Nineteen Eighty-Four (1949) e Brazil (1985): uma análise comparativista de narrativas distópicas

Ricardo Barros Oliveira

RESUMO: A narrativa distópica tem sido amplamente difundida desde o século XX por meio de obras literárias e cinematográficas como o romance Nineteen Eighty-Four (1949), de George Orwell, e o filme Brazil (1985), de Terry Gilliam. À primeira vista, percebem-se nessas obras semelhanças e diferenças relacionadas à representação dos elementos característicos do gênero literário distópico, o que nos sugere a existência de uma relação entre esses textos. Assim, o presente trabalho tem como objetivo identificar os elementos da literatura distópica presentes em Nineteen Eighty-Four e Brazil e analisar de que forma esses textos dialogam entre si. Inicialmente, tecemos breves considerações a respeito da Literatura Comparada, com supedâneo nas lições de Tânia Carvalhal (2006), e nos dedicamos a conceituar utopia, antiutopia e distopia, com base nos ensinamentos de Gregory Claeys e Lyman Sargent1999), Fátima Vieira (2010) e Peter Fitting (2010), a fim de compreender e diferenciar tais gêneros. Em seguida, nos debruçamos sobre as obras objetos da pesquisa e identificamos as características recorrentes do gênero literário distópico, além de discorrer sobre a maneira como os textos dialogam. Por meio da análise comparativista, observou-se no filme Brazil a repetição de elementos inerentes à narrativa distópica que estão inseridos no clássico Nineteen Eighty-Four, de forma a trazer uma nova visão que permite reinventar o texto antecessor.

 PALAVRAS-CHAVE: Distopia; Literatura Comparada; Nineteen Eighty-Four; Brazil.

ABSTRACT: The dystopian narrative has been widely spread since the 20th century by means of literary and cinematographic works such as the novel Nineteen Eighty-Four (1949) by George Orwell and the film Brazil (1985) by Terry Gilliam. At first sight, one can notice in both works similarities and differences connected to the representation of characteristic elements of the literary genre dystopia, which suggests the existence of a relationship between both texts. This way, this article aims to identify elements from dystopian literature found in Nineteen Eighty-Four and Brazil as well as analysing in which way these texts establish a dialogue with each other. Firstly, we consider comments on comparative literature, with special attention to Tania Carvalhal (2006), and we also conceptualise utopia, antiutopia and dystopia with emphases on readings by Gregory Clayes and Lyman Sargent (1999), Fátima Vieira (2010) and Petter Fitting (2010), with an eye to understanding and differentiating these genres. Secondly, we approach the above-mentioned works and identify the recurrent characteristics of the dystopic genre, in addition to signaling how both texts establish a dialogue. By means of a comparative analysis, it is possible to observe the repetition of elements of dystopic narratives in Brazil, which are also inserted in the canonic Nineteen Eighty-Four, thus highlighting a new perspective that allows for the reinvention of the previous text.

KEYWORDS: Dystopia; Comparative Literature; Nineteen Eighty-Four; Brazil.

Considerações iniciais

A narrativa distópica tem ganhado bastante destaque nos últimos anos em decorrência do cenário político atual. Essa não é uma tendência inédita, tendo em vista que, desde o início do século XX, a distopia já tinha uma presença marcante na literatura. No entanto, a relação de similaridade conceitual desse gênero com a utopia e a antiutopia pode acarretar confusão quanto a sua identificação na abrangência desses tipos de representações literárias, o que demanda uma análise mais aprofundada das obras literárias distópicas a fim de reconhecer seus elementos inerentes.

Além disso, outras formas de expressão artística, como, por exemplo, o cinema, também têm contribuído para a difusão do que convencionou-se chamar de gênero distópico, com obras originais e adaptações de textos famosos. Neste artigo, direcionamos nossa atenção ao clássico da literatura de George Orwell, Nineteen Eighty-Four (1949), e ao filme britânico Brazil (1985), de Terry Gilliam, ambos exemplares de narrativas distópicas. Com isso, propomos uma análise das obras por meio das lentes da Literatura Comparada com a finalidade de responder as seguintes questões: Quais os elementos da literatura distópica são observados no livro Nineteen Eighty-Four (1949) e no filme Brazil (1985) e de que forma essas obras dialogam?

Iniciamos a pesquisa fazendo uma breve incursão em determinadas teorizações da Literatura Comparada que servirão de suporte para a análise comparativista proposta, nos valendo, principalmente, das lições de Tânia Carvalhal (2006). Buscamos, ainda, as definições de utopia, antiutopia e distopia, com base nos apontamentos de Gregory Claeys e Lyman Sargent1999), Fátima Vieira (2010) e Peter Fitting (2010), a fim de distinguir e compreender tais gêneros. Em seguida, nos debruçamos sobre as obras e identificamos nos textos as características elementares do gênero literário distópico, além de discorrer sobre a maneira como os textos se relacionam.

Com esse estudo, almejamos refletir sobre a forma como os elementos das narrativas distópicas são apresentados ao público nas respectivas obras e como essas características recorrentes sinalizam a relação entre ambos os textos. Esperamos, também, que a presente pesquisa contribua para fomentar o interesse do leitor em consumir textos distópicos, aguçando a sua visão para assimilar e refletir sobre os possíveis sentidos que podem ser depreendidos dessas obras.

Literatura Comparada e os conceitos de Utopia, Antiutopia e Distopia

De acordo com Tânia Carvalhal (2006), a literatura comparada tem sido compreendida de diversas formas no decorrer de sua história pelos estudiosos que a discutem. Se no passado a literatura comparada fora definida como uma construção historiográfica de fontes e influências, essa compreensão está fora de uso, especialmente considerando as revoluções nos estudos literários vividas após o famoso ensaio de René Wellek (2011) que destacou a crise da literatura comparada. Como Carvalhal (2006, p. 74) afirma, “a literatura comparada é uma forma específica de interrogar os textos literários na sua interação com outros textos, literários ou não, e outras formas de expressão cultural e artística.”

No tocante à comparação de textos literários e outras expressões artísticas, os comparativistas mais tradicionais não incluem esse tipo de relação no âmbito de atuação da Literatura Comparada. Eles consideram isso como parte da história da cultura ou mesmo excursões que ignoram a importância do campo da literatura comparada em si. No entanto, os comparativistas estadunidenses já reconheciam após 1950 que a relação entre a literatura e outros tipos de expressões artísticas podem ser parte do seu objeto de estudo (CARVALHAL, 2006, p. 46-47).

Encontrar a relação entre textos dispostos em diferentes semioses por meio da comparação não é algo impossível, principalmente se considerarmos que todos os textos estão interconectados por aquilo que Julia Kristeva nomeou de intertextualidade. Esse conceito é baseado na noção de que todos os textos são resultados da “absorção e transformação” de outro texto (KRISTEVA, 1969 apud CARVALHAL, 2006, p.47).

O crítico Jonathan Culler (2011) também ressalta a importância da intertextualidade como uma característica dos materiais literários quando sublinha que uma obra existe entre (between) e no meio de (among) outros textos. Isto é, ler um texto é compreender que o evento linguístico possui relações com outros discursos, aqui tratados também como outros campos do saber. Assim, podemos comparar textos que têm temas ou foram produzidos em contextos similares a fim de examinar qual procedimento foi utilizado na construção do texto derradeiro.

Gênero extremamente popular na contemporaneidade, a distopia suscita indagações não apenas sobre suas relações com outros textos literários, mas também sobre as questões sociais que nos rodeiam. Pensando à luz das discussões intertextuais, as narrativas distópicas, por exemplo, são frequentemente revisitadas por outros autores, o que resulta em uma renovação desse gênero a partir das novas obras. Considerando a temática que envolvem as obras objeto deste estudo, propomos definir e trabalhar os conceitos de utopia, antiutopia e distopia.

O termo Utopia, derivado da junção das expressões gregas ou (não) e topos (lugar), foi usado pela primeira vez por Thomas More ao dar nome à república imaginária palco de sua obra de 1516 também intitulada Utopia. Esse neologismo foi criado como um trocadilho, referenciando a palavra eutopia, a qual significa um “lugar (onde tudo está) bem”[1] (CUDDON, 1999, p. 957).

Valendo-se de uma visão etimológica, Fátima Vieira (2010), descreve a utopia como um lugar que é um “não-lugar” (non-place, no original). Ademais, segundo a mesma autora, esse termo também é utilizado para designar um tipo específico de narrativa, que veio a ser conhecida como literatura utópica. Apesar de se tratar de um neologismo criado por More, na atualidade, o termo se refere a textos escritos antes mesmo do surgimento desse conceito, além de inaugurar uma nova forma de expressão fantástica na qual são apresentadas soluções alternativas para a realidade.

Assim, podemos definir utopia, seguindo a lição de Gregory Claeys e Lyman Sargent (1999), como uma sociedade inexistente descrita em detalhe e que existe em um tempo e espaço, enquanto a utopia como gênero literário se refere às obras que descrevem essa sociedade imaginária. Ao refletir sobre as características da utopia, Vieira (2010) explica que os utopistas (autores de obras utópicas) observam a sociedade na qual vivem, tomam nota dos aspectos que precisam ser alterados nela e imaginam um lugar onde esses problemas foram resolvidos.

Vale ressaltar, no entanto, que essas ideias de utopia e utopianismo, retratando sonhos de um mundo melhor, uma existência ideal ou um futuro fantástico, são vistos primariamente como uma construção ocidental, tendo em vista que surgem a partir de exemplos oriundos da literatura do Ocidente, sendo que esse conceito não é amplo o suficiente para abranger todas as formas de sonhar uma sociedade ideal (DUTTON, 2010, p. 223-224).

Peter Fitting (2010), em seu escrito “Utopia, Dystopia and Science Fiction, relata que até a primeira metade do século XX, a manifestação utópica positiva era prevalecente na literatura. Contudo, com as insurgências sociais e reações negativas ao avanço do socialismo na época, outras formas mais sombrias de utopia passaram a dominar o cenário literário, como é o caso das antiutopias e das distopias.

A antiutopia, na compreensão de Claeys e Sargent (1999), consiste em uma utopia criada pelo autor para ser interpretada como uma crítica ao utopianismo ou a uma utopia em particular. Na concepção de Vieira (2010), enquanto a utopia trata da esperança, a antiutopia é baseada na total descrença, tendo como objetivo denunciar a irrelevância e a inconsistência do sonho utópico, bem como a consequente ruína da sociedade acarretada por esse tipo de pensamento.

Ainda de acordo com Vieira (2010), a antiutopia surgiu do ceticismo dos intelectuais do século XVIII, compartilhando com a utopia seus artifícios narrativos, porém, apontando em uma direção completamente oposta. Antes disso, Nicole Pohl (2010) esclarece que a tradição da antiutopia foi iniciada por Joseph Hall em sua obra Mundus Alter et Idem (1605), tendo sido aperfeiçoada posteriormente por Jonathan Swift em As Viagens de Gulliver (1726). Resumidamente, podemos definir a antiutopia como um gênero que desconstrói a utopia, expondo suas falhas e demonstrando a sua inaplicabilidade no mundo real.

No tocante à distopia, enquanto Vieira (2010) a descreve como descendente da antiutopia, Claeys (2010) aponta que esse termo, em seu uso, frequentemente se confunde com a própria antiutopia ou com uma “utopia negativa”, como forma de oposição à utopia ou “eutopia”. Na definição de Claeys e Sargent (1999), a distopia é caracterizada como uma utopia apresentada ao leitor na forma de uma realidade consideravelmente pior do que a sociedade em que ele vive. O primeiro registro que se tem do uso desse termo, um discurso proferido por John Stuart Mill em 1868, revela que a intenção era nomear uma perspectiva oposta à utopia (VIEIRA, 2010, p. 16).

A distopia ganhou terreno no século XX, sendo esse considerado, de acordo com Claeys e Sargent (1999, p. 312), como o século distópico, em razão da publicação de grandes obras desse gênero como We (1924), de Yevgeny Zamiatin, Brave New World (1932), de Aldous Huxley, e Nineteen Eighty-Four (1949), de George Orwell.

Assim, o termo distopia é usado para designar a representação de uma sociedade na qual o mal, ou movimentos sociais e políticos de cunho negativo, prevalecem (CLAEYS, 2010, p. 107). Patrick Parrinder (2010) nos esclarece que uma típica narrativa distópica dramatiza as dificuldades e perigos enfrentados por um indivíduo, que pode ser um visitante do local ou um cidadão dissidente.

A lição de Vieira (2010) nos ensina que, apesar das obras distópicas apresentarem imagens desesperadoras, o seu real objetivo é de cunho didático e moralístico. A forma como o futuro é representado nesse gênero literário é essencial para o efeito que os autores pretendem causar em seus leitores. Nesse sentido, a autora preleciona:

Muito embora os autores de distopias apresentem imagens muito negativas do futuro, eles esperam uma reação muito positiva por parte de seus leitores: por um lado, os leitores são levados a perceber que todo ser humano tem (e sempre terá) falhas e, portanto, o aprimoramento social – ao invés do aprimoramento individual – é a única forma de garantir a felicidade social e política; por outro lado, os leitores devem compreender que o futuro retratado não é uma realidade, mas apenas uma possibilidade que devem aprender a evitar.” (VIEIRA, 2010, p. 17, nossa tradução)[2].

A partir da reflexão da autora, podemos atribuir a ascensão do gênero literário distópico em desfavor da utopia à percepção do homem em relação a sua própria natureza, especialmente após os terríveis resultados das duas grandes guerras mundiais. Vieira (2010) acrescenta, ainda, que nesse contexto histórico os ideais utópicos pareciam absurdos, o que abriu caminho para a narrativa distópica.

Ao fazer uma diferenciação entre o texto distópico e a narrativa utópica, Kenneth M. Roemer (2010) afirma que se o autor e/ou o leitor reconhece a cultura imaginária como sendo significantemente melhor que a sua própria realidade, então a obra se trata de uma utopia. Porém, se a sociedade imaginada for vista como significantemente pior, ela é considerada uma distopia. De forma semelhante, Claeys (2010) pondera que a definição de um texto como uma utopia ou uma distopia dependerá da perspectiva que o espectador tem do resultado da narrativa.

Claeys (2010) ainda cita os trabalhos de Karl Popper, Jacob Talmon e outros os quais sugerem, inspirados pelo surgimento dos movimentos totalitaristas, que o próprio impulso utópico era inerentemente distópico. Essa alegação se baseia no fato de que o desejo de criar uma sociedade melhorada, na qual o comportamento humano é tido como superior, implica no uso de métodos punitivos de controle e na instalação de um estado de polícia.

Podemos inferir uma similaridade, até certo ponto, entre utopia e distopia na obra de Vieira (2010), no que diz respeito à incorporação dos princípios da euchronia a essas duas manifestações literárias. Antes do século XIX, as utopias eram imaginadas por seus respectivos autores em lugares remotos, como “ilhas imaginárias ou regiões inexploradas da terra.” (FITTING, 2010). O surgimento da euchronia se deve a uma mudança de mentalidade durante o Iluminismo para uma visão mais otimista do porvir, o que alterou a própria natureza da utopia, pois só então essa passou a se situar no futuro (VIEIRA, 2010).

No entanto, a euchronia na narrativa utópica é aplicada para imaginar um lugar ideal no futuro, apontando ao leitor a possibilidade de que as coisas podem dar certo ou errado, a depender da “responsabilidade moral, social e cívica dos cidadãos.” (VIEIRA, 2010, p. 17).  A distopia, por sua vez, com sua visão pessimista, apenas prevê resultados catastróficos e “rejeita a ideia de que o homem poderá alcançar a perfeição.” (VIEIRA, 2010, p. 17)

Com a transferência do foco para o futuro, a ficção científica passou a ser de grande influência nas obras utópicas e, posteriormente, nas distopias. Segundo Fitting (2010, p. 138) isso se deu em razão da capacidade da ficção científica de “refletir ou expressar nossas expectativas e medos sobre o futuro, e mais especificadamente de ligar essas expectativas e medos à ciência e tecnologia.” O autor ainda destaca que a ficção científica contribui para o gênero utópico ao conscientizar os leitores sobre “os efeitos e a importância da ciência e da tecnologia” e “o papel da tecnologia como ferramenta de transformação social.” (FITTING, 2010, p. 139)

Nineteen Eighty-Four e Brazil: uma proposta de diálogo

Escrito por George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair) e publicado pela primeira vez em 1949, o romance Nineteen Eighty-Four é notadamente um dos exemplares do gênero literário distópico mais famosos mundialmente. Segundo Rossi e Rodden (2007), as experiências do autor na Guerra Civil Espanhola, suas frustrações com a burocracia enfrentada na época em que trabalhou na BBC e sua convicção de que o advento do totalitarismo enfraqueceu a ideia de verdade objetiva, foram fundamentais para a criação da obra.

O livro narra a história de uma sociedade dominada por um movimento totalitário liderado pela figura do Grande Irmão (Big Brother, no original em Inglês). O protagonista, Winston, é um membro inferior do partido dominante, que observa e se questiona sobre a estrutura do poder operante, até o momento em que se vê na oportunidade de agir contra a opressão do regime.

Essa obra tem influenciado muitas narrativas distópicas desde o seu lançamento, sendo o filme britânico Brazil (1985) um exemplo. Dirigido por Terry Gilliam, o filme apresenta uma sociedade futurística marcada pelas desigualdades sociais e pelo controle exercido a partir de regramentos burocráticos estritos. Nesse contexto, um empregado do governo chamado Sam Lowry (interpretado por Jonathan Pryce) decide quebrar as regras para salvar uma mulher por quem ele fica romanticamente interessado.

É possível identificar características similares nos enredos de Nineteen Eighty-Four e Brazil, assim como formas diferentes de representação dos conceitos presentes nos gêneros literários discutidos anteriormente. Assim, por meio da comparação e com base nos ensinamentos da Literatura Comparada, podemos examinar o modo como esses textos dialogam e como os seus elementos em comum são representados.

Análise

Por restrições de espaço em artigos, focaremos nos seguintes elementos que consideramos mais marcantes: o cenário futurista; os instrumentos tecnológicos de controle das massas; o protagonista dissidente; e o final “infeliz” e desesperançoso.

Primeiramente, apesar do romance e do filme analisados terem sido ambos criados no século XX, os enredos se concentram em uma realidade futurística em relação à época em que foram concebidos. Essa é uma característica comum nas narrativas distópicas, como já explanado, na qual os princípios da euchronia são aplicados com o fito de representar uma perspectiva pessimista do futuro (VIEIRA, 2010).

Em Nineteen Eighty-Four, o contexto futurista não é tão evidente, a não ser por meio de referências históricas que, no enredo, foram esquecidas pelo passar dos anos, com a alteração dos registros históricos promovida pelo regime, bem como por meio dos artefatos tecnológicos mais avançados em comparação com o que se tinha naquela época em que o livro foi escrito. Contudo, é possível que essa representação futurista elaborada pelo autor seja assimilada como uma forma de alertar o público das terríveis consequências trazidas pela ascensão ao poder dos movimentos totalitários.

Enquanto isso, em Brazil, o filme inicia com um aviso de que a história se passa “em algum lugar no século XX”. Contudo, os elementos visuais, os cenários e os adereços utilizados no filme sugerem fortemente que esse se passa em um período mais afastado no futuro em relação à data do seu lançamento. As imagens abaixo (Imagens 1 a 4), capturadas de cenas do filme, demonstram alguns aspectos futurísticos:

Imagem 1: Frame do filme Brazil (1985, 14m52s)

Imagem 2: Frame do filme Brazil (1985, 20m16s)

Imagem 3: Frame do filme Brazil (1985, 17m26s)

Imagem 4: Frame do filme Brazil (1985, 1h32m00s)

As imagens acima ilustram uma realidade diferente daquela da época em que o filme foi lançado. Nesse contexto, o futuro apresentado indica de forma crítica os efeitos negativos causados a uma sociedade tão dependente de computadores e influenciada por avanços tecnológicos, industriais e estéticos. Os prejuízos causados pela industrialização e pelo consumismo só são sentidos pelos menos afortunados, enquanto os mais ricos e poderosos ignoram tais consequências.

O segundo recurso da narrativa distópica que analisaremos, as ferramentas tecnológicas, estão intrinsecamente relacionadas com a forma como as sociedades descritas nas obras são controladas. De acordo com Vieira (2010), a ideia de progresso científico e tecnológico como uma ferramenta para o estabelecimento de uma ditadura é característica do discurso distópico.

A telescreen (teletela) em Nineteen Eighty-Four é um instrumento instalado em todos os lugares para observar e escutar a tudo o que os cidadãos estão fazendo, dizendo e até mesmo pensando. Esse dispositivo é descrito da seguinte forma no romance:

A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Qualquer som que Winston fizesse, acima do nível de um sussurro muito baixo, seria captado por ela; além disso, enquanto permanecesse dentro do campo de visão da placa de metal, ele poderia ser visto e ouvido. (…) Você tinha que viver – vivia, do hábito que se tornou instinto – na suposição de que todo som que você fazia era ouvido e, exceto na escuridão, todo movimento era examinado. (ORWELL, 2017, p. 4-5, nossa tradução)[3]

Dessa forma, fica claro que esse aparato tecnológico possibilita o controle dos cidadãos pelo regime ditatorial. Esse controle é essencial para a manutenção do poder, haja vista que é impossível que um indivíduo aja em oposição ao Partido sem ser descoberto e reprimido. Portanto, a telescreen é a ferramenta mais poderosa à disposição do Partido, não é por acaso que um dos seus slogans principais é “Big Brother is watching you” (ORWELL, 2017, p. 3).

Em Brazil, ainda que o principal meio para o controle das massas seja a burocracia, os computadores são o instrumento tecnológico pelos quais cada aspecto da vida daquela sociedade é controlado. Isso é claramente demonstrado quando um erro causado por um computador resulta na prisão equivocada de um homem e na sua consequente execução, como pode ser visualizado nas imagens 5 e 6.

Imagem 5: Frame do filme Brazil (1985, 03m28s)

Imagem 6: Frame do filme Brazil (1985, 05m24s)

Nota-se, portanto, uma leitura irônica do papel da tecnologia na sua relação com a burocracia: existe tamanha confiança no sistema tecnológico que não se permite duvidar da existência de erros, mesmo que estes, como indicam as figuras 05 e 06, levem à condenação de pessoas inocentes. Terceiriza-se a responsabilidade crítica para um sistema que se revela corrupto e enviesado, o que torna qualquer ação de resistência ou revolta complexa e quase fadada ao fracasso. Essa percepção da revolta nos leva ao terceiro item em comum em Nineteen Eighty-Four e Brazil.

Estando sujeito ao controle e à opressão do poder dominante, o protagonista de uma narrativa distópica é normalmente um personagem que diverge da sociedade da qual faz parte. O personagem principal de Nineteen Eighty-Four é Winston Smith, um membro do Outer Party (Partido Externo) que trabalha no Ministério da Verdade. Assim como no romance, o personagem central de Brazil é um funcionário do governo, o burocrata Sam Lowry.

Similarmente, ambos os protagonistas se tornaram mais conscientes da opressão a qual sua sociedade está sendo submetida após um evento específico e, com o apoio de uma mulher com a qual está romanticamente envolvido, eles decidem tomar a iniciativa de se opor ao regime opressor.

À medida que a história progride e atinge seu clímax, os personagens principais fracassam em sua tentativa de rebelar-se e enfrentam um destino cruel. Ao final de Nineteen Eighty-Four, Winston é capturado com sua parceira, Julia, pela Polícia do Pensamento por conspirar contra o Partido. Ele acaba sendo torturado e sofre de uma “lavagem cerebral”, até que é libertado e finalmente se dá por vencido e “percebe” que ama o Big Brother, como podemos observar no trecho a seguir que encerra a obra: “Mas estava tudo bem, tudo estava bem, a luta tinha terminado. Ele tinha conquistado a vitória sobre si mesmo. Ele amava o Big Brother.[4] (ORWELL, 2017, p. 284, nossa tradução).

Em Brazil, as cenas finais mostram Sam sendo capturado e torturado pelo governo por ajudar na fuga de sua parceira, Jill, a qual é suspeita de ser terrorista. Em decorrência da tortura, Sam é levado a um estado de aparente catatonia, no qual fica preso em uma ilusão de que ele escapou com sua amada. A imagem 07 ilustra o momento em que Sam está sendo submetido à tortura por seus captores.

Imagem 7: Frame do filme Brazil (1985, 02h05m24s)

As cenas nas quais Winston e Sam se tornam objetos nas mãos do controle superior se tornam paradigmáticas na sua semelhança. Esse “final infeliz” é a quarta característica comum da narrativa distópica que identificamos nas obras, a qual pode ser interpretada pelo leitor como uma mensagem de alerta. Tal inferência encontra-se em consonância com a lição de Vieira (2010), segundo a qual o real objetivo da obra distópica é ensinar uma lição para o leitor por meio do seu final devastador, sendo que essa situação é uma possibilidade que as pessoas tem de evitar.

Ao analisarmos essas narrativas, podemos observar a presença de aspectos relacionados aos conceitos de antiutopia e, ainda mais evidente, de distopia, discutidos anteriormente. Autores como Gregory Claeys (2010) e Bernard Crick (2007) descrevem Nineteen Eighty-Four como uma sátira ao totalitarismo, o que coaduna com o conceito de antiutopia no que tange ao seu teor crítico e à total descrença no sonho utópico. Por outro lado, a temática do totalitarismo, aliada à ideia do progresso científico e tecnológico como ferramenta para o estabelecimento de uma ditadura, ambas presentes na obra de Orwell e no filme de Gilliam, estão também intimamente relacionadas ao discurso distópico (VIEIRA, 2010).

Assim, ao examinar as obras por meio das lentes comparativistas, torna-se evidente a repetição de certos elementos característicos do gênero distópico, no que se observa a relação de intertextualidade em que, de certo modo, uma obra está contida na outra. É preciso repensar as concepções ultrapassadas de imitação ou cópia e entender essa relação como uma complementação recíproca. Nesse sentido, Carvalhal (2006), ao questionar o conceito de originalidade, defende a repetição como uma forma de interação entre o novo texto e o seu antecessor, atualizando e reinventando aquele que veio primeiro.

Ademais, o enredo e os elementos visuais de Brazil reproduzem aspectos de Nineteen Eighty-Four de uma forma intencionalmente exagerada, em uma aparente crítica não da obra literária, mas da sociedade em geral. Essa afirmação coincide com a definição de Cuddon (1999) para paródia, na qual o autor a descreve como uma imitação de aspectos de um texto em uma maneira ridicularizada. Dessa maneira, considerando que Nineteen Eighty-Four é um romance que definiu o gênero distópico, é seguro afirmar que Brazil se inspirou no texto de Orwell e nos trouxe uma nova visão “paródica” dessa obra.

Conforme sublinha Carvalhal (2006), as noções de originalidade e cópia não possuem na modernidade os sentidos pejorativos como outrora. Em outras palavras, abre-se mão da perspectiva de fontes e influências entre os textos que tanto nutriu o campo comparativista para compreender que a repetição dos elementos selecionados “está carregada de uma intencionalidade certa.” (CARVALHAL, 2006, p. 53)

Considerações Finais

Concluída a análise, podemos identificar alguns elementos comuns às narrativas distópicas em ambos os textos, como o contexto futurista, as ferramentas tecnológicas de controle, o protagonista que se volta contra o regime, e o final “infeliz”. Como pode ser observado, a maneira como esses elementos são representados indica semelhanças entre as duas obras, porém, também destaca as distintas formas como os autores abordaram a temática distópica.

Além disso, por meio do estudo comparativista verificamos a relação de intertextualidade entre as obras. A repetição no filme Brazil dos elementos característicos do gênero distópico encontrados em Nineteen Eighty-Four proporciona a revitalização do texto mais antigo. Nesse sentido, a questão da originalidade (ou a falta dela) não é algo a ser considerado como empecilho para apreciar a obra mais recente, a qual se beneficiou do clássico. O filme Brazil foi bem sucedido em dar uma nova perspectiva à narrativa distópica imortalizada em Nineteen Eighty-Four, trazendo o texto para uma nova realidade.

Dessa maneira, reconhecemos que a relação de intertextualidade é vantajosa para as duas obras, enriquecendo o novo texto e garantindo uma sobrevida ao texto antecessor. Portanto, a fim de absorver o máximo do conteúdo no momento da leitura, é importante que o leitor tenha em mente as conexões existentes entre os textos e como elas são fundamentais para a construção e reinvenção dos escritos.

REFERÊNCIAS

BRAZIL. Diretor: Terry Gilliam. Produção: Embassy International Pictures. Reino Unido: Universal Pictures, 1985. 1 DVD (142 min).

CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. 4.ed. rev. e ampliada. São Paulo: Ática, 2006.

CLAEYS, Gregory (Ed.). The Cambridge Companion to Utopian Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

CLAEYS, Gregory; SARGENT, Lyman Tower (Ed.). The Utopia Reader. New York: New York University Press, 1999.

CUDDON, J. A. The Penguin Dictionary of Literary Terms and Literary Theory. London: Penguin Books, 1999.

CULLER, Jonathan. Literary Theory: A very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2011.

DUTTON, Jacqueline. “‘Non-western’ Utopian Traditions”. In: CLAEYS, Gregory (Ed.). The Cambridge Companion to Utopian Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 223-258.

FITTING, Peter. “Utopia, Dystopia and Science Fiction”. In: CLAEYS, Gregory (Ed.). The Cambridge Companion to Utopian Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 135-153.

ORWELL, George. 1984. New York: Houghton Mifflin Harcourt, 2017.

PARRINDER, Patrick. “Utopia and Romance”. In: CLAEYS, Gregory (Ed.). The Cambridge Companion to Utopian Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 154-173.

POHL, Nicole. “Utopianism after More: the Renaissance and Enlightenment”. In: CLAEYS, Gregory (Ed.). The Cambridge Companion to Utopian Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 51-78.

RODDEN, John. ROSSI, John. “A Political Writer”. In: RODDEN, John (Ed.). The Cambridge Companion to George Orwell. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 01-11

ROEMER, Kenneth M. “Paradise Transformed: Varieties of Nineteenth-century Utopias”. In: CLAEYS, Gregory (Ed.). The Cambridge Companion to Utopian Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 79-106.

VIEIRA, Fatima. “The Concept of Utopia”. In: CLAEYS, Gregory (Ed.). The Cambridge Companion to Utopian Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 3-27.

WELLEK, René. “A crise da literatura comparada”. In: COUTINHO, Eduardo; CARVALHAL, Tania Franco. Literatura Comparada: Textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. p. 120-132.

 


 

Notas:

[1] Para evitar o excesso de notas de rodapé no trabalho, sinalizamos que diversas obras consultadas foram editadas em Língua Inglesa e as traduções de citações foram realizadas pelo autor do artigo.

[2] But although the writers of dystopias present very negative images of the future, they expect a very positive reaction on the part of their readers: on the one hand, the readers are led to realize that all human beings have (and will always have) flaws, and so social improvement – rather than individual improvement – is the only way to ensure social and political happiness; on the other hand, the readers are to understand that the depicted future is not a reality but only a possibility that they have to learn to avoid.

[3] The telescreen received and transmitted simultaneously. Any sound that Winston made, above the level of a very low whisper, would be picked up by it; moreover, so long as he remained within the field of vision which the metal plaque commanded, he could be seen as well as heard. (…) You had to live – did live, from habit that became instinct – in the assumption that every sound you made was overheard, and, except in darkness, every movement scrutinized.

[4] But it was all right, everything was all right, the struggle was finished. He had won the victory over himself. He loved the Big Brother.