“Memória, identidade e resistência na literatura latino-americana”, entrevista com Teresa Cárdenas

Rayanne Soares da Paz

A literatura pós-colonial — onde o colonizado assume o protagonismo para contar sua própria história — rompe com a subordinação colonialista do discurso, expondo as profundas marcas da violência física e moral da escravidão. A escritora Teresa Cárdenas representa um vértice da literatura escrita por mulheres no qual se expõe a violência colonialista, assim como a própria violência da diáspora que tirou os negros de suas terras, de seus laços culturais e sociais, para serem submetidos às línguas e culturas dos povos colonizadores, eliminando suas próprias identidades.

Teresa Cárdenas Angulo nasceu em Matanzas (Cuba), no ano de 1970. Seus livros foram publicados em diversos países da América Latina, África do Sul e Europa. No dia 07 de março de 2021, o Café Colombo, projeto de extensão vinculado ao Centro Acadêmico do Agreste da Universidade Federal de Pernambuco dedicado à difusão do debate público e à produção de crítica cultural, realizou uma entrevista com a escritora para o Dia Internacional em memória das vítimas da escravidão e do tráfico transatlântico de escravos (25 de março).

Nesta entrevista, disponibilizada de forma integral para a revista Mafuá, Cárdenas aborda questões relacionadas à educação, ao seu processo criativo, à influência da sua escrita por ser uma mulher negra latino-americana e à contribuição das narrativas para o pensamento decolonial. Em sua obra Perro Viejo (2005), ganhadora do prêmio da Casa De Las Américas, Cárdenas descreve, por meio de memórias fragmentadas e dolorosas, a história de um homem negro que foi escravizado em um engenho de cana de açúcar cubano durante 70 anos, e que nunca conheceu outra realidade. A narrativa de Perro Viejo se desenvolve através da reflexão sobre o apagamento da memória, assim como outros livros da autora, a exemplo de Cartas al Cielo (1997), vencedor do Prêmio de La Crítica em Cuba, e Mãe sereia (2018), no qual Cárdenas narra o que teria acontecido no primeiro navio carregado de escravos que saiu da costa da África em direção ao “Novo Mundo”. Nesse sentindo, a literatura da escritora cubana surge de modo a contribuir para um pensamento revolucionário.

Escritora de referência na literatura contemporânea latino-americana, Cárdenas é uma mulher de seu tempo e escreve recriando espaços de protagonismo negro na literatura. Memória, identidade e resistência são alguns dos termos que norteiam a narrativa da escritora.

 

Português

1. Como foi seu processo criativo? Você é uma escritora de referência na literatura contemporânea cubana. De que forma ser cubana, latino-americana, influencia na sua escrita e na construção dos seus temas?

Meu processo criativo varia de acordo com a história e o momento em que vivo e escrevo. Às vezes flui suavemente, outras vezes é difícil para mim “domar” a história que nasce na minha mente, pois não entendo a forma como ela quer ser contada, escrita. Às vezes ouço música afro-cubana com tambores e cânticos cerimoniais, e isso me introduz em uma bolha de tempo onde vejo meus personagens com mais clareza. Outras vezes eu só preciso de silêncio e um pouco de café. Sempre varia, embora nunca deixe de ser intenso e até doloroso. Também não escrevo todos os dias. Não posso. Eu sou uma mãe solteira com três filhos e tudo o que isso envolve consome muito tempo e energia. Assim, terminar um livro, publicá-lo e fazê-lo chegar aos leitores é uma grande vitória. Cada livro é uma alegria, um alívio por finalmente ver em um livro aquela ideia que me atormentou por meses ou talvez anos. Escrevo sentada no canto da cama, com as pernas cruzadas e meu velho laptop quase sem teclas na minha frente. Mas por dentro é como se eu estivesse correndo, meu pulso acelera, meu coração pula. minha respiração trava, é uma paixão, um desespero que eu amo. Eu existo para aquele momento em que escrevo. Só porque eu posso escrever, eu existo. E tudo isso tem a ver com ser mulher negra, nascida no Caribe, falante de espanhol, afro-cubana. É difícil não sentir a força e a resistência dos meus ancestrais africanos por trás de cada palavra escrita. Ou a alegria e ao mesmo tempo a tristeza de uma mulher ilhoa, afro-latina, cercada pelo mar e banhada pelo sol.

 

2. Seus livros exploram narrativas que não são recorrentes na literatura juvenil, pelo menos no Brasil. Por que você decidiu direcioná-las a esse público?

Tudo isso acontece em minha escrita muito naturalmente. Como se as histórias me escolhessem para narrá-las e ao mesmo tempo me desafiassem a traduzir em escrita o que me confiam. É um processo quase espiritual, mediúnico. É uma literatura de memória, do que herdei dos meus antepassados ​​e que hoje vive sob a minha pele. Eu não escreveria o mesmo se tivesse nascido em outro lugar e época. Meus temas têm a ver com a história do meu povo atravessando o Atlântico e a sobrevivência nesta parte do mundo. São temas de sobrevivência, de apego à vida mesmo após a morte. Deixar suas palavras como um legado para as novas gerações é não desistir de si mesmo ou daqueles que o precederam, é isso que você transmite para os que vierem depois de você. Minha literatura é apenas uma cesta que herdei com histórias e personagens que certamente viveram em algum lugar da História. Minha missão é passar tudo o que aprendi para as crianças e jovens desta geração. Acontece que na minha infância eu não lia livros que deveriam ser para a minha idade. Não chamaram minha atenção. Aos 12 ou 13 anos lia Balzac, Maupassant, Poe, Eluard, Vallejo, Carpentier, García Márquez, Hemingway, Ray Bradbury, Agatha Christie… Vivia em um internato esportivo de que não gostava, e só no fim de semana voltava para casa com minha mãe. Eu precisava de um mundo para me refugiar, e os livros para adolescentes não tinham nada a ver comigo. Eu não estava neles. Os personagens que me contavam suas histórias tinham olhos azuis, cabelos loiros que flutuavam ao vento, choravam e desmaiavam, coravam. Lembro-me de que não entendia o que significava corar. Foi difícil me identificar com esses livros. Eles limitavam minha imaginação, então fugi para outros livros. Nenhum guia ou recomendações. Eu lia qualquer exemplar que caísse em minhas mãos. Minha mãe me comprava muitas magazines de humor e revistas. Também gostava muito de poesias e livros intensos, com imagens grandiosas e longos diálogos. No entanto, um dia percebi que nem nos livros para jovens leitores nem nos para adultos havia alguém como eu. Procurei e procurei e não encontrei, então senti que algo não estava certo. Muitos anos depois, quando comecei a escrever, esse era meu objetivo, meu desafio: escrever sobre aqueles que não aparecem em livros infantis e juvenis, os personagens negros. E junto com eles, abordar questões que também não foram abordadas, como o racismo, a violência contra a mulher, o abandono de idosos, a reivindicação de figuras históricas africanas, a emigração, o abuso sexual de meninas, a menstruação, a religião afro-cubana, o tráfico de escravos… São questões que sempre me preocuparam, algumas delas eu vivi na infância. E eu tive que aprender a lidar com tudo sozinha. Escrevo, entre muitas coisas, para ajudar, para acompanhar as negras de hoje. Para que muitos se sintam representados e acompanhados.

 

3. No livro Perro Viejo você aborda questões sobre a memória através das recordações do personagem, que só se lembra do tempo em que viveu escravizado e acredita que voltará a África após a morte. O livro apresenta o processo de construção, busca e recuperação da identidade e cultura através do passado de um homem que foi escravizado, de que forma essas questões abrangidas no livro contribuem para o pensamento decolonial?

Produto do racismo e de toda a sua violência, discriminação e estereótipos, muitas gerações de afrodescendentes cresceram em meu país tentando esquecer sua origem, sentiam que se reconhecer como africanos era sinal de atraso ou de uma pessoa de pouco conhecimento e valor. Na minha infância, muitas garotas negras como eu tinham o cabelo penteado a quente para alisá-lo, e nas escolas nos provocavam por causa de nossos narizes e da espessura de nossos lábios. Foi muito difícil. No meu livro Cartas para o Céu, que foi publicado no Brasil pela editora Pallas do Rio de Janeiro como Cartas para minha mãe, falo de todas essas experiências. Concordo que é absolutamente importante que reconheçamos nossa identidade e a memória de quem fomos. Nossa história não começa com a escravidão, nem fomos responsáveis ​​por ela. No caso do meu livro Perro Viejo quis trazer de memória a essência daquelas pessoas que foram avós de nossos avós, suas crenças e medos, sua resistência a tudo e sua coragem. Seu desejo de retornar à África, que era o mesmo que ser livre novamente, seu desejo de estar vivo após a morte.

 

4. Em seus livros Mãe Sereia e Perro Viejo, é possível perceber questões religiosas. Para você, as questões religiosas são importantes para o processo de formação educacional? Visto que os livros são direcionados para um público em desenvolvimento?

Mãe Sereia é uma fábula da realidade. Entrelaço nele história e ficção. Há crueza e magia. Narra o que aconteceu no primeiro navio carregado de escravos que saiu da costa da África para o Novo Mundo. Foi um desafio, em nenhum livro para crianças em Cuba o sofrimento daquelas pessoas, a tortura, a dor, a morte, foi tão discutido. Essas pessoas são acompanhadas na viagem por uma antiga sereia, uma representação de Iemanjá, a deusa iorubá das águas salobras que é ao mesmo tempo a personificação da África e do que sempre estará com elas. É um livro para crianças, jovens e também adultos, mas no caso das crianças recomendo que a sua leitura seja acompanhada pelos pais ou professores.

 


 

Español

1. ¿Cómo fue tu proceso creativo? Usted es una destacada escritora de la literatura cubana contemporánea. ¿Cómo influye el ser cubano, latinoamericano, en tu escritura y en la construcción de tus temas?

 Mi proceso creativo varía según la historia y el momento en el que vivo y escribo. A veces fluye tranquilamente, y otras me es difícil “domar” la historia que nace en mi mente, porque no entiendo la manera en que quiere ser contada, escrita. A veces escucho música afrocubana con tambores y cantos ceremoniales, y eso me introduce en una burbuja del tiempo donde veo a mis personajes más claramente. En otras ocasiones necesito solo silencio y un poco de café. Siempre varía, aunque nunca deja de ser intenso y hasta desgarrador. Tampoco escribo todos los días. No puedo. Soy madre soltera con tres hijos y todo lo que eso conlleva me ocupa mucho tiempo y fuerzas. Así que, terminar un libro, publicarlo y que llegue a los lectores representa una gran victoria. Cada libro es una alegría, un alivio de ver finalmente en un libro aquella idea que me atormentó por meses o tal vez años. Escribo sentada en una esquina de la cama, con las piernas cruzadas y mi vieja laptop casi sin teclas enfrente. Pero por dentro es como si estuviera corriendo, mi pulso se acelera, mi corazón salta. mi respiración se entrecorta, es una pasión, un desespero que amo. Existo para ese instante en el que escribo. Sólo porque puedo escribir, existo. Y todo tiene que ver con ser una mujer negra, nacida en el Caribe, hispanohablante, afrocubana. Es difícil no sentir la pujanza y resistencia de mis ancestros africanos detrás de cada palabra escrita. O la alegría y a la vez tristeza de mujer isleña, afrolatina rodeada de mar y bañada por el sol.

 

2. Sus libros exploran narrativas que no son recurrentes en la literatura juvenil, al menos en Brasil, ¿por qué decidió dirigirlos a este público?

Todo eso desciende en mi escritura de forma muy natural. Como si las historias me escogieran para narrarlas y al mismo tiempo me plantearan el reto de traducir a la escritura lo que me confían. Es un proceso casi espiritual, de médium. Es una literatura de la memoria, de lo que heredé de mis antepasados y que hoy vive bajo mi piel. No escribiría igual si hubiera nacido en otro lugar y momento. Mis temas tienen que ver con la historia de mi gente atravesando de forma desgarradora el Atlántico y la supervivencia en esta parte del mundo. Son temas de sobrevivencia, de aferrarse a la vida aún después de la muerte. Dejar tus palabras como un legado para las nuevas generaciones es no renunciar a ti ni a los que te antecedieron, eso es lo que transmites a los que vienen detrás. Mi literatura solo es una canasta que heredé, con historias y personajes que seguramente  vivieron en alguna parte de la Historia. Mi misión es pasar todo lo aprendido a niños y jóvenes de esta generación. Sucede que en mis tiempos de menina, no leía libros que se suponían eran para mi edad. No captaban mi atención. De 12 o 13 años leía a Balzac, Maupassant, Poe, Eluard, Vallejo, Carpentier, García Márquez, Hemingway, Ray Bradbury, Agatha Christie…Vivía en un internado de deportes que no me gustaba y solo el fin de semana regresaba a  casa con mi mamá. Necesitaba un mundo donde refugiarme, y los libros para adolescente no tenían que ver conmigo. No me encontraba en ellos. Los  personajes que me contaban sus historias tenían ojos azules, cabello rubio que flotaba en el viento, lloraban y se desmayaban, se sonrojaban. Recuerdo que no entendía que significaba sonrojarse. Me costaba identificarme con aquellos libros. Limitaban mi imaginación, por eso huí a otros libros. Sin guía ni recomendaciones. Leía cualquier ejemplar que cayera en mis manos. Mi mamá me compraba muchos magazines de humor y revistas. También me gustaba mucho la poesía y los libros intensos, con grandiosas imágenes y largos diálogos. Sin embargo, un día me di cuenta que ni en los libros para lectores jóvenes ni en los de adultos había nadie parecido a mi. Busqué y busqué y no encontraba, entonces sentí que algo no andaba bien. Muchos años después, cuando comencé a escribir, esa fue mi meta, mi desafío: escribir sobre los que no aparecen en los libros para niños y jóvenes, los personajes negros. Y junto con ellos, acercarme a temas que tampoco se tocaban como el racismo, la violencia hacia las mujeres, el abandono de ancianos, la reivindicación de personajes históricos africanos, la emigración, el abuso sexual hacia las niñas, la menstruación, la religión afrocubana,  la trata de esclavos… Son temas que siempre me preocuparon, viví algunos de ellos de niña. Y tuve que aprender a lidiar sola con todo. Escribo, entre tantas cosas, para ayudar, para acompañar a las niñas negras de hoy. Para que muchos puedan sentirse representados y acompañados.

 

3. En el libro Perro Viejo abordas cuestiones sobre la memoria, a través de los recuerdos del personaje, quien solo recuerda el tiempo que vivió en la esclavitud y cree que regresará a África después de la muerte. El libro presenta el proceso de construcción, búsqueda y recuperación de la identidad y la cultura a través del pasado de un hombre que fue esclavizado, ¿cómo estos temas tratados en el libro contribuyen al pensamiento decolonial?

Producto del racismo y toda su violencia, la discriminación y los estereotipos, muchas generaciones de afrodescendientes crecieron en mi país tratando de olvidar su origen, sentían que reconocerse como africanos era indicio de atraso o de persona de poco conocimiento y valor. En mi niñez, a muchas niñas negras como yo nos pasaban peine caliente en el cabello para desrizarnos y en las escuelas sufríamos burlas por nuestra nariz y lo gruesos de nuestros labios.  Fue muy duro. En mi libro Cartas al Cielo, que en Brasil fue publicado por la editorial Pallas de Río de Janeiro como Cartas a mi madre, hablo de todas estas experiencias. Acho que es absolutamente importante que reconozcamos nuestra identidad y la memoria de quienes fuimos. Nuestra historia no empieza en la esclavitud, ni fuimos responsables por ella. En el caso de mi libro Perro Viejo quise traer de la memoria la esencia de aquellas personas que fueron los abuelos de nuestros abuelos, sus creencias y temores, su resistencia a todo y su valentía. Su deseo de volver a África, que era lo mismo que volver a ser libres, su anhelo de seguir vivos después de la muerte.

 

4. En sus libros Mãe Sereia y Perro Viejo, es posible percibir cuestiones religiosas. Para usted, ¿los temas religiosos son importantes para el proceso de formación educativa, dado que los libros están dirigidos a un público en desarrollo?

Mãe Sereia es una fábula de la realidad. Entrelazo en ella historia y ficción. Hay crudeza y magia. Narra lo acontecido en el primer barco cargado con esclavizados que salió de las costas de África hacia el Nuevo Mundo. Fue un reto, en ningún libro para niños de Cuba se habló de manera tan cercana lo sufrido por aquellas personas, la tortura, el dolor, la muerte. A estas personas las acompaña en el viaje una sirena milenaria, representación de Iemanjá, la diosa yoruba de las aguas salobres que a la vez es la personificación de África y de lo que siempre estará con ellos. Es un libro para niños, jóvenes y también adultos, pero en el caso de los niños recomiendo que su lectura sea acompañada por padres o profesores.