Trazendo um pouquinho mais de literatura digital à Mafuá, nesta edição conversamos com Rejane Cristina Rocha, doutora em Estudos Literários e professora na Universidade Federal de São Carlos. Atualmente Rejane coordena o projeto “Repositório da Literatura Digital Brasileira“, que possibilitará a preservação de inúmeras obras digitais produzidas no Brasil, assim como uma maior divulgação de toda essa produção artística.
1) Rejane, por mais que seja uma pergunta extremamente complexa, primeiramente nós gostaríamos de saber: o que é literatura digital?
É, mesmo, uma questão bastante complexa. Nos projetos “Repositório da Literatura Digital Brasileira” (CNPq n. 405609/2018-3), coordenado por mim, e “Cartografía crítica de la Literatura Digital Latinoamericana”, coordenado pela Profa. Carolina Gaínza, da Universidade Diego Portales, no Chile, desenvolvemos uma definição que pudesse nos servir de ponto de partida para o mapeamento das obras literárias digitais produzidas no Brasil e na América Latina:
a literatura digital – que exclui as obras digitalizadas – é aquela que se produz pelo aproveitamento das potencialidades e pela resposta às limitações das novas mídias, digitais, na sua fatura, a partir de uma experimentação com o código informático ou, ainda, com as mídias digitais (plataformas, redes, aplicativos).
Trata-se, no primeiro caso, de obras que frequentemente articulam matéria verbal e não verbal, como som, vídeo, movimentos, configurando-se como multimodais e, no segundo caso, de obras que rasuram ou reconfiguram os gêneros literários tais quais os conhecemos, a partir do momento em que são produzidas, publicadas e lidas nas mídias digitais. Parece-me que o grande desafio dos estudiosos brasileiros é tentar construir uma definição de literatura digital que efetivamente parta de nossa realidade técnico-cultural-literária. Explico-me: a metalinguagem que tem se consolidado em torno da produção literária digital é de extração norte-americana; o protagonismo dos EUA no desenvolvimento das tecnologias informáticas tem se convertido, rapidamente, em um protagonismo também na produção dos objetos culturais que as mobilizam e, assim, as obras mais analisadas, bem como as reflexões teórico-críticas que mais circulam dizem respeito às especificidades dessa realidade norte-americana. E em muitos casos os conceitos e definições desenvolvidos nesse contexto não comportam as especificidades da produção literária brasileira. De qualquer maneira – e isso eu acho importante sublinhar – o conceito de literatura digital com o qual trabalhamos nesses projetos está sendo pensado, formulado e reformulado a partir da realidade da nossa produção literária, a partir das obras que temos mapeado; se não descuramos da metalinguagem que já tem se consolidado a respeito desses objetos, não deixamos de levar em consideração o nosso contexto literário e tecnológico e as obras brasileiras no desenvolvimento dessas definições.
2) Dentro do atual cenário da literatura digital no Brasil, fica bem visível a necessidade de um repositório/biblioteca que englobe essas obras. De forma geral, como tem sido esse processo de criação do repositório?
O projeto de criação do Repositório está entrando no seu segundo ano de desenvolvimento, sem levar em consideração o ano que trabalhamos no preparo do projeto que foi submetido ao CNPq. Infelizmente, dada a atual situação de fomento à pesquisa no Brasil, embora o projeto tenha sido contemplado no Edital Universal, recebeu, até o momento, menos de 10% da verba prevista e não tivemos implementada nenhuma das bolsas de pesquisa concedidas. A despeito de tudo isso, temos desenvolvido as atividades de mapeamento das obras literárias digitais e a sua descrição a partir de uma ficha de mapeamento que desenvolvemos em colaboração com o projeto coordenado por Carolina Gaínza. Nosso banco de dados, atualmente, conta com mais de 100 obras literárias digitais descritas e indexadas e um rol de textos críticos, publicados em periódicos nacionais, sobre essas obras. Estamos, também, construindo, um glossário de termos a partir das leituras teóricas que fundamentam as atividades de pesquisa da equipe e estabelecendo contato com os autores das obras mapeadas, a fim de pensarmos as melhores estratégias de conservação. É importante lembrar que no final de 2020 não haverá mais suporte para o Flash, o que significa que muitas das obras que constam no nosso mapeamento ficarão indisponíveis para leitura, o que se configura como uma perda enorme para a história da literatura brasileira recente. Em 2020 nos dedicaremos a construir – desde que o financiamento aprovado pelo CNPq seja liberado – a plataforma que abrigará o repositório e que deverá prever diferentes formas de preservação dessas obras, além de mecanismos de consulta para especialistas e não-especialistas.
3) Infelizmente, por vários motivos, vemos que a literatura digital no Brasil não tem uma grande visibilidade, tanto dentro quanto fora da academia. Como você vê que o seu projeto poderia mudar esse contexto? Quais outros passos poderiam ser dados?
O projeto de construção do Repositório da Literatura Digital Brasileira nasce de uma urgência: preservar as obras literárias digitais que, por obsolescência dos softwares em que foram construídas – além de outros motivos – estão se perdendo e inviabilizando que contemos a história de parcela importante da literatura brasileira: uma parcela que expõe o surgimento de uma nova técnica e, quiçá, de uma nova linguagem e/ou novos gêneros literários. No entanto, esse projeto integra um projeto maior, de médio prazo, que é a criação de um Observatório da Literatura Digital Brasileira, que deverá continuar desenvolvendo as atividades de preservação das obras literárias digitais, mas que também deverá congregar pesquisas para compreender a produção brasileira, bem como elaborar estratégias para fomentar a criação e a leitura de obras literárias digitais. Parece-me urgente que, no Brasil, coloquemos em discussão o uso que fazemos das tecnologias digitais – na maioria dos casos, somos apenas usuários e pouco compreendemos do funcionamento algorítmico e social dessas mídias, o que, como sabemos, tem resultado em verdadeiros desastres de desinformação, como testemunha nossa história recente – e, na minha opinião, fomentar a criação artística é uma possibilidade de, como propõe Arlindo Machado, “desprogramar a técnica” e, assim, compreender de forma mais consciente e crítica o seu funcionamento.
4) Além do repositório, quais outros projetos / estudos têm sido desenvolvidos nessa linha de pesquisa na UFSCar?
Todos os membros da equipe do projeto são pesquisadores, em diferentes níveis de formação, que desenvolvem projetos de pesquisa que dialogam com esse projeto principal e que estão vinculados a uma Linha de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura (PPGLit) que se chama “Literatura, Linguagens e Meios”. Ou seja, cada uma dessas pesquisas e pesquisadores procura responder questões que foram surgindo a partir do processo de mapeamento e de compreensão das especificidades da Literatura Digital Brasileira, assim, a Professora Doutora Luciana Salazar Salgado (PPGLit/UFSCar; PPGL/UFSCar; IEB/USP), reflete sobre os modos de produção e circulação da cultura no contexto digital, propondo uma distinção conceitual entre cultura digital e cibercultura; a doutoranda Natália Cristina Estevão (PPGLit/UFSCar) tem discutido, no seu projeto de pesquisa, de que maneira a arquitetura informacional de repositórios e diretórios de literatura digital – nos EUA e na Espanha – contribuem para a consolidação de um conceito de literatura digital, bem como para o estabelecimento de um “valor” literário para essas obras; a mestranda Nair Renata Amâncio (PPGLit/UFSCar) analisa a história da Revista Texto Digital (NUPILL/UFSC), até hoje o único periódico científico brasileiro dedicado a questões relativas à textualidade digital, a fim de discutir de que maneira e a partir de quais recortes teóricos e metodológicos se tem consolidado uma crítica literária brasileira dedicada à literatura digital; o mestrando Flávio V. Komatsu (PPGLit/UFSCar) analisa um corpus de narrativas hipertextuais brasileiras, para compreender de que maneira as estratégias narrativas são ampliadas e/ou limitadas a partir da mobilização de hiperlinks; a mestranda Laura Nogueira Pacheco (PPGEL/UNESP/Ar.) indaga a respeito dos conceitos de autoria e de obra nos espaços de produção e circulação das obras literárias no contexto digital; a pesquisadora de Iniciação Científica Taciana Gava Menezes (Letras/UFSCar) discute a parte da produção poética de Augusto de Campos que, tendo sido publicada originalmente em formato impresso, migra para o ambiente digital, para entender a produtividade do conceito de remediation, proposto por Bolter e Grusin, para a descrição desse fenômeno; a pesquisadora de Iniciação Científica Gabriela Gritti (Letras/UFSCar) constrói um mapeamento da fortuna crítica existente a respeito das obras literárias digitais mapeadas no âmbito do projeto Repositório, para entender de que maneira a crítica literária está descrevendo e analisando essas obras.
5) Por fim, Rejane, para quem nunca entrou em contato com literatura digital, quais seriam as suas primeiras recomendações de leitura?
A produção literária digital brasileira é ampla e muito diversa. No site www.atlasldigital.ufscar.br, em que documentamos o processo de construção do Repositório e reunimos os resultados parciais das pesquisas desenvolvidas pela equipe de pesquisadores, colocamos no ar uma seleção de obras que constam do nosso mapeamento. Acho que essa seleção dá uma boa ideia dessa amplitude e variedade da produção e é uma boa forma de começar a conhecer a literatura digital brasileira.