RESUMO: As Cartas Chilenas são uma sátira atribuída ao poeta árcade Tomás Antônio Gonzaga, conhecido também pela autoria de Marília de Dirceu. Nascido em agosto de 1744 em Portugal, o autor é associado ao movimento da Inconfidência Mineira. Partindo do pressuposto que as Cartas são autoria de Gonzaga, obtêm-se a possibilidade de analisar como se manifesta este caráter revolucionário, tão ligado ao autor e aos seus companheiros, Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto.
PALAVRAS-CHAVE: Arcadismo. Inconfidência Mineira. Tiradentes. Tomás Antônio Gonzaga.
ABSTRACT: The Chilean Letters is a satire attributed to the arcadian poet Tomás Antônio Gonzaga, also known by the authorship of Marília de Dirceu. Born in August 1744 in Portugal, the author is associated with the Inconfidência Mineira movement. Starting from the assumption that the Letters are authored by Gonzaga, one obtains the possibility of analyzing how this revolutionary character often linked to the author and his companions, Cláudio Manuel da Costa and Alvarenga Peixoto, manifests himself.
KEYWORDS: Arcadism. The Inconfidência Mineira Movement. Tiradentes. Tomás Antônio Gonzaga.
A Inconfidência foi um acontecimento que hoje é mitificado e romantizado na consciência coletiva. A escolha de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, como patrono cívico brasileiro, por exemplo, serviu para personificar a imagem de um mártir disposto a morrer por sua amada pátria. Vale mencionar que esta romantização feita mais tarde também se deu a partir de alguns escritores, como Machado de Assis (FIGUEIREIDO, 2002: XXIV) em suas crônicas para o jornal Gazeta de Notícia. Na crônica do dia 24 de abril, por exemplo, o autor compara os poetas árcades com um coro de ninfas em torno de Prometeu, que seria Tiradentes (ASSIS, 1892).
Filho (2002: XI) chama de mitificação do espaço da ação o fenômeno ocorrido com os envolvidos com a Inconfidência. Por serem associados ao Tiradentes, os árcades são vistos e representados na história como possuidores de um mesmo caráter revolucionário que o mártir. Assim ocorreu com Gonzaga. Acredita-se que ele seria o revolucionário participante da Inconfidência, crítico feroz ao governo em Cartas Chilenas, que enfrentou um destino cruel ao ser retirado de sua amada pátria e separado de sua Marília, o grande amor na qual dedicou suas liras.
A vida que o autor manteve no exílio caiu no imaginário pessoal década leitor. Segundo dados históricos, a vida de Gonzaga exilado em Moçambique não foi tão terrível quanto essa romantização nos leva a acreditar, e seu destino não foi tão cruel como os de seus amigos.
Quando é condenado por conspirar na Inconfidência, Gonzaga é enviado para Moçambique e chega na África no ano de 1792. Lá, casa-se com Juliana de Sousa Mascarenhas, herdeira deum grande negócio de escravos (LAPA, 2002). O caráter revolucionário de Tomás Antônio Gonzaga retratado ao longo da história deve mais a sua associação com Tiradentes, do que por atos do próprio autor. Dessa forma, ainda é válido considerar o Critilo das Cartas Chilenas como um grande crítico do governo? Além de ser classificada como uma sátira, a obra de Gonzaga deve ser considerada também uma alegoria. Esta classificação pode apresentar um norte para algumas considerações sobre o caráter de Gonzaga refletido nas Cartas Chilenas através de Critilo.
Ceia (1998) classifica a alegoria como uma história e/ou uma situação que interage com duplos sentidos e figurados, não se limitando textualmente. Ao contrário da metáfora, a alegoria considera desde expressões até textos inteiros. Assim, esta obra de Gonzaga pode não ser um retrato fiel dos acontecimentos da época, mas sim uma representação alegórica da realidade do autor através de elementos que a torna não tão explícita. Além disso, o autor faz uso da retórica epitídica na construção das Cartas: essa forma de discurso pode ser de elogio ou censura, sendo este, último caso utilizado.
Assim, Gonzaga poderia estar representando-se através de Critilo, com ferramentas que mostram de forma indireta sua visão da situação que estava inserido. Enquanto Gonzaga é Critilo, morador do Chile, Cláudio Manuel da Costa estaria representado na obra através do pseudônimo Doroteu, personagem que mora na Espanha e a quem as cartas são endereçadas. A obra gira em torno de uma crítica ao governo de Fanfarrão Minésio, pseudônimo para o governador de Minas Gerais da época, Luís Cunha Meneses. O duplo sentido da alegoria se manifesta também na correspondência entre Chile/Brasil e Espanha/Portugal. Descrito por Crítilo como um tirano egoísta e corrupto, Minésio controla Santiago de forma violenta, desorganizada e sem misericórdia alguma.
A forma como Gonzaga descreve o Fanfarrão por meio de Critilo ao longo das Cartas mostra o exagero do autor em sua narrativa. A caracterização feita por Critilo mais parece uma caricatura do que a real aparência do governador: Fanfarrão é descrito como um homem jovem, mas já calvo, de feições compridas e olhar feio, sobrancelhas grossas e testa curta.
Nas palavras de Cândido, ligar a obra com o contexto da vida do autor torna o significado mais rico e a alegoria adquire dimensão real (1985: 35). Na análise do caráter de Critilo por Holanda (1979), o crítico literário sugere que o personagem era um conservador, não um revolucionário. Suas críticas não estariam focadas em atacar o pacto colonial como um todo, mas sim exigir o cumprimento das leis dentro desta mesma sociedade. Como ouvidor de Vila Rica, zelar pela justiça era o papel de Gonzaga: papel que inclusive se faz presente em seu Critilo. Esse caráter legalista de Gonzaga se manifesta no Critilo das Cartas no seguinte trecho, onde o remetente descreve as qualidades que um líder/governador deve possuir, para que consiga administrar o cargo de forma coerente e responsável.
Amigo Doroteu, quem rege os povos
Deve ler, de contínuo, os doutos livros
E deve só tratar com sábios homens.
Aquele que consome as largas horas
Em falar com os néscios e peraltas,
Em meter entre as pernas os perfumes,
Em concertar as pontas dos lencinhos,
Não nasceu para coisas que são grandes,
Que nestas bagatelas não consomem
O tempo proveitoso as nobres almas.[1]
Assim, as críticas presentes nas Cartas atacam as transgressões da lei por parte de Minésio. Para entender as disparidades entre essas duas figuras, é necessário compreender a relação entre Gonzaga e Meneses.
Ainda existem debates sobre o período de circulação das Cartas, que pode ter acontecido durante o governo de Meneses ou após. Sabe-se que seu sucessor foi o visconde de Barbacena, que veio a desfazer os movimentos para a Inconfidência. Meneses assumiu o cargo de governador um ano depois de Gonzaga receber o cargo de ouvidor em Vila Rica. Foram vários os episódios em que entraram em conflito, conforme apresentados por Lapa (2002).
Houve um leilão de um dos terrenos de mineração no arraial de Antônio Pereira, na qual Meneses favoreceu um dos seus protegidos, opondo-se à arrematação e cedendo o terreno para eles. Gonzaga mais tarde veio a enviar uma carta à Rainha reclamando da arbitrariedade de Meneses. Um leilão de cobrança dos direitos sobre as importações também foi motivo de desavenças. Os dois possíveis arrematadores eram José Pereira Marques, afilhado de Meneses, e Antônio Ferreira da Silva, credor de longa data da Fazenda. A escolha de Meneses foi seu afilhado:
A Junta da Fazenda, e o nosso chefe
Mandou arrematar ao seu Marquésio
O contrato maior, sem ter um voto
Que favorável fosse aos seus projetos.
As mesmas santas leis jamais concedem
Que possa arrematar-se algum contrato
Ao rico lançador, se houver na praça
Um só competidor de mais abono[2]
Em 1786, houve a abertura para vaga de almoxarife dos armazéns da capitania: enquanto Gonzaga desejava que a vaga fosse ocupada por Manuel Pereira Alvim ou por Manuel Fernandes de Carvalho, o escrivão e o tesoureiro da Junta indicaram o capitão Teotônio Maurício de Miranda Ribeiro, que veio a ocupar a vaga por decisão de Meneses. Outro evento, largamente descrito por Critilo nas Cartas foram as festas do ano de 1786, organizadas por Fanfarrão. Versiani (1995) faz uma análise da representação destes eventos nas Cartas com base no Arquivo Público Mineiro, onde liga os documentos encontrados com os escritos de Gonzaga.
As festas do ano 1786 foram uma comemoração a dois casamentos da coroa portuguesa: o casamento de Dom João com Dona Carlota Joaquina, e o casamento de Dom Gabriel de Castela com Dona Mariana de Portugal. A rainha D. Maria I havia escrito uma carta endereçada à colônia, onde solicitou que Meneses organizasse um festejo pelos casamentos.
As críticas realizadas por Gonzaga através de Critilo eram contra o caráter anti-normativo de Minésio/Meneses nestas festividades (VERSIANI, 1995). Entretanto, Critilo não estaria sendo reacionário ou anti-festivo, apenas criticando os exorbitantes gastos do dinheiro público para a realização das festas.
A carta da rainha solicitava “demonstrações de alegria”, elemento alterado por Meneses para “festas públicas”, ao ordenar a realização das festas em uma carta à câmara, órgão incumbido dos gastos da festa, que viriam a incluir óperas, touradas, carros triunfais e diversas iluminações. Este episódio é retratado nas Cartas no seguinte trecho:
Reveste-se o baxá de um gênio alegre
E, para bem fartar os seus desejos
Quer que, a despesas do senado e povo,
Arda em grandes festins a terra toda.
Escreve-se ao senado extensa carta,
Em ar de majestade, em frase moura[3]
Os gastos por parte de Minésio são retratados por Critilo de acordo com os gastos realizados por Meneses:
E nela se lhe ordena, que prepare,
Ao gosto das Espanhas, bravos touros;
Ordena-se também que, nos teatros,
Os três mais belos dramas se estropiem,
Repetidos por bocas de mulatos;
Não esquecem, enfim, as cavalhadas.[4]
No final de dezembro do mesmo ano, as pessoas que haviam trabalhado na organização da festa e no fornecimento do material para os eventos não haviam recebido pelos seus serviços.
Nas Cartas, Minésio representava para Critilo uma ameaça ao equilíbrio natural da sociedade colonial, posto que sob seu governo as autoridades eram tratadas sem cortesia e as leis eram desviadas das normas justas da administração régia. (CÂNDIDO, 2000: 161). É possível enxergar um Critilo tão legalista quanto Gonzaga:
Não quero, Doroteu, lembrar-me agora
Das leis do nosso augusto; estou cansado
De confrontar os fatos deste chefe
Com as disposições do são direito[5]
O que mais horrorizava Critilo com relação a Minésio era sua transgressão da ordem natural perante a lei. Critilo não parece se preocupar com aqueles afetados por normas cruéis presentes nas leis, como, por exemplo, todo o sistema escravagista. Critilo faz parecer que, contanto que as leis fossem seguidas, não havia necessidade de mudança. Assim, por mais que pareça estar defendendo os pobres, sua única preocupação é o não seguimento das leis. Esta seria uma crítica sem nenhuma ressonância coletiva (PEREIRA, 2002: 784) que focasse na liberdade do povo em geral. Existe mais de uma passagem nas Cartas onde Critilo considera correta avelha ordem, que Minésio passa a desrespeitar. Como por exemplo, quando apresenta o julgamento da coroa como correto:
Caminha, Doroteu, à forca um negro
Conforme as leis do reino bem julgado[6]
Critilo não parece ter interesse em mudar a ordem natural das coisas, apenas deseja que a lei seja seguida à risca. Por exemplo, no trecho a seguir, Critilo não julga os açoites aos presos por ser um ato de extrema crueldade, mas sim afirma que este é um direito garantido apenas aos senhores de engenho:
Tu também não ignoras que os açoites
Só se dão, por desprezo, nas espáduas,
Que açoitar, Doroteu, em outra parte
Só pertence aos senhores, quando punem
Os caseiros delitos dos escravos.
Pois todo este direito se pretere.[7]
Outra questão a ser considerada é o posicionamento de Critilo perante o surgimento de uma nova classe social, a ascensão de uma certa burguesia:
Se lhe faltam os negros, a quem deixam
O governo das vendas, não entendem
Que infamam as bengalas, quando pesam
A libra de toucinho e quando medem
O frasco de cachaça. Agora atende,
Verás que desta escória se levanta
De magistrados uma nova classe.[8]
Neste trecho a seguir, Critilo crítica a atitude de Minésio com relação a retirada de certas pessoas da prisão. O autor não parece considerar esse perdão concedido pelo governador como uma virtude, muito menos acredita que Minésio tenha esse poder, uma vez que apesar de ser chefe, ainda é vassalo do poder supremo, ou seja, a coroa:
Aonde, louco chefe, aonde corres
Sem tino e sem conselho? Quem te inspira
Que remitir as penas é virtude?
E, ainda a ser virtude, quem te disse
Que não é das virtudes, que só pode,
Benigna, exercitar a mão augusta?
Os chefes, bem que chefes, são vassalos,
E os vassalos não têm poder supremo.[9]
Critilo critica o uso de dinheiro para a realização de uma hipotética boa ação, pois o dinheiro deveria estar sendo usado em outras funções dentro do governo:
Já viste, Doroteu, igual desordem?
O dinheiro de um chefe, que a lei guarda,
Acode aos tristes órfãos e às viúvas;
Acode aos miseráveis, que padecem
Em duras, rotas camas, e socorre,
Para que honradas sejam, as donzelas;
Porém não paga furtos, por que fiquem
Impunes os culpados, que se devem,
Para exemplo, punir com mão severa.[10]
Critilo também critica a posição na qual Fanfarrão se prostra perante abandeira, em um determinado evento:
Diante da bandeira do senado.
Alguns dos rigoristas não lho aprovam,
Dizendo que devia, respeitoso,
Da maneira que sempre praticaram
Os seus antecessores, ir ao lado,
Por ser esta bandeira um estandarte
Onde tremulam do seu reino, as armas;
Mas eu não o censuro, antes lhe louvo
A prudência que teve; pois supunha
Que, à vista do seu sangue e seu caráter,
Podia muito bem querer meter-se
Debaixo, Doroteu, do próprio pálio.
Que destras evoluções não fez a tropa![11]
O posicionamento de Critilo com o trabalho escravo condiz com as diferentes ideias ligadas à escravidão presentes nos ideais da Inconfidência. Enquanto algumas propostas sugeriam que escravos nascidos no Brasil teriam alforria, a maioria acreditava que tal manobra iria prejudicar a atividade produtiva, gerada pelo sistema escravagista (FIGUEIREDO, 2002: XLIII).
Nas Cartas, nos deparamos com a ausência de um caráter abolicionista em Critilo. A ambiguidade pode ser observada quando discorre sobre a cadeia construída por Fanfarrão, por exemplo. Devido à escolha de algumas palavras, a revolta de Critilo parece estar mais associada ao fato de que brancos estavam sendo presos enquanto haviam negros soltos:
Muitos pretos já livres e outros homens
Da raça do país e da européia
Que, diz ao grande chefe, são vadios
Que perturbam dos povos o sossego[12]
É interessante a análise de elementos tão conservadores na obra e vida de um homem que foi indiciado por envolver-se com um movimento contrário a coroa. É no mínimo curioso o fato de que o mesmo escritor de Tratado de Direito Natural, obra dedicada ao Marquês de Pombal, foi exilado por envolvimento com levantes rebeldes.
Talvez o encontro do Gonzaga legalista com o Gonzaga “participante” da Inconfidência se deu pela situação das Minas Gerais pós Meneses, ou um pouco antes, quando se tornou ouvidor em Vila Rica. Pereira (2002: 771) aponta que enquanto advogado, Gonzaga era relativamente moderno. A opinião em nível político do autor já não teria a mesma configuração, posto que não acreditava que o rei deveria se subordinar aos povos. O protesto das Cartas é para com a transgressão que atacava o formalismo da época (FIGUEIREDO, 2002: XLI). Qualquer que tenha sido a simpatia que levou Tomás Antônio Gonzaga a ter noção do levante, não foi tão forte que o motivasse a seguir até o final.
A relação de Gonzaga com Joaquim José da Silva Xavier não é como Machado de Assis descreve, como uma ninfa que canta em volta de seu Prometeu. Em um dos trechos da devassa, no interrogatório de Cláudio, o mesmo afirma um afastamento de Gonzaga para com Tiradentes. Cláudio afirma que Gonzaga afastava o inconfidente, por acreditar que seu fanatismo poderia prejudicar muitas pessoas.
Conforme Lapa (2002: 547), Gonzaga considerava Tiradentes maluco. O seguinte trecho pode ser interpretado como uma descrição dele por Critilo:
Sê boa testemunha, meu paizinho,
A quem o vulgo chama Pé-de-Pato.
Confessa se não foste o que juraste
Que deste uma denúncia e fora falsa.
Indigno e bruto chefe, em que direito
Entendes que se firmam tais processos?
Um réu, a quem condena um magistrado,
Pode mostrar o injusto da sentença
Dando umas testemunhas que juraram
Sem haver citação da sua parte?
Dando umas testemunhas inquiridas
Por juiz que não pode perguntá-las?
E como, louco chefe, e como sabes
Que a defesa convence, se nem viste
Os autos, em que a culpa está formada?[13]
Vale lembrar que não foi apenas nas Cartas que Gonzaga mostrou seu descontentamento com Tiradentes e o seu levante. Conforme apontado por Helena (2002: 566), Gonzaga também ataca Tiradentes na lira XXXVIII.
O autor chama o levante de insulto e Tiradentes de demente. Não era só Gonzaga que considerava Tiradentes uma piada. Alvarenga Peixoto descreveu o momento na qual Tiradentes compartilhava os planos do levante como uma cena de comédia depravada (FIGUEIREDO,2002: XXXIV). Por estar envolvido no meio intelectual da época, o ouvidor frequentava reuniões nas casas de seus companheiros com uma certa periodicidade, onde debatiam assuntos literários e confraternizavam com outros letrados.
O envolvimento de Gonzaga com a Inconfidência me parece mais uma simpatia sutil que acabou saindo do controle. Lapa (2002: 546) afirma que a razão do envolvimento de Gonzaga com o levante foi sua ambição, posto que poderia conseguir um novo cargo nesta hipotética nova República. Entretanto, sua participação não era tão assídua. O papel de Gonzaga dentro do movimento era apenas de fomentador de ideias, dentro o bastante para saber o que estava acontecendo, mas fora o suficiente para conseguir não ser acusado com provas caso os planos não dessem certo, o que Lapa considera “um pé fora e outro dentro”.
Essa multiplicidade de ideias presentes na Inconfidência condiz com o que Souza (2002: XXX) chama de cruzamento entre tendências diversas.
Era em Minas que a insatisfação dos poderosos acontecia de forma rápida e violenta, enquanto a insatisfação dos pobres acontecia de forma cotidiana e gradual. Gonzaga é caracterizado por Souza (2002: XXX) como um conservador estamental, enquanto Tiradentes seria um delirante anticolonialista.
Conforme apresentado por Domício Proença (2002), o testemunho de Gonzaga presente nos Autos da Devassa (1982) não apontam nenhum interesse por parte do autor em defender o movimento. O árcade afirma sempre ter sido um zeloso e fiel vassalo, sem ânimo para ser um rebelde. A penúltima alegação parece transparecer no teor das críticas presentes das Cartas, citadas anteriormente. Seu zelo pela lei foi sua motivação para atacar a figura do governador Meneses nas Cartas. Pereira (2002: 786), em suas considerações sobre as Cartas Chilenas afirma que o caráter das epístolas varia entre ideais iluministas e uma legalidade antiprogressista. O autor também afirma que o grande motivo pela qual Gonzaga permaneceu “um pé fora e outro dentro” do movimento foi a base autoritária de sua criação, que o teria moldado dentro desse pensamento, que no fim, não conseguiu se desamarrar.
Tal envolvimento com a Inconfidência pode ser sido também uma gigantesca licença poética utilizada pelos árcades (FIGUEIREDO, 2002: XXXIX), poetas que flertavam com a perspectiva de ideias inovadoras.
Além disso, os motivos pela qual os árcades tenham participado do movimento poderia ser para lucro próprio. Alvarenga Peixoto, por exemplo, conseguiria anistia fiscal e tributária prevista nos planos da Inconfidência. (FIGUEIREDO, 2002: XXXVI)
Esses motivos parecem não terem sido o bastante para fazer com que Gonzaga e seus companheiros se engajassem efetivamente no movimento, pois quando entraram em contato com a possibilidade de um levante, o encantamento desapareceu. Esse engajamento tão fraco dos envolvidos é o que Figueiredo (2002: XLIV) classifica como a fragilidade operacional do movimento da Inconfidência.
Tomás Antônio Gonzaga pode não ter sido este grande revolucionário que o senso comum nos faz pensar, mas foi sim uma grande figura do seu tempo. Flertou com movimentos e buscou seu próprio interesse, sempre utilizando sua lírica para retratar a realidade de forma sutil e escancarada ao mesmo tempo, quando lida com atenção. Continuando a metáfora feita por Machado de Assis, quem sabe Gonzaga não tenha sido a ninfa em torno do Prometeu. Ao contrário, pode ter sido seu próprio Apolo – não tão gracioso quanto a figura grega – mas com sua(s) lira(s) e seus amores com finais trágicos.
REFERÊNCIAS
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[1] Carta 4
[2] Carta 8
[3] Carta 5
[4] Carta 5
[5] Carta 8
[6] Carta 2
[7] Carta 3
[8] Carta 3
[9] Carta 5
[10] Carta 2
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[13] Carta 7