Com “O sol na cabeça” e a voz da periferia

Elton da Silva Rodrigues

MARTINS, Geovani. O sol na cabeça. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Livro de estreia do escritor carioca Geovani Martins, O sol na cabeça, contém treze contos que se configuram como literatura negra e periférica à medida que apresentam diversas situações vivenciadas por moradores de regiões periféricas, de modo que o autor dá voz às favelas do Rio de Janeiro, sem que, no entanto, sejam mostrados apenas os aspectos negativos. Publicado pela editora Companhia das Letras – São Paulo –, no ano de 2018, o livro teve seus direitos vendidos para oito países antes mesmo de chegar às livrarias. Com uma abordagem realista, mesclando aspectos biográficos à ficção, o autor aborda, em algumas narrativas, diversas mazelas que fazem parte do cotidiano de comunidades, como a violência policial, a intolerância religiosa, o trabalho infantil, a morte, o uso e o tráfico de drogas e a discriminação racial. Além desses aspectos, outros contos apresentam situações diferentes, nas quais se observam as apreensões da infância e o cotidiano escolar das crianças, de modo que o livro se torna interessante pelos diferentes temas que compõem as histórias.

Nascido em Bangu e morador de diversas favelas do Rio de Janeiro, Geovani Martins trabalhou desde cedo e largou a escola na oitava série. Alfabetizado pela avó, o escritor carioca teve seu primeiro contanto com a leitura a partir quadrinhos e best-sellers até chegar a autores canônicos como Drummond e Machado de Assis, suas referências. A edição de O sol na cabeça ocorreu após sua participação na Flip (Feira Literária Internacional de Paraty), em 2017, apresentando contos produzidos em suas participações em oficinas literárias e na Festa Literária das Periferias (Flupp).

O primeiro conto do livro, “Rolézim”, apresenta já em seu título a língua brasileira das periferias do Rio, com gírias que se espalharam pelo país inteiro. Na narrativa, alguns adolescentes descem o morro para desfrutar o litoral fluminense e, ao retornar, se deparam com a marcação cerrada da polícia militar. Ainda que curto, podemos observar, na fala própria do narrador, a violência policial, que levou a vida de um menor, as drogas presentes no cotidiano de jovens, como a maconha, o loló e o crack. A situação do final do conto, com a presença de policiais que se interpõe entre moradores do morro e as praias da Zona Sul, reafirma o preconceito que se tem com a comunidade periférica, uma vez que ela é associada a drogas e assaltos.

“Espiral”, segundo conto, narra a história de um adolescente negro que, por conta do estereótipo marginal, é visto como ameaça por pessoas brancas e de classe média em situações cotidianas, como caminhar na rua ou esperar o ônibus. Adentrando os caminhos da intolerância religiosa, em “O mistério da vila” é abordada a presença das religiões de matrizes africanas comunidades e o crescimento de outras religiões no morro. No conto, ainda que haja a perpetuação do discurso da “macumba” como algo ruim, a casa de santo permanece como um lugar de amparo a evangélicos e católicos.

Marcada pela violência policial e pela presença do tráfico, as favelas das narrativas de Giovani Martins são mostradas como organizações complexas, com regras e leis ditadas pelos traficantes, acordos feitos com as milícias, as “missões” e o consumo de drogas, além das relações de amizade e companheirismo, como em “Estação padre Miguel” e “A viagem”. Além disso, em contos como “O caso da borboleta”, “O mistério da vila” e “Primeiro dia”, Giovani Martins nos apresenta a infância de garotos que nasceram e vivem no lado menos favorecido da antiga capital do país. São narrativas curtas, mas que nos revelam situações cotidianas comuns a nossa infância e que nos aproximam empaticamente desses jovens que são partem do lado menos favorecido do Rio de Janeiro. Em “O cego”, por exemplo, a narrativa principal é sobre um jovem morador da favela, Matias, que, sem a visão (de nascença) e ninguém que possa ampará-lo após a morte da mãe, nem mesmo os irmãos, sai mendigando pelos ônibus todos os dias para ter o que comer, até que um garoto se une a ele: “Todo mundo morre de pena de filho de cego” (p.88). Já na velhice, com a parceria rompida, ambos passam a se encontrar no fim do dia para compartilhar histórias e drogas.

E em meio a todas essas histórias, há espaço no livro de Giovani Martins para se falar do amor. “A viagem” nos leva à praia, à relação amorosa, aos baseados, cocaína e ao LSD, ao ciúme e, também, à violência, uma vez que o grupo, que havia ido ao Arraial do Cabo para passar uma virada de ano tranquila, quase é assaltado. Talvez seja interessante mencionar ainda, já que o assunto é a violência, o conto “A história do Periquito e do Macaco”, que tem por pano de fundo a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na Rocinha e os conflitos entre traficantes e policiais, deixando visível o abuso de poder das autoridades e a retaliação dos traficantes.

Em relação a outras narrativas periféricas, os contos de O sol na cabeça apresentam semelhanças e diferenças, seja no aspecto formal ou nos temas abordados.  Em O sol na cabeça, Geovani utiliza tanto a oralidade rasgada das comunidades quanto o português brasileiro padrão para compor narrativas realistas sobre o cotidiano vivenciado por aqueles que vivem à margem da “Cidade Partida”[1]. Além disso, o crescimento do tráfico de drogas, algo mais contemporâneo, é bastante frequente nas histórias.

Nos treze contos do livro, procurando reelaborar as histórias de vidas da periferia, marcadas pela violência física ou simbólica, pelo abandono e pela situação miserável, Giovani Martins, como escritor, torna-se sujeito participante e reconstitui, em sua narrativa, diversas vozes excluídas, de maneira que desloca o “prazer meramente contemplativo”, como diz o filósofo, historiador e crítico alemão Walter Benjamin (2012), para uma atitude política, concretizada representação das lutas diárias e das violências sofridas e/ou causadas por essas figuras marginais.

É por meio das personagens, tão humanas em seus erros e seus acertos, que podemos nos identificar enquanto leitores e sujeitos sociais, e, então, perceber a realidade do outro. As batalhas enfrentadas pelas pessoas que constituem as comunidades periféricas. O novo realismo de O sol na cabeça em situações cotidianas que vão desde o primeiro dia de aula ao corre, do ‘rolé’ ao ato de pedir esmola, do ato de executar alguém ao ato de consumir droga, nos fazem refletir sobre situações que muitas vezes preferimos fingir não reconhecer e não nos colocarmos nessa realidade. Com uma linguagem bem elaborada, marcada pela oralidade das gírias e dos códigos, mas também pelo português canônico repleto de ares poéticos, por conta de seus temas e do modo como o autor os aborda, o livro de estreia de Giovani Martins se mostra como uma boa indicação para aqueles que procuram uma leitura prazerosa e reflexiva.

Referências

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras Escolhidas v. 1) p. 123-128

 

Data de envio: 08 de agosto de 2018

 

[1] Termo da sociologia urbana que divide a cidade do Rio de Janeiro em duas: as favelas (o morro) e as zonas urbanizadas de classes média e alta (o asfalto).