“De todo modo, era a minha revolução”: Silenciamento de vozes femininas na Geração Beat

Ariane Ribeiro Santana

RESUMO: O presente trabalho busca analisar a marginalização feminina no movimento estadunidense de contracultura denominado Geração Beat, cujos integrantes, em sua maioria homens, conviveram nos anos 1950 em Nova York e São Francisco. Tal análise ocorre através de quatro obras: Come and Join the Dance e Minor Characters, ambas de Joyce Johnson, Troia: Mexican Memoirs, de Bonnie Bremser/Brenda Frazer, e Memoirs of a Beatnik, de Diane di Prima. Com o uso da ginocrítica de Showalter (1994) e do conceito de zona selvagem (ARDENER apud SHOWALTER, 1994), a pesquisa se propôs a compreender o modo como as mulheres Beat eram tratadas por seus pares masculinos e como essas mulheres conquistavam suas vozes para além do que os homens as permitiam.

PALAVRAS-CHAVE: Geração Beat; Crítica literária feminista; Ginocrítica.

ABSTRACT: The present paper aims to analyze the female exclusion in the American countercultural movement of the Beat Generation, whose members, mostly men, coexisted in the 1950s in New York and San Francisco. This analysis is done through four books: Come and Join the Dance and Minor Characters, both by Joyce Johnson, Troia: Mexican Memoirs, by Bonnie Bremser/Brenda Frazer, and Memoirs of a Beatnik, by Diane di Prima. By making use of gynocriticism and the concept of wild zones (ARDENER apud SHOWALTER, 1994), this research sought to understand the way which Beat women were treated by her male peers and how these women were able to conquer their voices beyond what men allowed them.

KEY-WORDS: Beat Generation; Feminist literary critic; Gynocriticism.

A década de 1950 foi, em todo o mundo, uma época de intensa polarização por conta da Guerra Fria. Após saírem vitoriosos da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos se tornaram a maior potência do mundo capitalista através do Plano Marshall, que consistia em empréstimos bilionários para que a Europa pudesse se reconstruir, mas apenas os países que se comprometessem a manterem-se capitalistas (KARNAL et al., 2007, p. 229). Foi também o período do American Way of Life, do crescimento econômico e da prosperidade da família estadunidense.

Mas foi também o período da caça às bruxas popularmente chamada de macarthismo. Joseph McCarthy foi um senador eleito em 1946 que era bastante desinteressado no legislativo. Porém, após um discurso inflamado na Virgínia, afirmando que sabia de 205 comunistas infiltrados no governo, o senador passou a ser o líder da caça aos comunistas no país (MURRIN et al., 2008, p. 925). Sua influência era tanta que até os presidentes Truman e, posteriormente, Dwight D. Eisenhower, precisavam evitar certas decisões que fossem desagradar McCarthy e suas forças anticomunistas (MILES, 2012, 280). Esse anticomunismo ferrenho, juntamente com o fim da Segunda Guerra Mundial, contribuiu para criar um padrão social no qual o homem deveria ser o provedor de toda a família (EHRENREICH, 1983, p. 7), sob o risco de ser considerado “infantil” caso rejeitasse esse modelo (EHRENREICH, 1983, p. 24), e a mulher deveria cuidar da casa e dos filhos.

Foi nesse contexto estadunidense que surgiu um movimento de contracultura denominado Geração Beat. Dela surgiram não apenas livros, mas também filmes, fotografias, esculturas e, acima de tudo, círculos sociais extensos; daí a definição do crítico literário Claudio Willer, que afirma que a característica mais marcante da Geração Beat é a amizade (WILLER, 2010, p. 17). Pode-se dizer, também, que o definidor do movimento literário era o que Willer (2010, p. 28) chamou de “espontaneísmo beat”, técnica bastante similar ao fluxo de consciência. No entanto, assim como não devemos diminuir os Beats a meros autores que se utilizavam de técnicas empregadas previamente por outros movimentos, não acreditamos que a amizade seja a característica mais importante dessa comunidade. Uma conceituação mais precisa, a nosso ver, encontra-se em Grace e Johnson (2002, p. 135): 

O que é distintivamente Beat é o momento histórico e o contexto social nos quais suas iconoclastias eram praticadas, e as comunidades específicas a partir das quais a práxis Beat tomou forma: a maneira como os habitantes dos enclaves Beat pós guerra — isto é, pós-Hiroshima, pós-Auschwitz — em Boston, Nova York e São Francisco rejeitavam as paranoias da Guerra Fria, as conformidades das corporações formais, a cultura de consumo, a  repressão sexual e os ataques contra os gays da era McCarthy quando era pouco comum sê-lo abertamente.

Os autores mais celebrados desse movimento são Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William S. Burroughs, sendo eles os que conseguem, de alguma forma, penetrar no mundo acadêmico com frequência (PINEDO, 2016, p. 23). No entanto, podemos citar diversos autores como Lawrence Ferlinghetti, John Clellon Holmes, Robert Creely, entre outros. Mas a ausência de mulheres nessas listas é algo que chama a atenção: além de não serem devidamente reconhecidas na história da literatura, também tiveram suas produções obscurecidas; como descrito por Keeling (2011, p. 14), 

A ironia frustrante com que muitas mulheres nas comunidades Beat tinham que lidar era que, apesar dos Beats se rebelarem contra todos os outros aspectos da conformidade da era McCarthy, os papéis de gênero rígidos permaneciam aonde quer que elas fossem.

É claro que a situação da mulher beat era um reflexo da situação da mulher nos Estados Unidos como um todo. Segundo Betty Friedan (1971, p. 2984), o homem estadunidense, recém-chegado da Segunda Guerra Mundial, sentia-se vulnerável e buscava conforto e estabilidade no lar e em um trabalho permanente (os chamados white-collar jobs — empregos de colarinho branco — ou seja, frequentemente burocráticos e pouco dependentes de trabalho físico). Ademais, se a psicologia fez seu trabalho para convencer o homem de que um trabalho estável era sinal de maturidade (EHRENREICH, 1983, p. 19), ela também obteve sucesso tentando convencer as mulheres de que seu destino biológico era ter filhos e cuidar da casa. Friedan (1971) afirma que o “problema sem nome” das donas de casa da metade do século XX causava, entre outros sintomas, a sensação de incompletude e de vazio, uma espécie de inquietação que se alastrava pelas mulheres dos Estados Unidos. Enquanto algumas mulheres preenchiam esse vazio com remédios ou com amantes, outras tentavam a sorte com os rebeldes da Geração Beat.

Existem duas coletâneas que se dedicaram exclusivamente à produção literária das mulheres da Geração Beat. A mais antiga foi publicada por Brenda Knight em 1996, denominada Women of the Beat Generation. A segunda, publicada um ano depois por Richard Peabody, é digna de menção, ainda que a primeira coletânea tenha sido primariamente utilizada neste trabalho. A construção de ambas é distinta: Knight prezou pela biografia das mulheres, enquanto Peabody deu mais enfoque às obras propriamente ditas em detrimento da vida das autoras; apesar disso, acreditamos que ambas possuam igual mérito. Bonca (2000, p. 261) sugere que a coletânea de Knight seria problemática pois seu “entusiasmo pelos Beats é tão sem limites que ela tende a se animar a qualquer menção da palavra ‘criatividade’”; tal apontamento nos parece insuficiente pois é oferecido como uma opinião do autor sem embasamento claro, parecendo entender que a ausência de elementos sobre a biografia, tal como realizado por Peabody, seria equivalente a distanciamento e, portanto, melhor do que uma coletânea que enfoque paralelamente a obra e a biografia das autoras. Esse último elemento, como será percebido ao longo do artigo, é um ponto importante para essa pesquisa e merece ser ressaltado, tal como executado por Knight.

Em seu livro, Knight divide as mulheres de Geração Beat em quatro categorias: as precursoras, as musas, as escritoras e as artistas. No entanto, a diferenciação entre musa e escritora ou artista não é tão clara quanto propõe: Carolyn Cassady, categorizada como musa, escreveu um livro de memórias posteriormente, assim como Edie Parker, outra musa na visão de Knight. Como estabelecido por Pinedo (2016, p. 32), a categoria de “escritora Beat” é subjetiva e parece depender da aclamação de determinadas autoras, utilizando como exemplo Brenda Frazer, que tem pouco material publicado mas ainda assim é considerada uma autora Beat. Uma categorização alternativa foi feita por Grace e Johnson (2002, p. 260): as contemporâneas aos primeiros autores Beat, nascidos por volta de 1910 e 1920; as mais jovens, nascidas na década de 30; e as que se juntaram ao movimento posteriormente, nascidas na década de 1940. Apesar de evitar conflitos no que tange à diferenciação entre musa e autora, as categorias propostas por Grace e Johnson são baseadas em critérios masculinos, ou seja, o nascimento e existência dos autores masculinos da Geração Beat. Uma categorização mais precisa se faz necessária, mas essa tarefa foge do escopo deste trabalho; utilizaremos, portanto, as categorias de Grace e Johnson pois, como mencionado acima, acreditamos na importância da biografia quando analisando as autoras.

Sendo assim, nos propusemos a discutir três autoras da categoria das mais jovens, segundo Grace e Johnson: Diane di Prima, Joyce Johnson e Brenda Frazer. Através do resgate dessas autoras e de suas obras, foi possível compreender melhor a exclusão destas por seus pares masculinos e como tal fato era refletido na literatura.

Joyce Johnson

Nascida em 1935, filha de um casal de judeus tímidos de classe média, Joyce Glassman foi criada com altas expectativas. Sua mãe esperava que Joyce se tornasse uma grande compositora de piano, mesmo que a filha não se sentisse tão atraída pelo instrumento:

De todo modo, o plano dela não é que eu seja uma mera pianista. Eu serei mais exaltada: uma grande compositora. Uma eminência que devo conquistar antes dos vinte um anos se possível, ou antes que eu jogue tudo fora em um casamento – um estado que ela [minha mãe] espera que eu evite pelo máximo de tempo possível. Talvez eu entre nesse estado mais tarde na vida, após escrever muitas operetas. (JOHNSON, 1999b, p. 15)

Apesar das grandes expectativas da família, a rebeldia agitou o coração de Joyce ainda cedo. Aos treze anos, começou a fazer viagens secretas para a Washington Square com Maria, uma amiga da escola (JOHNSON, 1999b, p. 24). Lá, a jovem conheceu o movimento contracultural de Nova York, até então chamados simplesmente de boêmios, e se enamorou pela cena: “Eu me apaixonei por todos. É como se um desejo que eu carregava dentro de mim tivesse se cristalizado de repente. Ser solitária numa sociedade de solidão.” (JOHNSON, 1999b, p. 27). Em seu capítulo no The Rolling Stone Book of the Beats, Joyce afirma que, em uma de suas idas à praça, as duas viram um homem batendo a cabeça de outro no meio fio. Após retornar para casa, a adolescente escreveu sobre o que viu como parte de um trabalho escolar, mas ao receber a nota, o professor havia lhe dado um C. “Escreva sobre o que sabe”, disse o professor, indicando sua descrença de que Joyce, vista como a filha modelo, havia se aventurado pela Washington Square aos treze anos de idade (JOHNSON, 1999a, p. 40).

Em 1951, também por insistência da mãe, Joyce ingressou em Barnard e, cansada da vida dupla que levava entre a filha perfeita e a boêmia que queria ser, desistiu da Washington Square como se deixasse para trás algo infantil (JOHNSON, 1999b, p. 47). Na faculdade, conheceu Elise Cowen e as duas se tornaram grandes amigas. Joyce nunca conquistou o diploma por ter faltado muitas aulas de Educação Física e, ao invés de repetir a única matéria na qual tinha reprovado, escolheu largar a faculdade, romper com a família e voltar a conviver entre os boêmios que antes havia deixado para trás. Em 1957, Ginsberg armou um encontro às cegas entre Joyce e Kerouac, e ambos namoraram por um curto tempo, mas o suficiente para que Joyce observasse o peso que a fama exerceu em Jack após o estouro de On The Road. De sua vida antes de Kerouac até o momento em que o casal se separa, nasceu o livro de memórias Minor Characters (1999b).

Sua obra Come and Join the Dance começou a ser escrita em 1955, mas só foi publicada em 1962. O livro conta a história de Susan Levitt, uma jovem universitária que matava as aulas de Educação Física e, por conta disso, não consegue se formar, desagradando a família. Durante o livro, Susan conta de sua amizade com Kay e seu relacionamento com Peter, amigo de Kay, e dos sonhos que nutria para si mesma, funcionando como uma quebra do silêncio das “garotas de preto do Kerouac” (JOHNSON, 2002, p. 997) e oferecendo aos leitores um olhar dentro da vida da mulher que, cansada de seguir as aventuras masculinas de seus pares, decide traçar sua própria rota – um caminho pouco usual para a sociedade estadunidense nos anos 1950, mesmo nos círculos boêmios.

De acordo com Ronna C. Johnson (2002, p. 997), Come and Join the Dance foi “o primeiro romance Beat escrito por e sobre uma mulher”. A obra segue o padrão de muitos romances Beat masculinos de serem livros de memórias, mas com os nomes trocados: os acontecimentos da vida de Susan espelham a vida de Joyce em diversos pontos. Um exemplo dessa semelhança pode ser visto quando Susan lembra-se de quando era mais nova e sonhava com o dia em que Nova York se tornaria sua casa, e não precisaria “pegar o trem de cinco da tarde para Long Island e voltar para a sala de jantar de seus pais a tempo para a janta” (JOHNSON, 2014, p. 11). O trecho espelha o que Joyce relatou em Minor Characters, sobre quando pegava o trem para Washington Square com sua amiga Maria e voltava para casa de seus pais no mesmo dia, a fim de não chateá-los (JOHNSON, 1999b, p. 24). Além de Susan, dois personagens que foram baseados em pessoas reais são Kay, que representa Elise Cowen, e Peter, que representa Donald Cook — chamado de Alex Greer em Minor Characters — professor de Barnard com quem Joyce teve um caso.

No entanto, o romance diverge em alguns aspectos da vida da autora. O mais notável ponto em que a ficção se separa da realidade é no fim de Come and Join the Dance: após fazer sexo com Peter, Susan pega suas malas e vai para Paris. Como apontado por Johnson (2002, p. 1076), a protagonista replica o modelo do homem Beat de fugir das consequências de suas ações pegando a estrada, “rejeitando estereótipos femininos e a hegemonia masculina através dos mesmos discursos que a masculinidade usa para se afirmar”. Em Minor Characters, Joyce expressa seus planos para a protagonista: 

Assim como eu, minha heroína teria um caso com o personagem de Alex e terminaria sozinha. Mas, no meu rearranjo ficcional da vida, era ela quem iria deixa-lo após sua única noite juntos. Eu a presenteei com uma viagem para Paris. Eu digitava quarenta letras por dia e sonhava em ir embora eu mesma. (JOHNSON, 1999b, p. 117)

Inicialmente, Susan corresponde às expectativas de uma garota Beat comum. Em uma conversa com Peter, ele afirma que Susan nunca falava muito em suas festas e que apenas ouvia os outros de forma obediente, ao que ela ri e responde: “Isso não é o suficiente?” (JOHNSON, 1999b, p. 18) Mas essa expectativa é subvertida quando Susan escolhe não se formar. Enquanto observa as colegas de classe que não haviam se formado ainda — mas que, segundo ela, certamente se formariam em breve — a narrativa muda de tom: “Elas também sempre se formariam; ficariam seguras. Eu não, ela pensou. Ela era quem não conseguia aplaudir, a estranha. Eu não. Finalmente a dor disso tudo estava viva dentro dela. Eu não. Eu não.” (JOHNSON, 1999b, p. 110) Ao compreender a magnitude do que estava fazendo ao rejeitar a educação formal que estava prestes a conquistar, Susan encontra uma encruzilhada. De acordo com Ronna C. Johnson (2002, p. 1172), a mulher Beat não tem o luxo de rejeitar instituições — como os homens faziam — pois as instituições lhes eram inalcançáveis; Susan, no entanto, teve a oportunidade de ingressar na educação formal e deixa-la para trás, desapontando seus pais no caminho, mas fundamentalmente seguindo seu próprio coração. O ato culmina com Susan ativamente escolhendo passar a noite com Peter, apesar de saber que Kay também era apaixonada por ele, e mesmo após a noite juntos Susan mais uma vez escolhe trilhar seu próprio caminho partindo para Paris.  

Vale a pena notar também a subversão do gênero da road tale efetuada por Joyce. Em certo momento da narrativa, Peter convida Susan para seu carro — um carro já estabelecido desde o início da narrativa como sendo muito antigo — e sai dirigindo sem rumo definido, como era frequentemente romantizado na literatura Beat, mas o carro de Peter logo quebra, num ato que Ronna C. Johnson (2002, p. 1045) aponta como “apropriação e sabotagem da road tale”. A perda do carro que significava tanto para Peter pode ser interpretada como uma perda também do poder simbólico que Peter carrega enquanto homem branco e cisgênero: de acordo com Rabelo (2016, p. 12), o automóvel está ligado a características normalmente atribuídas ao gênero masculino como “força, agilidade, juventude, sensualidade, virilidade”, entre outras. O processo de venda do carro por um valor tão baixo, cinco dólares, pode ser visto como humilhante para Peter — que insiste com o comprador para que aumente o valor (JOHNSON, 1999b, p. 171), sem sucesso — uma vez que o carro é um símbolo bastante representativo de sua masculinidade e teve um fim particularmente lúgubre.

O longo tempo entre o começo da escrita de Come and Join the Dance e sua publicação é explicado pela autora ao longo de Minor Characters: a autora precisava trabalhar para se manter e cuidava da casa ao mesmo tempo. Quando Kerouac passou a morar com ela, o trabalho tornou-se dobrado. Mesmo durante suas tentativas de escrever, Joyce nunca pôde largar o emprego e se dedicar apenas a isso, como muitos homens do seu círculo social faziam. Ao ousar sugerir que ela desistisse do emprego e da vida estável em seu apartamento para viajar com Jack, ele responde dizendo que, na verdade, o que ela realmente queria era um bebê: “Ele me parava dizendo que o que eu realmente queria eram bebês. (…) Mais do que ser uma grande autora, eu queria trazer uma vida ao mundo.” (JOHNSON, 1999b, p. 135). Apesar dos desencorajamentos de Jack e da vida corrida trabalhando, Joyce “digitava quarenta letras por dia” (JOHNSON, 1999b, p. 117) e sonhava em viajar sozinha para Paris, assim como sua personagem Susan. Come and Join the Dance é frequentemente desconsiderado das análises críticas pois, de forma geral, livros de memórias escritos pelas mulheres Beat são mais conceituados do que os romances (JOHNSON, 2002, p. 997). Apesar disso, Come and Join the Dance foi republicado em 2014 pela Open Road Integrated Media, expandindo o acesso ao livro e, consequentemente, aos escritos femininos da Geração Beat.

Brenda Frazer

Durante sua juventude, a vida de Brenda Frazer era a típica vida de classe média. Fruto de um casamento infeliz, Brenda sentia que não se encaixava em lugar algum até conhecer o poeta beat Ray Bremser, que a introduziu às drogas psicodélicas e à vida boêmia. Os dois se casaram, contra a vontade dos pais de ambos, pouco depois de Brenda terminar o ensino médio, e a jovem mudou seu nome para Bonnie Bremser, marcando uma de suas várias transformações ao longo da vida (KNIGHT, 1996, p. 269). Seis meses depois da cerimônia, Ray foi preso por posse de narcóticos. O casal teve uma filha, Rachel, que nasceu enquanto Ray estava sendo processado, e o trio fugiu para o México em 1961 em uma tentativa de escapar da polícia.

A escrita de Troia: Mexican Memoirs foi um alento para Brenda. Em 1961, já de volta a Nova York, Ray foi preso por roubo, e Brenda escreveu uma série de cartas para o marido, como forma de aplacar a solidão (CHARTERS, 2007, p. II). Ray juntou todas as cartas, de modo que formassem uma narrativa, e assim nasceu Troia. A primeira publicação ocorreu em 1969, mas uma segunda publicação foi feita em 1971 sob o título For Love of Ray, ressaltando o amor que Brenda nutria por seu então marido. No entanto, o relacionamento já estava apresentando sinais de desgaste e acabou em um divórcio finalizado em 1976. Desde então, Brenda raramente voltou a escrever poesia; no entanto, mudou sua vida completamente ao passar uma temporada na fazenda de Ginsberg e descobrir seu amor pela agricultura. Frazer completou vários mestrados sobre estudos do solo, transformou a fazenda de Ginsberg em uma fazenda autossustentável ao criar um método de produção de metano a partir de compostagem e passou a trabalhar no Departamento de Agricultura dos Estados Unidos. Mesmo longe da literatura, Brenda Frazer se afirmou como independente de seu marido e construiu uma vida para si, buscando seus próprios interesses e habilidades.

Troia é uma das obras femininas que mais se assemelha à literatura Beat masculina. Brenda era fã de Kerouac, e tentou emular sua escrita na própria obra, por vezes alcançando o espontaneísmo beat que era tão pregado pelo autor. Mas as semelhanças não são apenas estilísticas: Brenda Frazer experienciou uma road tale durante o período que passou fugindo da polícia junto a seu marido e sua filha recém nascida. A fuga da vida usual e as mudanças frequentes de moradia a fim de evitar que o FBI os localizasse são características que aproximam Troia do cânone Beat. Ademais, independentemente de seu marido, Brenda foi capaz de construir amizades no México, criando uma rede de apoio que lhe foi de extrema importância enquanto tentava balancear seus dias de prostituição e os cuidados com a filha. Como pontuado por Gazola (2017, p. 162):

Bonnie cria um círculo de amizades no decorrer de sua jornada. Essas pessoas são clientes, prostitutas e vizinhos. Quando ela precisa de dinheiro, visita os clientes que não negam atenção a ela quando precisa de novos clientes, conversa com outras prostitutas e quando precisa que alguém cuide de Rachel para ela conseguir dinheiro, os vizinhos estão sempre dispostos.

Essa rede remete à característica mais importante da Geração Beat segundo Claudio Willer: a amizade (WILLER, 2010, p. 17). Ainda que a amizade Beat padrão seja, essencialmente, uma boy gang, Frazer contou com a ajuda de J, que constantemente abrigou Rachel em sua casa quando Brenda precisava passar o dia fora a fim de se prostituir, ou M, uma amiga que a ajudou a fugir do México (BREMSER, 2007, p. 94).  Essas amizades femininas — e também as masculinas — que acompanharam Brenda durante o livro, com mais ou menos participação, foram essenciais para que ela pudesse se manter sã mesmo em momentos extremamente conturbados. 

Por isso, Troia não deve ser considerada uma simples imitação da escrita Beat masculina; os temas abordados ao longo da narrativa denunciam diversos aspectos da vivência da mulher que encontrava seu lugar na contracultura através do parceiro, e ressalta como a aventura na estrada é diferente para uma mulher — especialmente para uma mulher com filhos. No início do livro, Brenda lamenta não ser capaz de consolar o choro de Rachel no ônibus em direção ao México, e demonstra apreensão frente à ideia de não ser capaz de satisfazer Ray (BREMSER, 2007, p. 9). Ao longo da narrativa, ela sempre procura manter Rachel o mais confortável possível, a fim de não incomodar as pessoas à sua volta, mas é uma tarefa difícil considerando que ela precisava ficar fora durante dias a fio por conta de seu trabalho na prostituição, então Rachel passava muito tempo na casa de vizinhos. Essa culpa foi se acumulando, até culminar na difícil decisão de “entregar a filha Rachel para adoção por achar que não estava sendo uma boa mãe” (GAZOLA, 2017, p. 39).  Por mais que possa parecer uma atitude egoísta por parte de Brenda, o ato de abandonar os filhos em favor de uma vida na estrada é constante por parte dos homens: Jack Kerouac, por exemplo, passou anos negando a paternidade da filha Jan e, quando a reconheceu, o fez a contragosto (MILES, 2012, p. 365). Ademais, diferente de Kerouac, que rejeitou Jan durante toda sua vida pelo medo e pela repulsa que tinha à vida doméstica, Brenda Frazer abriu mão da filha porque a amava, e não queria que suas falhas enquanto mãe fizessem a criança sofrer. Logo após se despedir de Rachel, a autora conta: “Acho que me embebedei naquela noite, eu estava bêbada frequentemente,” (BREMSER, 2007, p. 121) compartilhando com o leitor o quão difícil foi o processo de deixar sua filha para trás. Brenda percebe que a companhia da bebê passa a fazer falta em sua vida, especialmente quando ela e Ray começam a se afastar física e emocionalmente.

A solidão de Brenda, fruto do desinteresse de Ray e da ausência da filha, é sanada pela própria através de seu trabalho: Brenda começa a sentir prazer ao se prostituir para certos clientes, e começa a querer passar tempo com alguns deles. A autonomia sobre sua própria sexualidade é outra importante faceta explorada por Frazer, e que aparece em alguns pontos de sua narrativa. Em certo momento da história, Ray vai preso por imigrar ilegalmente e Brenda se dirige até a Cidade do México para trabalhar e tentar tirar Ray da cadeia; enquanto o marido está preso, Brenda fica livre para escolher os próprios clientes e “assume o controle do próprio corpo” (GAZOLA, 2017, p. 161). Tanto esse momento como as vezes em que Brenda sente prazer durante o trabalho após se forçar a abrir mão da filha são indicativos de como ela foi capaz de conquistar certo nível de autonomia sexual apesar das dificuldades. Paralelamente, nas vezes em que Ray decide retomar o controle das atividades da esposa, Frazer demonstra desconforto e frustração frente à atitude do marido, como pode ser visto no seguinte trecho:

Às vezes Ray me dizia depois de me deixar sozinha em um restaurante, horas depois ele diria que me deixou lá porque alguém estava flertando comigo, e por que eu não fiquei com aquele cara ali que estava flertando comigo? Enfim Ray começa a me censurar por não aproveitar as possibilidades, e quando eu voltava sem dinheiro após andar pelas ruas ambos chegamos à nova ideia de que era, ativamente, culpa minha. (BREMSER, 2007, p. 182)

Conclui-se, portanto, que a presença de Ray era tão incômoda quanto sua ausência. Esse conflito culmina na partida de Ray, que volta para os Estados Unidos após ouvir que seu nome estava limpo e que seu retorno era seguro. Brenda se vê sozinha em um país que não é seu, “sem bebês para adorar, sem um amor constante para me defender, sem estradas e montanhas para subir com meus olhos livres, sem nada além de meu próprio coração” (BREMSER, 2007, p. 187). 

Sentindo-se abandonada, Brenda entra em crise por conta de sua situação precária e intensa solidão: “O que é toda essa falta de amor? Nós que começamos com tanto amor; ele pode se esgotar tal qual a saúde? Ou o desejo?” (BREMSER, 2007, p. 196). Ela decide voltar para Nova York com o seu então amante Pedrito, mas, chegando lá, percebe que não o ama e escolhe deixá-lo, com o intuito de planejar uma viagem para a Itália. Esse sonho de uma viagem para o exterior espelha o que ocorreu com Joyce Johnson, que planejava uma viagem para Paris que não aconteceu. A viagem sozinha, tão desejada por ambas as autoras, representa uma liberdade que não era comum às mulheres — apesar de bastante comum aos homens. O fato de que tanto Brenda quanto Joyce desistiram desse sonho para permanecerem com seus respectivos parceiros demonstra a persistência de certos valores conservadores mesmo em um meio contracultural, em que as mulheres ainda eram marginalizadas.

Diane di Prima

Diane di Prima nasceu no Brooklyn em 1934. A autora estudou física na faculdade durante dois anos antes de se mudar para o Lower East Side, região de Manhattan que anos mais tarde se tornaria o principal ponto de encontro dos Beats, e, uma vez lá, passou a manter seu lar sempre aberto para os boêmios com quem convivia, mesmo que mudasse de endereço frequentemente por conta de sua vida financeira imprevisível. O hábito de abrir seu apartamento para o círculo social dos novos boêmios e, posteriormente, para os Beats, era comum principalmente entre as mulheres. Um dos pads mais célebres foi o de Joan Vollmer, companheira de William Burroughs. De acordo com Brenda Knight, o apartamento de Joan em Nova York foi “um núcleo que atraiu muitos dos personagens” que foram extremamente importantes na Geração Beat (KNIGHT, 1996, p. 49). A cultura dos pads das mulheres Beat, apesar de reforçar padrões de gênero da mulher dona de casa, foi essencial para que essas mesmas mulheres, de certo modo, exercessem sua liberdade: morando longe dos pais, figuras como Joan e Diane – que também teve apartamentos bastante célebres enquanto núcleos Beat – foram capazes de viver a vida como bem entendessem e serem introduzidas na vida boêmia. Algumas das atividades ocorridas nos diversos apartamentos de Diane foram recontadas em seu livro Memoirs of a Beatnik, obra que será discutida a seguir.

A primeira publicação de Memoirs of a Beatnik ocorreu em 1969, através da editora Olympia, e foi parte de uma série de livros eróticos junto com as primeiras edições americanas de Lolita, de Nabokov, e Candy, de Southern e Hoffenberg (GRACE; JOHNSON, 2002, p. 804). Nas notas finais da edição publicada pela Penguin em 1998, di Prima conta que, toda vez que mandava partes do manuscrito do livro, recebia as páginas de volta com a frase “mais sexo” escrita à mão por Maurice Girodias, dono da editora (DI PRIMA, 1998, p. 191). Memoirs foi, portanto, projetado desde o início para ser um livro autobiográfico com forte teor erótico. 

As condições nas quais a obra foi escrita certamente são um indício de como a literatura feminina era vista naquela época. Pertille (2014, p. 13) aponta que Diane “foi usada como produto” pela editora para “escrever textos que obrigatoriamente fossem comerciais”. De fato, Memoirs é bastante diferente do resto da extensa bibliografia de Diane. Ainda que esta não tivesse o costume de censurar a própria sexualidade, Memoirs é o livro em que tal faceta é mais explorada, mas não por desejo da autora, e sim do editor. Anthony Libby afirma que, em seu esforço de introduzir cada vez mais cenas de sexo, Diane escreveu uma passagem supostamente fictícia onde conta que foi abusada pelo pai de sua amiga, e que acaba até mesmo gostando do ato (LIBBY, 2002, p. 709).

O apelo sexual de Memoirs foi, assim, de cunho comercial, e Diane conseguiu exatamente o que queria: um modo de se manter financeiramente em um momento de necessidade. O livro foi o traduzido para o alemão, o francês, o italiano, o espanhol e o português; das quatro obras analisadas ao longo deste trabalho, apenas Memoirs of a Beatnik chegou ao Brasil, sendo o único livro de literatura da Geração Beat escrito por uma mulher a conquistar esse feito. No entanto, a eroticidade do livro transcende os fins financeiros, representando também um modo de resistência feminina por parte de Diane. Como afirmado por Pertille (2014, p. 23), 

Diane mostra por diversas vezes que sua vida era diferente das mulheres que seguiam a maré da nova sociedade americana, ela, diferente das mulheres conservadoras, não vivia para cuidar de marido e de filhos em um lar tradicional completamente patriarcal e hierarquizado.

 Um exemplo em que podemos identificar meios de resistência por parte da autora é no capítulo 12, intitulado “The Pad: Two”. Nele, Diane conta sobre sua vida em um de seus múltiplos apartamentos, morando com amigos no frio do inverno estadunidense. Sem dinheiro o suficiente para manter o lugar aquecido por muito tempo, o grupo estabelece que, enquanto os outros dormiam juntos no sofá, uma pessoa deveria ficar acordada para manter o fogo da lareira aceso com os pedaços de madeira que conseguiam de graça. Em certo momento da narrativa, Diane faz um relato do que ela acredita que os leitores gostariam de ler, intitulado “Uma noite junto à lareira: o que você gostaria de ouvir”; nele, descreve detalhadamente uma cena de sexo entre todos os moradores da casa. Logo em seguida, ela conta outra versão, desta vez intitulada “Uma noite junto à lareira: o que aconteceu de verdade”, onde nada sexual acontece e ao invés disso a autora revela as dificuldades de dormir em grupo, como o mau humor dos colegas ou o frio intenso que lhe incomoda. Desse modo, Diane consegue ao mesmo tempo transmitir o que ela desejava e também o que seus leitores desejavam ler.

O trecho acima é um dos modos como a autora consegue alcançar um posicionamento de resistência através da escrita sobre sexo, pois deixa claro que a realidade do que ocorreu não condiz com o que lhe é esperado enquanto autora de um livro com aspectos eróticos. No entanto, acreditamos que nem sempre escrever sobre sexo é uma forma de resistência em Memoirs of a Beatnik. Visto que o editor demandava mais sexo, esse ato se torna uma obrigação e não uma forma de libertar-se de imposições de gênero. Ademais, as cenas que romantizam abuso sexual são um empecilho para a visão da Diane di Prima como figura transgressora.

Se a escrita erótica não pode ser considerada de todo um modo de resistência na obra, o ato de publicá-la por outro lado merece ser ressaltado. Antes da publicação de Memoirs, di Prima publicou seis outros livros; seu primeiro, um livro de poemas, foi This Kind of Bird Flies Backwards. Dinners and Nightmares, seu primeiro volume em prosa, foi lançado três anos depois (KNIGHT, 1996, p. 125). De acordo com Keeling (2011, p. 65),

Para a poesia de uma mulher da Geração Beat ser levada a sério (e até para ela mesma levar sua poesia a sério) é preciso uma combinação de diversos fatores – sorte, talento, conhecer as pessoas certas, e confiança em sua própria habilidade de escrever boa poesia, para citar alguns. Enquanto Kyger e di Prima conseguiram construir identidades como as garotas exceção no clube dos garotos Beats, a maioria das mulheres na comunidade Beat não teve essa sorte.

A publicação na Geração Beat era feita principalmente por editoras pequenas, muitas vezes encabeçadas pelos próprios Beats. Ao não serem levadas a sério pelos colegas homens, autoras como Hettie Jones — que também fazia parte do círculo social de Diane — só publicaram seus livros décadas depois do estouro da Geração Beat, quando a literatura feminina começou a ser mais lida, discutida e estudada. Podemos perceber, portanto, que a publicação nos Estados Unidos em 1950 era um privilégio masculino. Até hoje, as obras Beats masculinas são reeditas e republicadas ano após ano, enquanto muitas obras femininas receberam apenas uma edição nos Estados Unidos e jamais chegaram a ser traduzidas no Brasil, salvo Memórias de uma Beatnik. 

O motivo pelo qual Diane conquistou esse espaço antes de suas colegas não é tão claro. Talvez sua permanência nas cenas de contracultura através das décadas seja um fator que tenha auxiliado nisso: após o fim da Geração Beat, di Prima integrou o movimento hippie e participou de manifestações políticas, enquanto Brenda e Joyce tomaram outros caminhos e, aos poucos, se distanciaram de movimentos contraculturais. Possivelmente, a dedicação de Diane à escrita, que veio desde seus sete anos de idade (KNIGHT, 1996, p. 123), podessa ter contribuído, visto que muitas de suas colegas começaram a escrever bem mais tarde. Ou ainda, talvez seu sucesso seja fruto de sua personalidade: enquanto algumas mulheres procuravam esconder seus textos, por medo de não serem apreciadas pelos homens, di Prima sempre buscou compartilhar seus textos com aqueles de seu círculo social. Seja qual for o motivo, Diane foi capaz de jogar o jogo dos homens Beat através de sua postura cool e, ao mesmo tempo, utilizar isso a seu favor, ganhando simpatia dos homens que puderam alavancar sua carreira literária.

Diferente do que se espera de um ambiente de contracultura, os espaços beat também apresentavam a desigualdade de gênero comum ao resto da sociedade estadunidense da década de 1950. Se os homens beat sonhavam em viajar pelos Estados Unidos e pelo mundo, sobrevivendo de trabalhos informais e documentando suas experiências, era porque havia sempre alguém, normalmente uma mulher, deixada para trás para tomar conta da casa enquanto eles estavam fora. Essa mulher podia ser uma namorada, uma esposa ou até mesmo uma mãe, mas a presença feminina é uma constante na vida dos homens beat, sendo substituídas recorrentemente por outras garotas que apareciam durante suas viagens, dispostas a tomarem para si o papel de beat chick silenciosa. As que ficavam para trás eram consideradas um empecilho para a verdadeira aventura masculina (EHRENREICH, 1983, p. 54), as que apareciam durante as viagens eram garotas jovens e manipuláveis que se tornavam suas amantes por curtos períodos de tempo, mas a ambas as categorias era comum uma característica: sua capacidade de serem facilmente substituídas. “As pessoas não têm o direito de existir se elas são substituíveis” (JOHNSON, 2014, p. 7), disse Joyce através de sua personagem Susan, e essa colocação demonstra o que muitas mulheres associadas aos Beats sofreram com o contínuo descaso de seus companheiros: o apagamento de suas vozes e personalidades.

No entanto, algumas foram capazes de quebrar esse ciclo de abuso através da escrita. As autoras analisadas neste artigo conseguiram desafiar a estrutura misógina dentro do círculo social, enfrentando a própria definição do que era ser Beat. O ato de aceitarem certas concessões e rejeitarem outras levou essas mulheres a conquistarem uma voz que, caso tivessem aceitado a conformidade feminina generalizada que Friedan (1971) chama de “problema sem nome”, não lhes seria oferecida. Ainda que não tenham formado um movimento organizado, como foi feito na década seguinte durante a segunda onda feminista, a vivência das mulheres Beat possibilitou que a segunda onda feminista se consolidasse a partir dos anos 60 e, consequentemente, essas mesmas vivências puderam então ser lidas e estudadas.

A consideração da existência feminina na Geração Beat não se limita apenas às autoras aqui citadas; para cada Diane di Prima que conquistou o sucesso, existem tantas outras que foram silenciadas e não tiveram a chance de serem publicadas ou de sequer sonharem em produzir qualquer tipo de arte. A história da mulher beat também deve ser analisada através do silêncio, uma vez que “escrever essa história é fazer passagem do silêncio à palavra” (CREMONESE, 2018, p. 81). Também não consideramos apenas traçar comparações entre as obras escritas por homens e as obras escritas por mulheres o bastante para explorar a Geração Beat feminina, uma vez que julgamos que as vozes dessas autoras sejam suficientes independentes de seus pares masculinos. 

Mantendo essa questão em mente, a análise das obras das mulheres Beat deve partir do chamado “território selvagem”. O conceito de território selvagem foi criado pelos antropólogos Edwin e Shirley Ardener, e parte do princípio de que a sociedade se divide entre o dominante e o dominado. A natureza do dominante se sobrepõe à natureza do dominado, mas existe parte da natureza do dominado que não é apagada pelo dominante, e essa parte é o que os Ardener chamam de território selvagem (SHOWALTER, 1994, p. 48). No caso das questões de gênero, o dominante é representado pelo gênero masculino cissexual e o dominado é o gênero feminino cissexual. Pensando no território selvagem na literatura, Showalter propõe que, por ser um conceito abstrato, “a escrita das mulheres é um ‘discurso de duas vozes’” (SHOWALTER, 1994, p. 50), ou seja, não está apenas dentro ou fora do território dominante — que, no caso, seria a literatura masculina. 

A nosso ver, a literatura Beat tenta se instalar no território selvagem através da quebra de paradigmas políticos, mas falha quando se dirige às mulheres, como argumentado acima, e não se interessa em se inserir nesse território do feminino onde, segundo Showalter, se encontram os textos das mulheres. Desse modo, o território selvagem aparece nas obras analisadas acima e em tantas outras através de dois fatores: experiências recorrentes como abortos, abusos sexuais, abandonos, maternidade, entre outras; e pontos de fissura encontrados ou criados pelas autoras que forçavam a presença feminina no ambiente masculino Beat.

O espaço oferecido às mulheres pelo movimento Beat muitas vezes não comportava suas personalidades e desejos. Através de suas obras literárias, mulheres como Johnson, di Prima e Frazer foram capazes de se inserir em um meio altamente masculino e contarem suas próprias histórias. Ainda que os livros não sejam tão acessíveis quanto os livros Beat escritos por homens — muitos deles tendo recebido apenas uma ou duas edições, e hoje encontrados apenas em sebos fora do Brasil —, a contribuição literária das autoras permitiu que elas contassem suas histórias a partir de suas próprias vozes, sem dependerem de seus pares masculinos. São textos imprescindíveis para compreender o papel da mulher estadunidense na década de 1950, tanto daquela que escolhia se submeter às expectativas dos papeis de gênero quanto daquela que, na tentativa de rejeitar o ideal feminino imposto pela sociedade, acabavam submergidas em uma contracultura que as colocava em moldes excessivamente similares aos moldes conformistas. Ademais, suas existências e resistências não só possibilitaram a onda feminista que se seguiu nos anos 60, mas também formaram uma revolução que provou que para ser rebelde não era necessário ser um homem branco com uma família abastada.

Referências

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