RESUMO: Neste artigo, examino o emprego privilegiado do símile em Iracema. O uso estratégico dessa figura elocutiva resulta na equiparação da mitologia brasileira à europeia, revelando um aspecto da proposta alencariana à problemática da epopeia nacional. Concluo que, em vez de dissolvidas, as técnicas da instituição retórica foram instrumentalizadas a fim de afirmar os ideais nacionalistas ascendentes no Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: José de Alencar; Iracema; Técnicas retóricas; Símile.
ABSTRACT: In the present article, I examine the privileged employment of the simile in Iracema. The strategic use of this elocutive figure results in the comparison of Brazilian mythology to the European one, making manifest one aspect of the alencarian proposal with respect to the national epic. I conclude that, rather than dissolved, the technics of rhetorical institution were instrumentalized in order to affirm the ascending nationalist ideals in Brazil.
KEYWORDS: José de Alencar; Iracema; Rhetoric techniques; Simile.
1 O PROJETO DA EPOPEIA NACIONAL EM JOSÉ DE ALENCAR
O estilo lírico de Iracema (1865) pode causar estranheza ao leitor desavisado. Seja pela imagística burilada com recursos retóricos típicos da poesia, seja pela linguagem repleta de neologismos e de etimologias inventadas, surpreende a imperfeita identificação com aquilo que se espera de um romance romântico convencional.
De fato, para Augusto Meyer (1964, p. 20), “estamos diante de um poema, e como em todo poema, o conteúdo se concentra a cada passo na magia do ritmo e na graça da imagem, na melodia autônoma e na auto-suficiência de cada frase”. E quais seriam as razões para essa peculiar transmutação de romance em poema? Entendo que uma explicação possível para esse processo perpassa pela investigação da gênese épica que o gerou.
As décadas que sucederam a Independência do Brasil foram marcadas, literariamente, pela busca de uma identidade nacional e, por conseguinte, pela ruptura com modelos da antiga metrópole (CANDIDO, 2002). Esses esforços culminaram em tentativas, em geral malogradas, de compor uma epopeia nacional fundante de uma mitologia genuinamente brasileira. Exemplo destacado de tais empreendimentos é A Confederação dos Tamoyos (1856), de Gonçalves de Magalhães. Sua menção ainda hoje, porém, se deve talvez menos ao engenho artístico de seu autor do que às críticas à obra que inauguraram o esboço de um ambicioso projeto literário almejado por aquele que viria a ser o nome maior da prosa romântica nacional, José de Alencar.
Assinadas por Ig., pseudônimo de Alencar, as Cartas sobre a Confederação dos Tamoyos (1856) consistem em uma avaliação diligente da epopeia de Magalhães – ainda que o escritor cearense negue tratar-se de um “juízo crítico” do poema. Analisando-as, percebe-se que muitas das censuras postuladas à epopeia de Magalhães integrarão, em grande medida, a posterior tentativa de Alencar de compor uma obra que enfeixasse um mito fundacional do Brasil.
Nas Cartas, sobressai, no conjunto, o método adotado em sua avaliação: ficcionista romântico – supostamente alheio à poética clássica, portanto –, o crítico Alencar adota exatamente as convenções aí preconizadas para julgar A Confederação. Por exemplo, um de seus apontamentos mais frequentes, pulverizado por muitas das cartas, é o mau uso do princípio horaciano da vt pictura poesis[i] que vê em Magalhães.
Na primeira carta, lemos, a esse propósito:
Se me perguntarem o que falta [em A Confederação], de certo não saberei responder; falta um quer que seja, essa riqueza de imagens, esse luxo da fantasia que forma na pintura, como na poesia, o colorido do pensamento, os raios e as sombras, os claros e escuros do quadro. (ALENCAR, 1856, p. 6, grifo meu).
Na segunda:
Até aqui, ainda não encontrei uma d’essas descripções a que os poetas chamão quadros ou paineis, e nas quaes a verdadeira, a sublime poesia revela toda a sua belleza estetica, e rouba para assim dizer, á pintura as suas córes e os seus traços, á música as suas harmonias e os seus tons. (ALENCAR, 1856, p. 17, grifo meu).
Na terceira:
O Sr. Gonçalves Dias, nos seus cantos nacionaes, mostrou quanta poesia havia n’esses costumes indios, que nós ainda não apreciamos bem, porque os vemos de muito perto. A poesia é como a pintura, cujos quadros devem ser olhados a uma certa distancia para produzirem efeito. (ALENCAR, 1856, p. 32, grifo meu).
Finalmente, na quarta:
A poesia, a pintura e a musica são tres irmans gemeas que Deus creou com um mesmo sorriso, e que se encontrão sempre juntas na natureza: a fórma, o som e a côr são as tres imagens que constituem a perfeita encarnação da idéa; faltando-lhe um d’esses elementos, o pensamento está incompleto. (ALENCAR, 1856, p. 40, grifo meu).
Também outros elementos restritos à poética de Magalhães são censurados pelo romancista cearense, como sua metrificação falha, impropriedades gramaticais e mesmo incorreções históricas, além de equívocos do autor d’A Confederação quanto a aspectos estruturais da epopeia no que diz respeito, por exemplo, ao aproveitamento de um episódio periférico como desencadeador da narração (ALENCAR, 1856). O crítico Alencar, entretanto, está mais preocupado com a composição imagética da obra, quase que absolutamente deficitária em seu juízo: falta ao poeta inspiração para a descrição da natureza brasileira, tampouco é ele bem-sucedido na pintura da vida do índio (ALENCAR, 1856). No seu entender, a execução do poema não esteve à altura do assunto proposto.
Gênese pública do seu próprio projeto épico, as Cartas ensejariam, conforme o próprio autor, a composição de seu inacabado Os Filhos de Tupã, abandonado em favor de Iracema (ALENCAR, 2016). Dentre os motivos para essa decisão, Alencar cita o descompasso verificado entre a linguagem clássica da epopeia e o primitivismo indígena, além da necessidade de se enfatizar imagens daí oriundas, mais próprias à elástica da prosa (ALENCAR, 2016).
A partir das Cartas, percebe-se que o esmero na composição imagética será uma das linhas mestras que orientará a escritura de Iracema, tópico explorado na terceira seção do presente ensaio. A essa preocupação é que, talvez, Meyer (1964, p. 20) referia-se quando aludia à “graça da imagem” da lenda do Ceará alencariana.
2 A ESTRUTURA ÉPICA E A CONFORMAÇÃO ALENCARIANA
A epopeia é definida por Aristóteles (2015, p. 69) como a “mimese de caráter elevado por meio de linguagem metrificada”, sendo caracterizada, também, por ser uma narrativa de extensão relativamente longa e pela métrica uniforme. Maurice Bowra (1962, p. 1) acrescenta que a poesia épica “deals with events which have a certain grandeur and importance and come from a life of action, especially of violent action such a war”[ii].
Estruturalmente, um poema épico é composto, segundo Massaud Moisés (2013, p. 155, grifos do autor), pelas seguintes partes:
A proposição, o enunciado do tema da obra; a invocação, o apelo aos deuses para que auxiliem o poeta na sua empreitada criadora; a narração, parte central e mais extensa, que contém o relato minucioso da ação executada pelo herói; a narração deve obedecer a uma narração lógica; entretanto, à ordem cronológica seria preferível a artificial, que surpreende a ação em meio (in media res); o epílogo, fecho da ação, deve guardar um imprevisto, mas ser verossímil e coerente, além de conter desenlace feliz.
Além dessas partes, seria ainda possível acrescentar a dedicatória, ausente na epopeia homérica e introduzida por Virgílio em Eneida (39 a.C.), alegoricamente embora, e utilizada por Luís de Camões em Os Lusíadas (1572)[iii].
Quanto a Iracema, inconteste é que não se trata propriamente de um poema épico. Para tanto, deveria, atendo-se apenas à forma, ser composto por versos metrificados e uniformes (ARISTÓTELES, 2015). Por outro lado, há subsídios suficientes para destacarmos sua tenção épica. Iniciado in media res, Iracema trata da mimese de homens de caráter elevado ao estabelecer um mito fundacional, à semelhança dos épicos supracitados. Além disso, a ação bélica referida por Bowra (1962) é representada pelo conflito entre potiguaras e tabajaras, componente diegético central da obra.
Textualmente, é possível distinguir os laivos épicos de sua estrutura. No capítulo I, espécie de prólogo à parte do enredo, encontram-se algumas das características épicas do romance: a dedicatória, a invocação e a proposição. A dedicatória “À TERRA NATAL / um filho ausente” (ALENCAR, 2016, p. 89) é escrita por um cearense vivendo na corte. Estudiosos há que veem na dedicatória de Alencar uma motivação política (CAMILO, 2007) – o que, aliás, também produz em Iracema um ponto de congruência com a tradição épica, sempre ciente, desde Virgílio, de seu mecenas.
Eis o trecho que se poderia chamar de invocação:
Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba; Verdes mares que brilhais como líquida esmeralda aos raios do Sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros. Serenai verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas. (ALENCAR, 2016, p. 95).
Excerto que remete à proposição da epopeia camoniana:
Cessem do sábio grego e do troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram,
Que eu canto o peito ilustre lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram;
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta. (CAMÕES, 1982, p. 30).
Aqui se faz necessária uma distinção importante: o narrador de Alencar, e muito apropriadamente, não se dirige à história ou à mitologia clássica, mas à própria natureza, capaz de guiar o “barco aventureiro” que inicia sua jornada rumo à formação da lenda do Ceará. Mais: diferentemente do tom bélico, terrível, aceiro, de Camões, Alencar adota uma linguagem melíflua, suave, que transporta o leitor diretamente para seu mundo algo paradisíaco.
Também típica da epopeia, a proposição “que deixara ele [Martim] na terra do exílio?” (ALENCAR, 2016, p. 96) funcionará como fio condutor do enredo de Iracema.
A narração da obra iniciará apenas no capítulo II, estendendo-se até o capítulo XXXII. Toda a narração será desenvolvida em virtude da proposição mencionada: os encontros e desencontros de Martim com Iracema, os desentendimentos entre os tabajaras, a amizade de Martin com Poti, a guerra entre as tribos indígenas. O capítulo XXXIII será o epílogo, culminando no retorno de Martim ao Ceará, na conversão de Poti ao cristianismo e na menção à luta contra os holandeses.
É curiosa mistura de arcaísmo e de modernidade o que se vê na lenda do Ceará. Se, por um lado, Alencar critica o artificialismo datado de Magalhães em sua tenção épica, por outro, ele apropria-se do mesmo intuito de seu alvo, reconfigurando-o em prosa. Não é casual sua ênfase à vt pictura poesis nas Cartas: é recorrendo a figuras elocutivas, em especial ao símile, núcleo da poética alencariana em Iracema[iv], que Alencar constrói o universo imagético de seu “poema”.
Ora, o símile é, fundamentalmente, elemento poético: “o símile é útil na prosa, embora poucas vezes, pois é um elemento poético” (ARISTÓTELES, 2005, p. 252). A propósito desse ponto, aliás, Aristóteles recomenda a extração da metáfora[v] a partir “de coisas belas quer em som, quer em efeito, quer em poder de visualização, quer numa outra qualquer forma de percepção.” (ARISTÓTELES, pp. 248-249, grifo meu).
É no poder de visualização que reside a força poemática de Iracema, o modo pelo qual o autor elevou sua narrativa a um patamar épico. Como o notara Meyer (1964), é poema, apesar de prosa.
3 O CONCERTO HARMONIOSO: SÍMILE E ÉPICA EM IRACEMA
Em Iracema, uma das facetas do princípio da vt pictura poesis de Alencar pode ser analisada, no plano linguístico, por meio do recurso retórico-poético do símile. Aqui, o símile opera como maestro de um concerto harmonioso composto pela natureza e pelas personagens. Apesar da centralidade desse efeito provocado pelo uso do símile, André Cardoso (2012, p. 81) vê aí uma excrescência alencariana, que talvez comprometesse o equilíbrio da obra:
Em Alencar, esse fracasso, essa frustração decorrente do paradoxo de criar uma linguagem puramente imagística através de palavras, se manifesta na própria proliferação dos símiles, no seu excesso e, muitas vezes, na sua redundância, como se a repetição pudesse aumentar a intensidade das imagens, afogando o texto em sensações visuais, na busca de um ideal que nunca chega a se concretizar completamente.
Compreendo que tal apontamento não considera suficientemente a relevância assumida pelo símile em Iracema. Sua função não se esgota em uma exagerada celebração pictórica da natureza nacional; está lá, também, para demonstrar que existe um princípio fundamental que harmoniza a natureza àqueles que a habitam, amplificando sua função pela conformação estabelecida com as personagens.
Nesse sentido, cabe aqui uma distinção entre símile e comparação, que, embora tênue, é essencial para explicitar os efeitos retóricos na obra: enquanto o símile é empregado a fim de enaltecer um dos objetos da comparação, a comparação mantém os elementos contrastados no mesmo plano (MOISÉS, 2013). Em Iracema, essa operação é sutil. Como demonstro adiante, o recurso retórico-poético preferencial do autor, nessa obra, é, de fato, o símile.
Embora possa parecer que os paralelos, quando empregados, sejam estabelecidos para simplesmente revelar harmonia, relação de igualdade, entre personagem e natureza (comparação), é o símile que desencadeia o processo de valorização dos elementos contrastados: a harmonia se dá pela elevação concomitante de personagem e de natureza. É como se o símile funcionasse como uma ponte dupla: é tão somente no ato do seu emprego – não no da comparação – que as personagens e a natureza são enobrecidas igualmente (e elevadas a um patamar épico, portanto), tornando-se dignas uma da outra.
Alencar também utiliza o símile como chave da visão do mundo indígena: a vida cultural, em Iracema, é sempre manifestada a partir do contraste com a vida natural. Assim, ao longo da narrativa, o símile abrange diversos aspectos da vida cotidiana, como beleza, fealdade, felicidade, tristeza, guerra, espaço, tempo, exemplificados a seguir.
No que se refere à beleza, a descrição de Iracema, no capítulo II, apesar de repetida à exaustão, permanece o exemplo mais evidente: “Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira” (ALENCAR, 2016, p. 99, grifo meu); “O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado” (ALENCAR, 2016, p. 99, grifo meu); “Mais rápida que a ema selvagem” (ALENCAR, 2016, p. 99, grifo meu).
Em Iracema, entretanto, a beleza natural está expressa não apenas em seus atributos físicos, mas também em sua configuração emotiva. Sua lente do mundo é a natureza. Isso torna-se claro no final do mesmo capítulo, no encontro inicial entre ela e Martim: “Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo” (ALENCAR, 2016, p. 100, grifo meu). O narrador toma o foco narrativo da personagem para expressar seu estranhamento frente à alteridade – mas, junto ao estranhamento, seu contentamento, haja vista os aprazíveis componentes naturais a serem cotejados com a figura do português.
A fealdade, por sua vez, aparece associada à ideia de tristeza: “Mas agora, triste e muda, desdenhada de sua senhora, não parecia mais a linda jandaia, e sim o feio urutau que somente sabe gemer” (ALENCAR, 2016, p. 138, grifo meu). Nesse exemplo, há uma particularidade: a própria natureza transmuta-se entre si, sem a interferência do indígena, o que sugere a harmonia natureza-natureza, que transcende a relação indígena-natureza.
Quanto aos sentimentos, observa Elvya S. Ribeiro Pereira (1996, p. 117):
[…] é o símile que possibilita esse ininterrupto fluxo de valores e sentimentos que marcam o destino de Iracema, no seu relacionamento com Martin Soares Moreno — cada estado de ânimo da Virgem dos lábios de mel encontra um elemento natural para representá-lo.
Com efeito, dois exemplos ilustram o acima exposto. Em termos de felicidade: “A filha dos sertões era feliz, como a andorinha que abandona o ninho de seus pais e emigra para fabricar novo ninho no país onde começa a estação das flores” (ALENCAR, 2016, p. 199). Quanto à tristeza: “Os mesmos guerreiros que a tinham visto alegre nas águas da Porangaba, agora encontrando-a triste e só, como a garça viúva, na margem do rio […]” (ALENCAR, 2016, p. 217, grifo meu).
Importa notar que o uso de duas aves na aproximação com Iracema não é fortuito: enquanto a andorinha é pássaro associado ao contentamento gerado pelo sol (plano superior), pelo verão, a garça é associada ao rio (plano inferior), à água, elemento que marca a distância espacial – que, na relação entre Martim e Iracema, é componente central.
O símile também é utilizado durante momentos de tensão bélica: no capítulo V, quando do conselho de guerra dos tabajaras, Irapuã, personagem que incita os tabajaras à guerra, argumenta para convencer a tribo de suas intenções: “Faremos nós, senhores das aldeias, como a pomba, que se encolhe em seu ninho, quando a serpente enrosca pelos galhos?” (ALENCAR, 2016, p. 114, grifo meu).
Em resposta, o mais jovem dos guerreiros alega que: “— O gavião paira nos ares. Quando a nambu levanta, ele cai das nuvens e rasga as entranhas da vítima. O guerreiro tabajara, filho da serra, é como o gavião” (ALENCAR, 2016, p. 114, grifo meu).
Esse embate, que opõe duas posturas diante da guerra, também se vale de dois elementos contrastantes hauridos da natureza: ao utilizar os pássaros para engendrar o símile, é como se as personagens estivessem em um confronto sobre de que modo a harmonização com a natureza seria mais adequada.
Já no capítulo XIV, um argumento bélico, pela fala de Caubi, também é formado por um símile: “Vis guerreiros são aqueles que atacam em bando como os caititus. O jaguar, senhor da floresta, e o anajê, senhor das nuvens, combatem só o inimigo” (ALENCAR, 2016, p. 158, grifo meu).
Daí resulta a noção de retidão. O adequado, o justo, é, para o índio tabajara, aproximar-se do gavião, não da pomba; imitar o jaguar, o anajê, não os caititus; agindo assim, o guerreiro tabajara estaria conforme a natureza, personificando as características essenciais de tais animais.
Além do que se refere aos indígenas (características e relações), o narrador emprega, igualmente, elementos da natureza para marcação espaçotemporal: “A virgem seguiu adiante; os dois guerreiros após. Quando tinham andado o espaço que transpõe a garça de um voo, o chefe pitiguara tornou-se inquieto e murmurou ao ouvido do cristão” (ALENCAR, 2016, 170, grifo meu).
Embora não se trate propriamente de símile ou de comparação, percebe-se que, na lógica da narrativa, as personagens – e mesmo o narrador – assumem uma noção espaçotemporal que remete à comparação com a natureza: não é um relógio mecânico que denota o tempo certo, mas a observação da regularidade extraída do meio.
Quanto à marcação temporal, convém, antes de exemplificá-la, comentar acerca da função das fartas notas explicativas de Alencar; sejam elas de caráter etimológico – muitas vezes, sem fundamento científico, mas essenciais para o mito proposto (CAMPOS, 2006) –, sejam elas de esclarecimento de certo elemento autóctone. Embora esse expediente demonstre o artificialismo da obra – as epopeias são fundamentadas em mitos de notório saber, não havendo necessidade de explicá-los –, não deixa de ser um recurso de suma importância para a devida compreensão do romance.
Ao comparar o cabelo de Iracema com a asa da graúna, Alencar introduz uma nota em que explica: “é o pássaro conhecido de cor negra luzidia. Seu nome vem por corrução de guira – pássaro, e uma, abreviação de pixuna – preto” (ALENCAR, 2016, p. 258). E assim faz o autor, sucessivamente, com outros componentes da natureza ou da vida indígena, como árvores (oiticica; juçara; jurema); animais (boicininga; inhuma; guará); ou objetos (camucim; carioba; bucã) etc.
A importância dessas notas se dá, principalmente, porque, como já dito, a vida indígena, no romance de Alencar, é regida pelos elementos da natureza – sem o devido esclarecimento da natureza subjacente, muito da riqueza da obra é perdida. Justificam-se as notas, pois, ao intentar a fundação da mitologia nacional, o autor utiliza uma série de referências à fauna e à flora brasileiras estranhas ao civilizado público leitor.
Como marcador temporal, a inhuma é exemplo: “Quando o segundo pio da inhuma ressoou, Iracema corria na mata, como a corça perseguida pelo caçador” (ALENCAR, 2016, p. 138, grifo meu). É apenas por meio da nota explicativa que sabemos que se trata de uma ave noctívaga que canta regularmente à meia-noite.
O que vale para a marcação espacial, vale à marcação temporal: o símile não se efetua linguisticamente, fazendo-se sentir na narração, que busca substituir marcadores espaçotemporais da civilização por aqueles de caráter primitivo – ressaltando, com isso, sua superioridade porque natural.
4 CONCLUSÃO
Iracema é, talvez, uma das mais satisfatórias, apesar de imperfeita, soluções na história da literatura brasileira para uma obsessão ainda não totalmente superada[vi]: a criação da epopeia nacional. Atento à incongruência entre um gênero tipicamente clássico e o momento romântico, Alencar buscou mesclá-los a fim de traduzir o espírito épico em termos românticos – valendo-se, para isso, de um princípio clássico, o da vt pictura poesis e de um recurso retórico-poético clássico, o símile.
Todos os elementos apresentados, analisados em conjunto, contribuem para a criação do maravilhoso épico em Iracema. Peculiar é a operação alencariana: o natural torna-se sobrenatural, o que é paradoxo. E é precisamente o apelo ao símile que permite a elevação da natureza brasileira a um patamar que supera a própria natureza real, concreta. Em tal sentido, o âmago do maravilhoso da obra parece situado nesse artifício estilístico. O interesse literário da obra repousa, sobretudo, na tentativa, malgrado seu efeito por vezes postiço, de solucionar (conciliar, harmonizar) uma problemática nacional por meio de recursos tipicamente retórico-poéticos, como o símile, aplicados à prosa, de modo a elevar a matéria à dignidade épica.
Curiosa é a ideia de harmonia na obra romântica. O romântico é cingido pela dissensão, pela queda, pelas fraturas expostas de um mundo cuja ideia da harmonia universal é conscientemente assumida como perdida. Nesse momento, o escritor focaliza o particular, mas não sem a desilusão com as possibilidades que a exploração desse aspecto se faz. É por isso que, como observam Anatol Rosenfeld e J. Guinsburg (2008), a Idade Média provocou efeito tão nítido nos escritores românticos: é que, para eles , ela simbolizaria o “paraíso perdido” da almejada unidade. Talvez, na sua lenda do Ceará, é que Alencar, sonhando epicamente, tenha encontrado o elemento de unidade que lhe faltava.
5 REFERÊNCIAS
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[i] Na tradução de Cândido Lusitano, “À pintura a poesia se assemelha”. Cf. HORÁCIO. Arte poética. In: SOUZA, Roberto Acízelo de (Org.).Do mito das musas à razão das letras: textos seminais para os estudos literários (século VIII a.C. – século XVIII). Chapecó: Argos, 2014. p. 101.
[ii] “Trata de eventos que possuem uma certa grandiosidade e importância e que provêm de uma vida de ação, sobretudo de uma ação violenta, como uma guerra” (tradução minha).
[iii] Eneida é dedicada a Augusto, fundador do Império Romano e figura central no estabelecimento da Pax Romana. A alegoria pode ser identificada pela raiz genealógica comum que Virgílio, artificialmente, estabelece entre seu herói, Eneias, e Augusto. Cf. OLIVA NETO, João Angelo. Breve anatomia de um clássico. In: VIRGÍLIO. Eneida. São Paulo: Editora 34, 2014, pp. 14 e ss. Os Lusíadas, por sua vez, é dedicado a D. Sebastião, como fica evidente ao longo do Canto Primeiro. Cf. CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Abril Cultural, 1982, pp. 30 e ss.
[iv] Cf. PROENÇA, M. Cavalcanti. Transforma-se o amador na coisa amada. In: ALENCAR, José de. Iracema. Edição do centenário. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965. O ensaio, infelizmente, não pôde ser consultado. Porém, pelo fato de ser ele pioneiro no estudo do símile em Iracema, justifica-se aqui sua menção.
[v] Convém salientar que, segundo Aristóteles (2005), o símile não passa de uma modalidade metafórica, cuja diferença repousa no uso de um conetivo para aproximar as ideias pretendidas.
[vi] Ainda ao longo do século XX, persistiram tentativas de caráter épico na literatura brasileira. São exemplos desses esforços: Os Brasileidas (1938), de Carlos Alberto Nunes; A Invenção de Orfeu (1952), de Jorge de Lima; Invenção do Mar (1997), de Gerardo Mello Mourão; e Galáxias (1984), de Haroldo de Campos. Sobre os dois últimos, cf. SCUDELLER, Gustavo. O Épico em Invenção do Mar, de Gerardo Mello Mourão, e Galáxias, de Haroldo de Campos. 382 f. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) – Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), 2014.