplo com o início do movimento romântico, no século XIX. No entanto, ele faz parte de toda a literatura, pois, inicialmente, o segundo eu se encontra a partir de pistas linguísticas causadoras de homonímia que fazem da estranheza do duplo uma reflexão sobre a identidade do ser.

Muitas vezes, o desdobramento pode supor mais do que uma simples metáfora da oposição de contrários “cada uno de loscualesecuentraenelotrosupropio complemento”[i](CARRATÉ, 1994, p. 11), isso é, a aparição do outro é o reconhecimento do vazio e a busca para tentar preenchê-lo. Ainda, a manifestação do duplo pode ser “lamaterializacióndelansia de sobrevivir frente a laamenaza de laMuerte”[ii] (CARRATÉ, 1994, p. 11). A ideia da dualidade humana – masculino/feminino, homem/animal, corpo/alma, vida/morte – implica, de certa forma, que o sujeito é o responsável pelo seu próprio destino.

Nessa perspectiva, Rosset (1988) aborda o duplo embasado no que acredita ser a sua origem: a recusa do real. O fenômeno apresenta formas variadas, ao exemplo do suicídio, da loucura, da cegueira voluntária e da percepção inútil. A última remete à ilusão, que não é uma recusa da realidade propriamente dita, mas sim, a percepção deslocada. Trata-se da tendência humana de transformar um único fato em dois divergentes, ou seja, o vínculo que une a ilusão à duplicação. Assim, constrói-se a ideia de ilusão como projeção do confronto entre o ser e a realidade: ”[…] uma arte de perceber com exatidão, mas ignorar a consequência. […] de tal modo que a coisa que percebe é posta em outro lugar, incapaz de se confundir consigo mesma” (ROSSET, 1988, p. 16).

Por outro lado, há uma estreita relação entre o duplo e o disfarce. Para saber onde nasceu o duplo, deveríamos descobrir em que momento nossos antepassadosintroduziram as máscaras, tornando-se “impenetrables para si mismos y para losdemás”[iii] (CARRATÉ, 1994, p. 11-12). Desse pensamento, desenvolvemos o questionamento sobre “qual a relação entre o duplo e a sombra?”. Os psicanalistas afirmam que têm origens distintas,

[…] mientras que la Sombra se forma e proyecta gradualmente y va cambiando a partir de un juicio de valor, el Doble aparece de repente, cuando el Yo ha tenido experiencia del Otro (de lo otro) dentro de si (CARRATÉ, 1994, p. 12)[iv].

Há o duplo desde o momento em que se percebe a existência do eu. O outro é, portanto, uma alternativa. A sombra se refere à opacidade, à face que expomos, e, como consequência dessa imagem, nasce o duplo.

Encontra-se, na mitologia romana, uma das primeiras apresentações do duplo na história literária. A partir do mito de Anfitrião, no qual o deus Júpiter toma a forma física de Anfitrião, a fim de entrar em seu palácio e deitar-se com sua esposa, enquanto o homem estava no campo de batalha, estabelece-se o sistema antitético. As oposições exibidas são: o engano, o espaço, dentro/fora, cena/não cena, coabitação/não coabitação.

Juntamente ao mito do Anfitrião, manifesta-se o mito dos gêmeos idênticos, base para a reflexão sobre o homem e a sociedade. Essa relação binária se pauta na “identidade de nombre y de losmismos atributos para ambos gemelos”[v] (CARRATÉ, 1994, p. 13). Sem dúvida, aqui, encaminha-se à tendência contraditória, o entendimento como duas metades complementares de um mesmo indivíduo.

Nesse mito, coexistem duas vertentes na história literária: a primeira, narcisista, em que cada gêmeo se converte em espelho do outro, e a segunda, a propensão ao redobramento, passa de dois para quatro sujeitos – o exemplo mais comum se associa a cada par um irmão de origem divina e outro de origem humana. A rivalidade entre os gêmeos está atestada desde o Antigo Testamento, nos gêmeos Esaú e Jacó, e se reproduz em diferentes pares de gêmeos no desenvolver da literatura mundial. São duas identidades distintas, sob uma única forma e em um mesmo mundo.

Vale a pena ter em mente que o duplo é um tema que muda frequentemente de forma na literatura. Como observado, pode ser representado na figura de gêmeos, sósias, dupla personalidade, sombra e reflexos. É o modelo pelo qual se explora a dualidade da natureza humana dissociada.

A partir dos séculos XIX e XX, o duplo adota outras estruturas. Em Orlando (1928), obra de Virginia Woolf, a duplicação aparece sendo uma mesma identidade, sob uma ou duas formas, em dois ou mais mundos distintos. Orlando vê a transformação de seu corpo de homem em corpo de mulher. Ademais, o duplo se manifesta como metempsicose, ou seja, a crença na qual o morto se transforma em diversos animais. Trata-se, de um lado, da antiga certeza no ciclo geracional da vida, e de outro, da oposição de contrários reproduzida por um duplo processo situacional; quanto ao estado das almas, Carraté (1994, p. 15) defende que:

[…] la imortalidad y lacompañía de losdioses, para aquéllas que se sometieron a lapurificación, y latransmigración bajo cuerpos de animales, para las que no supieron dominar sus instintos.[vi]

Uma vez separadas do corpo, as almas caminham para esse duplo destino.

O formato de duplo que Carraté (1994, p. 15) chama de desdobramento é produzido quando “dos encarnaciones alternativas de un solo y mismo individuo coexistenenun solo y mismo mundo de ficción”[vii]. Esse configura o duplo legítimo, pois ocupa o espaço central nas narrativas literárias que trabalham com a temática do duplo. Delineia-se a singularidade da abordagem pela forma como aparece, diferenciando tempo e espaço. Pode ocorrer que ambas as encarnações coexistam em um mesmo espaço e em um mesmo tempo; pode ocorrer interação física e verbal entre as encarnações; pode ser que as encarnações se excluam mutuamente.

No aspecto paradigmático, o autor pontua que a relação entre as encarnações acontece de duas maneiras: a semelhança total, aquela que implica a possibilidade de substituição; o contraste mais definitivo, quando uma das encarnações é uma entidade não humana. Normalmente, duas encarnações de um mesmo sujeito se enfrentam “como si se tratase de mostrar que no hay lugar para dos manifestacioes de un solo e mismo individuo enunmismo mundo”[viii] (CARRATÉ, 1994, p. 14). Esse confronto costuma levar a um final trágico, motivo pelo qual as histórias de duplos terminam com frequência em homicídio, que é um suicídio.

No aspecto sintagmático, Carraté (1994) demarca duas variedades: a que duas encarnações se manifestam simultaneamente; a que passa de uma encarnação para a outra, cada personificação resulta excludente da outra (próxima ao procedimento da metamorfose). O autor afirma que a essência do duplo está “enlavariedad de lasimultaneidad”[ix] (CARRATÉ, 1994, p. 15).

Considera-se que um mesmo tipo de duplo pode apresentar várias modificações, de acordo com a cultura, momento histórico em que aparece e estrutura literária que se manifesta. Ao tratar desse último, Carraté (1994) coloca que as estruturas distintas não são o resultado de trocas casuais, mas a soma de constantes e variantes, gênero e tema. No que diz respeito à forma de construção, o desdobramento se produz por três procedimentos diferentes: por fusão em um indivíduo de dois indivíduos originariamente diferentes (aproximação mútua até alcançar a identificação); por fissão de um indivíduo em duas personificações; por metamorfose de um indivíduo sob diferentes formas aparentes reversíveis.

A metamorfose pode produzir uma forma e uma identidade humana diferente do modelo originário. No entanto, para que esse resultado seja considerado um desdobramento, Carraté (1994, p. 16) entende que “debe revestir la forma humana, aunqueésta se manifieste a través de entidade no humana”[x].

Todavia, o duplo está enraizado em algo muito mais profundo que a realidade; o real inicia no segundo lance, que é a vida humana. A realidade é o duplo do verdadeiro acontecimento. De acordo com a teoria da reminiscência “nada jamais é descoberto: tudo aqui é reencontrado, trazido novamente à memória graças a um reencontro com a idéia original. […] A própria vontade só pode re-desejar o que a necessidade já ordenou do outro mundo” (ROSSET, 1988, p. 44). Dessa forma, pode-se inferir que o desdobramento de um indivíduo ocorre por forças maiores que a sua vontade em se afirmar, alinhando a subjetividade e a vida, de fato, ele necessita se reencontrar com a parte que irá completá-lo.

O duplo no conto

O subjetivismo, alcançado pelo duplo, acabou vestindo as mais diversas roupagens nas criações literárias presentes até os dias atuais. Essas facetas complementares, idênticas e diferentes, aparecem no conto Uma em duas, de Lya Luft, sendo um exemplo rico, no qual se evidenciam questões relativas ao duplo e suas manifestações. A narrativa gravita em torno da personagem Stessa, protótipo de mulher que, por ter nascido em família conservadora e ter sido criada para exercer o reinado do lar, sofre as implicações que esse modelo de educação pode acarretar, o desejo inquietante de ser conforme suas vontades reprimidas em uma sociedade arraigada de regras e padrões normativos.

O enredo parte do relato da personagem principal. Stessa começa contando que nasceu para ser a substituição afetiva de uma irmã falecida pouco tempo antes que sua mãe engravidasse. Não fosse a semelhança gritante com a irmã, tudo poderia ter se delineado de modo diferente. No estudo feito pelo psicanalista austríaco, considera que o passado de um sujeito está ligado intimamente com a sua existência, tal qual acontece, no caso na narrativa luftiana, com a crença no renascimento da irmã em Stessa, feita cegamente pela família desde o primeiro contato com a bebê:

[…] a mãe, quando me tomou nos braços […] exclamou: – É a mesma! Minha avó, velha imigrante italiana, repetiu em seu idioma “maèlastessa!” e ficou sendo meu nome. Talvez por isso eu nunca me sentisse bem sendo eu mesma (LUFT, 2008, p. 96).

Essa passagem ilustra sua urgência em ser outra, construir uma personalidade dissociada da expectativa familiar, fugir do destino planejado a partir de seu nome, a mesma. Rank (1939) explica, ainda, que assuntos pertencentes, exclusivamente, à vida interior, aparecem ressignificados em sonho, “no qual certos processos mentais se concretizam em formas familiares aos nossos sentidos” (RANK, 1939, p. 8). Para tanto, ao fazer uso da teoria desenvolvida por Rank na análise do texto luftiano, essa afirmativa leva a compreender o porquê de a personagem relatar um sonho que a marcou, de modo a desnudar seus anseios, sendo duas mulheres, conforme Luft (2008, p. 95):

Sonhei que corria por um campo, e que fui atingida por um raio que me partiu em duas. Sem medo nem dor, eu era duas – duas mulheres idênticas corriam em direções opostas. No horizonte elas se encontravam, isso eu sabia porque tudo se pode no sonho: sendo uma, eu era duas.

O duplo, comprovado pela observação do reconhecimento que o sujeito feminino faz, em relação à incapacidade de ser uma além da programada “sempre a dúvida: eu não deveria mudar, não podia ser outra?” (LUFT, 2008, p. 96), é refletido no reencontro com seu eu verdadeiro. Nesse momento, o sonho aparece para Stessa com a função de proporcionar a bipartição há muito esperada. A voz narrativa focaliza a dualidade de todo ser humano e a instabilidade do real, o duplo é, em Uma em duas, a representação da identidade heterogênea, pois, ao criar outra Stessa, desbravadora e incansável, dá voz aos sentimentos enclausurados na imagem imutável, enquadrada e medrosa, vinda ao mundo para preencher o lugar da irmã morta.

Essa realidade, duplicada na ficção, acaba influenciando a relação da personagem com tudo o que a cerca. Antes, enxergava-se como a parte ruim que desprendeu da irmã, indigna de admiração familiar e destinada ao fracasso ao desempenhar o papel da mulher na sociedade patriarcal. Muito além desse espectro frustrado, está Stessa, o duplo. A cena em que descreve um quadro que fica na sala de sua casa esclarece essa afirmação e incentiva à reflexão acerca da possibilidade de ser o que quiser, nascer de novo. Observe:

Na sala da casa de meus pais havia a reprodução de um quadro despretensioso, com moldura estreita e simples, que minha mãe me deixou trazer quando casei: uma pintura quase infantil, um jardim com duas árvores floridas, no meio um banco onde se sentava uma menina com sua boneca na mão estendida. Ou era uma jovem mulher com uma criança? De cada lado dela havia um gato: o preto sentava-se nas patas traseiras a seu lado direito no banco; o branco estava no capim do lado esquerdo. Sempre imaginei que eu era um daqueles gatos: minha irmãzinha morta seria o branco, e naturalmente eu era o preto. […] Agora, com essa outra mulher saída de mim, não um clone mas o meu avesso, revejo o quadro e entendo que não somos o bebê morto e eu: somos eu e meu outro eu (LUFT, 2008, p. 96).

A duplicação é movida pela imagem perdida de si mesma, da personalidade original de Stessa. Do homogêneo ao heterogêneo, como considera Nicole Fernandez Bravo (2000), a divisão está longe de ser um enfraquecimento do homem, tem relação ativa com o cotidiano, resultando na dialética: homem dilacerado e condição de liberdade do homem. Portanto, a transformação no pensamento da personagem mostra a possibilidade de emancipação, independência social e moral na presença da segunda Stessa, o seu desdobramento “tudo o que alguém percebe fora de si é sempre esse alguém mesmo” (BRAVO, 2000, p. 270). Sua aceitação da metade até então desconhecida pode-se explicar partindo do pressuposto de que esse novo eu é o que gostaria de ser a vida inteira “olhando o quadro pensava que também eu de certa forma era duas, a que todos conheciam e a que eu mesma vislumbrava” (LUFT, 2008, p. 97). É, então, ruptura com o patriarcado. O indivíduo dividido caracteriza-se como o fruto da profunda mudança quanto à concepção do eu, “quem fala por Stessa”. Bravo (2000, p. 279) se refere a essa divisão como o complemento do ser, ao ressaltar que, conforme estudos lacanianos, “o heterogêneo faz parte da condição humana […] outro sujeito jamais se encontra onde este o imagina, em virtude do inconsciente; o acesso ao simbólico consuma-se pela divisão do eu”.

O reconhecimento do duplo não é mais, em si mesmo, um resultado na análise do texto, mas um novo ponto de partida. Stessa, certa da companhia de sua outra metade, relata os acontecimentos que permeiam seu cotidiano e a relação com a outra. Porém, a presença incessante do duplo expõe, a partir de seu reflexo, o que há por trás da mulher discreta e sem sal, a verdadeira essência, o seu preenchimento. Há que se levar em conta as identidades cindidas. Contrapondo Rank (1939), Rosset (1988) explica que o pensamento de que o duplo surge tão somente para tornar o sujeito erroneamente imortal, a salvo do próprio fim, tem uma lacuna. A superficialidade está no real ligado ao duplo, ou seja,

o que angustia o sujeito, muito mais do que a sua morte próxima, é antes de tudo a sua não-realidade, a sua não-existência. Morrer seria um mal menor se pudéssemos ter como certo que ao menos se viveu: ora, é desta vida mesma, por mais perecível que por outro lado possa ser, que o sujeito acaba por duvidar no desdobramento de personalidade. […] não é o outro que me duplica, sou eu que sou o duplo do outro. Para ele o real, para mim a sombra. “Eu” é “um outro”, a “verdadeira vida” está “ausente” (ROSSET, 1988, p. 64).

Desse modo, Stessa se depara, por meio do duplo, com o seu interior, e compreende que a sua vida não passa de sobrevivência e adaptação ao meio. A solução do problema psicológico imposto pelo desdobramento da personalidade não se encontra na morte, pois essa é certa, mas ao contrário, na existência duvidosa. Imaginar o que acontece com o eu, com a unidade do homem, que só é vista pela personagem, é intrigante e dá ensejo a aparições como “comprovação” do desdobramento “porque o espelho é enganador e constitui uma ‘falsa evidência’, quer dizer, a ilusão de uma visão: ele me mostra não eu mas um inverso, um outro; não meu corpo mas uma superfície, um reflexo” (ROSSET,1988, p. 65).

A personagem vai aos poucos transformando sua angústia, compreendendo o desejo, em uma imagem que aparece junto com seu reflexo nas vitrines e espelhos. Assim,

depois daquele sonho, cada vez que eu me olhava no espelho, atrás de mim lá estava a outra. Nas vitrines das lojas, na rua, ela andava ao meu lado, um pouco atrás, requebrando sem pudor algum. Fazia careta, dava saltos, soltava gargalhada. Cantava bem alto. Fui me dando conta de que nada era novidade. Eu a conhecia desde criança. Por isso não me espantei com sua aparição. Era a ela que eu via no espelho, quando me perguntava, e se eu agora sorrir e ela continuar séria? (LUFT, 2008, p. 97).

Esse reflexo serve para enfatizar a incompletude que reina em seu ser, ou até mesmo reafirmar a premissa de que o real é o duplo de algo já conhecido. Ela aparece sendo o duplo comedido de sua parte espontânea e sincera, sua metade interior. O desenrolar da narrativa corrobora essa afirmação, quando Stessa diz: “espreitando por entre minhas pálpebras, sorrindo ou murmurando nos cantos de minha boca, ela nasceu comigo. […] E quando a vi separada de mim, apenas disse, ah, então era isso, eu era essa! (LUFT, 2008, p. 97). Por esse viés, Bravo (2000) pondera que o duplo é, ao mesmo tempo, idêntico ao original e diferente, é sempre uma figura fascinante para aquele que ele duplica, o que ajuda a justificar a admiração que Stessa sente pelo duplo. Ainda, a autora lembra que “de um e outro lado do desdobramento a relação existe numa tensão dinâmica. O encontro ocorre num momento de vulnerabilidade do eu original” (BRAVO, 2000, p. 263). Isto é, o sujeito feminino está em discordância consigo mesmo, instigada desde o momento que relata seu sonho: um raio que a parte em duas – ela e uma velha conhecida, sua alma “a expansão do sonho na vida real […] o tema da felicidade perdida suscita a imagem do eu palimpsesto. O eu presente é a negação dos eus passados” (BRAVO, 2000, p. 274).

Rosset (1988) recorre ao trecho de Nietzsche [1976], retomado na epígrafe deste breve estudo, para sintetizar que o ser humano sabe que só viverá uma vez e, que seus atos só podem ser modificados nessa existência. Porém, o encontro com o outro proporciona uma maneira de penetrar em si mesmo, o duplo desencadeado pela busca de um eu melhor, em harmonia com o mundo. Bravo (2000) revela que o duplo “representa paradoxalmente ao mesmo tempo o que permitiria alcançar o objetivo e também o que entrava o eu” (BRAVO, 2000, p. 275). Facilmente, relaciona-se com o que ocorre no conto em questão, a certeza de que enquanto Stessa não mudar suas atitudes, nada que seu interior deseja irá acontecer,

[…] ainda me enquadro o tempo todo. Pois tenho horror da idéia de ser diferente e criticada por isso. A outra não se importa: assume sua diferença, faz tudo o que quer […] mil coisas que eu só consigo fazer em pensamento (LUFT, 2008, p. 98).

A busca do eu, no desdobramento, está, também, ligada ao retorno obstinado pelo espelho e tudo aquilo que pode fazer uma analogia com ele: a obsessão da simetria pelo que consegue restituir essa coisa invisível que se tenta ver, o subjetivismo humano, que seria o eu, ou um outro eu, o duplo exato, oposto[xi]. A citação que segue deixa claro como se manifesta o duplo, o eu é não o que pensava ser “cada dia mais percebo que ela me seqüestra para fora do trivial, deste considerado obrigatório e normal, e me deixa ser, também eu, Stessa, por alguns momentos, a mulher proibida” (LUFT, 2008, p. 99). Bravo (2000) mostra que cada um é sua própria marionete, compete a cada um descobrir a máscara que usa e ou é obrigado a usar.

Agora, o espelho é apresentado sob nova forma, Stessa vivendo um momento de crise, recorre ao desejo de se identificar com um animal para explicar sua realidade “quando me pergunto como vai ser caso eu passe para o lado dela, apenas dá a sua risada e salta pela janela, para a vida. Atrás dela, um gato. Que nem é branco, nem é preto: agora vejo que é ruivo” (LUFT, 2008, p. 99). A imagem do animal ruivo contrasta com o quadro que a personagem descreve logo no início do conto, o branco podendo ser compreendido como bom e o preto como mau, uma Stessa desenvolvida e outra estagnada. Mas a presença do gato ruivo quebra com a normalidade do ambiente, a partir da raridade que é o tom. A energia que o felino possui demonstra o que Stessa pretende: ser notada, única. O gato que corre e desbrava o mundo, o gato que faz o que bem entende, o animal que é camaleão e se adapta ao que estiver por vir. A personagem quer se assemelhar ao ruivo, desejando a independência e a realização.

Essa ambição pela forma que o duplo vive não permanece quando Stessa toma o seu lugar e, sutilmente, assume a verdadeira personalidade. Rosset (1988) resgata a predestinação do indivíduo ao alertar que

[…] é recusando-se ser o isto ou aquilo que se é, ou ainda o aparentá-lo aos olhos dos outros, que nos tornamos precisamente isto ou aquilo, e que aparecemos como tal aos olhos dos outros […] o que importa é apenas que a qualidade que se pretende ocultar ou denegar, por um afastamento de si […] o qual sempre acaba por confirmar o seu próprio eu (ROSSET, 1988, p. 69).

Aos poucos, ela assume a posição que seu interior almeja, desconstruindo a imagem encenada diante da família, como mãe e esposa. A liberdade que o duplo despertou em seu ímpeto aproximou-a da morte, de maneira que a aceitação do duplo regeu essa relação, e, quando não existia mais esse temor, pode exprimir o que era

Stessa livre de sua mesmice talvez não sobreviva, porque morrer também não quero […] estou aprendendo a trocar de lugar com ela. Estou entrando no seu papel, enquanto ela se diverte no meu […] Descubro que a realidade não existe. Se existir, não há de se limitar a camisas suadas, calcinhas sujas (LUFT, 2008, p. 99-100).

Para tanto, Rosset (1988) afirma que, ao analisar uma ficção, relacionar a existência do duplo ao abandono de paradigmas sociais é exagerado. A causa para o seu ressurgimento está no destino, a transformação é comprovada pela passagem “a cada dia estou mais do outro lado; aprendi o pulo do gato. A cada dia aumenta o meu poder de mudar […] Deixo a outra aqui enrolada com minha vida […] e saio montada no meu gato ruivo, que é da banda das maldades, como eu” (LUFT, 2008, p. 100). O duplo é, aqui, a porta de acesso ao verdadeiro eu de Stessa.

Considerações finais

Os diferentes aspectos da ilusão servem para proteger a personagem do fracasso, pois, segundo Rosset (1988), passam pelo “reconhecer tarde demais no duplo protetor o próprio real do qual se pensava estar protegido” (ROSSET, 1988, p. 70). Essa é a maldição do destino, que rege todos os seres em uma sociedade dependente da aprovação alheia e com mazelas subjetivas que perduram gerações. Há a possibilidade de perceber o porquê de a esquiva do real ser um erro, afinal, parte-se da ideia de que a máscara criada pelo sujeito tende a cair no decorrer de sua vida, para, finalmente, ceder lugar ao predestinado. Por mais que Stessa tenha mantido por um longo período, a imagem de esposa conformada, ao final da narrativa, desprende-se desse estereótipo, que é atender às expectativas da família, para enxergar no duplo a oportunidade de assumir uma identidade autônoma. Cabe lembrar que a releitura de sua existência só ocorreu a partir do surgimento do duplo, foi a crise que ela teve consigo mesma o fomento necessário. A angústia é a chave para o duplo vir à tona.

Conclui-se que Stessa quis restaurar a parte que julgava ser a melhor, a “animal”, no sentido mais ousado e instintivo possível. Bravo (2000) ressalta que “o homem traz em si seu animal” (BRAVO, 2000, p. 281), e esse aspecto não inutiliza o seu raciocínio. Reencontra-se a maleabilidade humana. A personagem teve oportunidade de ativar seus desejos mais primitivos na convivência com o duplo e na relação que criou com um gato ruivo. Ainda, a autora esclarece que

Pode-se notar a preocupação social em obras onde a confrontação com o duplo representa a conscientização do que é importante para o eu e, ao mesmo tempo, do papel desempenhado pela pessoa em seu ambiente. O problema que então se coloca é o seguinte: como consegue a pessoa aceitar-se e ser ela mesma na sociedade (BRAVO, 2000, p. 281).

Stessa se aceita a partir do momento em que consegue se encontrar com seus anseios, e enxergar, ainda que em um reflexo, o que quis ser a vida inteira, deixando esquecidas as regras que a enclausuravam desde a infância na criação em família conservadora italiana. A passagem que segue é ilustrativa:

Porque entre o sim e o não é só um sopro, entre o bom e o mau apenas um pensamento, entre a vida e a morte um leve sacudir de panos – e a poeira do tempo, com todo o tempo que eu perdi, tudo recobre, tudo apaga, tudo torna tão simples e tão indiferente (LUFT, 2008, p. 100).

A personagem-narradora termina o conto corroborando essa afirmação de que conquistou sua independência e passou por cima desse estigma social, tornando-se dona de si.

Referências

BRAVO, Nicole Fernandez. Duplo. In: BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: J. Ollympio, 2000. p. 252-287.

CARRATÉ, Juan Bargalló. Hacia una tipologia del doble: el doble por fusión, por fisión y por metamorfosis. In: BARGALLÓ, Juan (Ed.). Identidad y alteridad: aproximación al tema del doble. Sevilha: Alfar, 1994. p. 11-26.

CARRIJO, Silvana Augusta Barbosa. Trama tão mesma e tão vária: Gêneros, memória e imaginário na prosa literária de Lya Luft. 2009. Disponível em: <https://pos.letras.ufg.br/up/26/o/silvanaaugusta.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2017.

LUFT, Lya. Uma em duas. In: LUFT, Lya. O silêncio dos amantesRio de Janeiro: Record, 2008. p. 95-105.

RANK, Otto. O duplo. Rio de Janeiro: Cooderativa, 1939.

ROSSET, Clément. O real e seu duplo: Ensaio sobre a ilusão. São Paulo: L&PM, 1988.

 

[i] “[…] cada uno de los cuales ecuentra em el outro su próprio complemento” (todas as traduções livres do presente artigo foram realizadas pela autora).

[ii] “[…] a materialização da ânsia de sobreviver diante da ameaça da morte”.

[iii] “[…] impenetráveis para si mesmos e para os outros”.

[iv] “[…] enquanto a sombra se forma e projeta gradualmente e vai mudando a partir de um juízo de valor, o duplo aparece de repente, quando o eu tenha tido a experiência de outro dentro de si”.

[v] “[…] identidade de nome e os mesmos atributos para ambos gêmeos”.

[vi] “[…] a imortalidade e a companhia dos deuses, para aquelas que submeterem à purificação, e a transmissão sob corpos de animais, para aquelas almas que não souberam dominar seus instintos”.

[vii] “[…] duas encarnações alternativas de um único e mesmo indivíduo coexistem em um único e mesmo mundo de ficção”.

[viii] “[…] como se se tratasse de mostrar que não há lugar para duas manifestações de um único e mesmo indivíduo em um mesmo mundo”.

[ix] “[…] na variedade da simultaneidade”.

[x] “[…] deve revestir a ‘forma humana’, ainda que essa se manifeste através de uma entidade não humana”.

[xi] Assim como acontece no conto machadiano, o espelho remete ao desejo de transformação.