Resenha do livro Minha cabeça dói, de Alê Motta

Lívia da Silva Vieira

Minha cabeça dói é o quarto livro publicado por Alê Motta. Sua primeiraedição foi publicada pela editora Faria e Silva, do Rio de Janeiro, no anode 2024. A escritora fluminense é conhecida por seu estilo em “micronarrativas”. E nesse romance não é diferente, a narrativa se aplicada mesma maneira, é curta e objetiva, mas não deixa de envolver o leitore sensibilizá-lo quanto aos temas abordados na história. Trata-se,portanto, de uma ficção narrada em primeira pessoa, em que, ao longo dos 33 capítulos, Otávio, o personagem principal, conta a sua experiênciade vida, cercada por temas sensíveis, como agressão, alcoolismo e abandono paterno. E estas são apenas algumas das muitas questões vivenciadas por Otávio, um adolescente de dezessete anos que resolve contar tudo o que viveu.

O primeiro capítulo logo desperta a curiosidade e o interesse do leitor. Otávio conta como foi ter sido levado para passear pela primeira vez no carro vermelho do pai, que o largou no meio das ferragens, com dor e cheiro de bebida, após o capotamento do carro. Nessa época, ele tinha onze anos, e foi justamente aí, como ele diz, que a sua vida, que já não era nada fácil, começou a ficar bastante confusa. Ficou internado por muito tempo, fez oito cirurgias e tomou muita medicação, e seu pai nunca mais apareceu, tudo o que lhe deixou foi uma cicatriz no rosto e uma grande esperança de que ele retornaria como sendo um bom pai.

Mesmo antes do acidente, a vida de Otávio e de sua mãe já não era nada fácil, pois seu pai a agredia diariamente, e ficar grudado nela o dia inteiro, na tentativa de protegê-la, não adiantava; o pai continuava batendo, a mãe apanhando e ele chorando. Essa era uma situação comum para as pessoas que moravam em seu bairro. Entretanto, ele menciona uma coisa boa, umas das únicas que realmente o fazia gostar de morar lá. Sua vizinha, Lia, que também se tornou sua melhor amiga.Lia era quem lhe passava as anotações das aulas que perdia, por estar no hospital e, assim como ele, não tinha uma vida fácil. Mas, diferentemente dele, seu problema não era com o pai, mas com a mãe, que apresenta sofrer de problemas mentais e comete suicídio. Otávio demonstra ter muito carinho por Lia, mais do que por qualquer pessoa mencionada em sua história, até mesmo pela própria mãe, demonstrando, em muitos momentos, ter indiferença para com ela.

No capítulo 9, Otávio começa a se abrir em relação aos sentimentos que sente, mostrando, ainda que sem perceber, como foi afetado por tudo o que passou. De um menino calado e quieto, tornou-se sarcástico e, pela forma que fala, parece ter se tornado impaciente e mal-humorado também. O hospital em que ficou internado era bastante precário, ele precisava dividir o quarto de internação com outros pacientes que passavam por lá. Nesse momento da história, percebe-se a total falta de empatia que o adolescente passou a ter, pois odiava alguns dos pacientes que lá passavam. Dados os seus sofrimentos, eles choravam, e isso atrapalhava o sono de Otávio. A avó também é uma pessoa que lhe causa ódio, ela falecera e o menino não foi ao enterro, faz questão de dizer que se falecesse 10 vezes, não iria, pois achava uma perda de tempo. Seu ódio era tão grande, que quando a falecida ia ao hospital para dormir com o neto, roncava, e ele sentia vontade de matá-la.

No entanto, passado algum tempo, iniciou-se uma época muito boa de sua vida no hospital, pois Otávio passou a sair e, dessa forma, fez muitos amigos por lá, tanto pacientes como ele quanto funcionários, inclusive,um advogado rico, Celso. Mas quando descobre que Celso está quase namorando a sua mãe, desgosta dele. Uma semana antes de ter alta do hospital, a mãe se casa com o advogado. Então o rapaz se muda para um bairro chique, onde as pessoas eram preconceituosas tanto com Otávio,quanto com Rui, o filho de Celso. Dessa forma, outro tema aparece, pois Celso e Rui são homens pretos e isso influencia no modo como levam a vida. Celso é muito rigoroso e tem muitas regras, como nunca andarem sem camisa ou chinelo. Além disso, Rui nunca pôde pegar em uma arminha de brinquedo para, assim, evitar situações extremamente preconceituosas e até mesmo de morte, como quando menciona um acontecido com uma criança negra que brincava com uma arminha de água e foi morta.

Apesar do exemplo do pai, Otávio seguiu um caminho diferente, não seenvolveu com drogas e nem com bebidas. Seu único vício eram as aulas de informática, sendo apaixonado pela computação. Ele conta que ia às festas para “ficar com as meninas” e que elas se interessavam muito por sua cicatriz no rosto. Além do mais, também se tornou um ótimo contador de histórias, chegando a inventar uma para cada garota. Entretanto,menciona que nunca namoraria ninguém, a não ser, claro, Lia. Infelizmente, algo ficou marcado no garoto, Otávio nunca tomou uma atitude em relação à Lia por medo de se tornar semelhante ao pai. Sem ter feito nada com isso, quem toma atitude é Rui, e os dois começam a namorar, o que abala ainda mais Otávio, pois Lia era a sua única amiga e,como dito, a única por quem se apaixonou.

O garoto conta que sempre pensava no pai e seguia na busca de notícias na internet, mas nada era encontrado. Enfim, no seu aniversário de dezessete anos, ele passa o dia com a mãe, que lhe conta toda a sua história. E o capítulo 27 é o da revelação. Sua mãe, Estela, era uma jovem muito bonita e tinha dois namorados, um estudante do seu colégio,e João, que trabalhava na cantina. Estela engravidou e não tinha certezade qual dos dois era o pai da criança. Contou para os dois. João foi o que reagiu de forma feliz com a notícia e a convidou para fugir. Ele tinha um histórico de sofrer violência do tio alcoólatra, que foi quem o criou e,como sabemos, não demorou muito para se tornar igual ao familiar. Comas frustrações da vida e com a falta de dinheiro, passou a ser um cara totalmente diferente daquele que Estela conheceu. Otávio conta que a primeira vez que o pai ameaçou bater nele, sua mãe mencionou a possibilidade de ele ser filho de outro. Então saiu, voltou dois dias depois e o levou para passear de carro.

No final do dia, sua mãe lhe entrega um número de telefone e diz que aquele é o número do seu pai, mandou que ligasse para ele. Otávio passa a história como um roteiro na sua cabeça, a qual dói. Sente enjoo e raiva. Até que marca um encontro com o pai. Em resumo, foi péssimo. Ele bebeu cerveja enquanto fazia comentários sarcásticos sobre a vida, diz que viajou e morou em alguns estados do Brasil, na época em que estava sumido.

O dia do acidente é mencionado, havia uma mulher e uma criança, uma menina, Otávio não conhecia. A mulher estava alterada como o pai e era ela quem dirigia, até que o carro capotou. O pai não pediu desculpas, não deu explicações ou sequer respondeu às perguntas do filho. Foi embora decepcionando-o ainda mais. O menino que esperou pelo próprio pai que nunca o tratara bem, nem a sua mãe, que o abandonou e quase o matou,finalmente tinha voltado, mas nada nele mudara. O que de fato mudou foi Otávio, que perdera toda e qualquer esperança que ainda lhe restavasobre o pai.

Seis meses depois, João morre em uma briga de bar. No enterro, sua mãe chorava e Otávio ria. Com o celular antigo do seu pai, que lhe deram, ligou para os poucos contatos que tinha. Um desses contatos era de uma suposta filha. No mesmo dia em que recebeu a nota do Enem para ingressar na faculdade, descobriu o nome, endereço e tudo sobre a vida dela. Se mudou para a mesma cidade. Ninguém entendeu a escolha,ele também não explicou. Há três meses morando lá, observa a família etenta compreender a forma que viviam. Fez planos de como obter um primeiro contato, pois já considerava que se agisse precipitadamente poderia estragar tudo.

A história termina para os leitores, então. Entretanto, para Otávio, ela continua. Muito se foi falado em poucas páginas, pois a narrativa é bastante fluida e envolvente, nos fazendo pensar sobre muitas questões delicadas presentes na vida e na sociedade de maneira geral. Um menino que não teve uma vida nada fácil e que se frustrou diversas vezes, mas não deixou que essas frustrações o definissem. Ele, que apesar das sequelas e dos traumas, tomou um caminho diferente e permaneceu acreditando e se agarrando a algo, sua irmã. Era ela, quem sabe, tudo oque lhe restava do pai e a esperança de finalmente ter algo de bom daquele homem.

Minha cabeça dói nos faz pensar e refletir. As críticas sociais nele existentes causam desconforto em quem o lê. Isso porque nos é apresentado uma história nada romântica, apesar de possuir um final que se mostra feliz para o personagem, posto que ele parece ter encontrado,finalmente, uma motivação para a vida — sua irmã. Mas o mais importante é a sua trajetória, é fazer com que a nossa cabeça doa, no sentido de nos incomodar ao entregar trechos fortes de coisas reais. Tal estratégia é uma característica das boas narrativas. Alê Motta faz um excelente trabalho com o seu estilo de escrita e a forma como desenvolveu o enredo. Seu livro é para todos os públicos, principalmente para os que gostam de histórias que ecoam nos muitos pontos da vida real e, sobretudo, ensinam sobre ela.

Referências:

MOTTA, Alê. Minha Cabeça Dói. Rio de Janeiro: Faria e Silva Editora, 2024.