Reflexões sobre Literatura e Infância em “Desventuras em série”

Leonardo da Silva

RESUMO: Este ensaio tem o objetivo de discutir e problematizar conceitos relacionados ao que costuma denominar-se Literatura Infantil, a partir da obra “Desventuras em série”, de Daniel Handler (que escreve sob o pseudônimo de Lemony Snicket) e sua recente adaptação cinematográfica. Pretende-se, assim, a partir da fundamentação teórica, mostrar que a obra de Handler é mais do que um livro para crianças e, portanto, pode e deve ser lido por crianças, adolescentes e adultos de todas as idades.

PALAVRAS-CHAVE: Desventuras em série, Literatura Infantil, Infância, Cinema.

ABSTRACT: This essay aims at presenting and discussing different concepts regarding the so-called Children’s Literature, based on Daniel Handler’ s “A series of Unfortunate Events” (written under the pseudonym of Lemony Snicket) and its recent cinematographic adaptation. The main objective is to show, with a theoretical basis, that Handler’s books are not only for children and, therefore, should be read by children, adolescents and adults of all ages.

KEYWORDS: A series of unfortunate events, Children’s Literature, Childhood, Cinema.

 

Desventuras em série (A series of unfortunate events) é uma seqüência de treze livros, classificados como de “literatura infanto-juvenil”, de autoria do escritor e cineasta norte-americano Daniel Handler. Na série, ele escreve sob o pseudônimo de “Lemony Snicket”, que é, na verdade, um personagem da história (o personagem-narrador). “Snicket” conta, então, as desventuras dos irmãos Baudelaire que, após perderem os pais em um incêndio,         são perseguidos pelo terrível Conde Olaf. A história acontece na década de 30, misturando fantasia, anacronismo tecnológico e conhecimento científico. De acordo com Tardeli (2007), os livros da série:

Estão classificados na corrente literária steampunk, subgênero de ficção especulativa que narra uma história do passado ou de um mundo que lembre épocas passadas, mas com tecnologia moderna. Este gênero é originário da cultura cyberpunk: era tecnológica vitoriana, clima noir e pulp fiction, com engrenagens, máquinas, sociedades secretas, ocultismo, teorias de conspiração e horror gótico. (p. 11)

Daniel Handler escreve de forma irônica e peculiar: o pseudônimo de Lemony Snicket foi criado com o objetivo de dar um tom mais misterioso aos livros. No início de cada história, Snicket faz uma decicatória à Beatrice Portinari – outra personagem fictícia, que seria a grande amada dele. Na verdade, o nome dessa personagem é uma alusão ao grande amor de Dante Alighieri, um importante escritor e poeta italiano. Esse tipo de referência, aliás, é o que não falta nos livros: o sobrenome dos órfãos (Baudelaire) foi inspirado no poeta francês do século XIX Charles Baudelaire; os nomes dos órfãos Klaus e Sunny são uma homenagem a uma herdeira americana de grande fortuna, socialite e filantrópica que está em estado vegetativo desde 1981; e Arthur Poe (o banqueiro que é encarregado de cuidar dos órfãos depois do incêndio) recebeu esse nome por conta do escritor de contos de terror Edgar Allan Poe.

Os órfãos são personagens muito interessantes, com características peculiares. Violet é a mais velha: tem 14 anos (no início da trama), é inventora, adora trabalhar com experimentos mecânicos e tem a mania de amarrar seus cabelos com uma fita sempre que inventa algo. Klaus, de 12 anos, é um pesquisador muito inteligente que adora ler: está sempre com um livro à mão. Sunny, por fim, é um bebê de dentes afiados, cuja principal ocupação é morder coisas. Já Conde Olaf é o vilão: um ator e um assassino cujo principal interesse é conseguir o dinheiro da família Baudelaire a custa dos órfãos.

Mas a obra de Handler (ou Snicket, como preferir) não é mais uma história de aventura com final feliz como tantas outras. No capítulo um do primeiro livro (O mau começo), o leitor já é alertado acerca disso:

Se vocês se interessam por histórias com final feliz, é melhor ler algum outro livro. Vou avisando, porque este é um livro que não tem de jeito nenhum um final feliz, como também não tem de jeito nenhum um começo feliz, e em que os acontecimentos felizes no miolo da história são pouquíssimos. E isso porque momentos felizes não são o que mais encontramos na vida dos três jovens Baudelaire cuja história está aqui contada. Violet, Klaus e Sunny Baudelaire eram crianças inteligentes, encantadoras e desembaraçadas, com feições bonitas, mas com uma falta de sorte fora do comum, que atraía toda espécie de infortúnio, sofrimento e desespero. Lamento ter que dizer isso a vocês, mas o enredo é assim, fazer o quê? (SNICKET, p. 1)

Ao mesmo tempo em que a linguagem dos livros é simples, ela é também bastante rica: o autor “usa palavras difíceis, explica seu significado com muita graça e depois as emprega em contextos diversos” (BOSCOV, 2002). No capítulo cinco, por exemplo, o narrador explica a diferença entre sentido “literário” e sentido “figurado”, mas de forma bastante criativa:

É muito útil, quando se é jovem, saber a diferença entre “literal” e “figurado”. Se alguma coisa acontece no sentido literal, acontece de verdade; se acontece no sentido figurado, dá a impressão de estar acontecendo. Se você está literalmente pulando de alegria, por exemplo, quer dizer que você está dando saltos no ar porque se sente muito feliz. Se você está pulando de alegria figuradamente, o que isso quer dizer é que você se sente tão feliz que poderia pular de alegria, mas está poupando sua energia para outros fins.  (…) Em seguida, foram para o seu quarto e se acotovelaram na cama única, lendo com atenção e na maior felicidade. Figuradamente, eles escaparam ao conde Olaf e a sua existência miserável. Não escaparam literalmente, porque continuavam na casa dele e vulneráveis aos seus maléficos procedimentos in loco parentis. (SNICKET, p. 68-69)

Situações como essa não são forçadas (é como se o significado das palavras, por exemplo, surgisse naturalmente – como um amigo que nos ensina algo novo) e tampouco impregnadas de “lições de moral”. O autor faz brincadeiras e críticas à sociedade, que talvez as crianças não percebam em um primeiro momento. Isso contribui para que não apenas crianças sejam fãs da série – há uma legião de adultos que também lêem e são fãs das Desventuras dos órfãos. Assim, “Desventuras em série” se diferenciam daquelas obras que, como afirma César Aira (2001), tentam “separar os domínios da infância e da vida adulta”:

Pensando minha própria aversão à literatura infantil, agregaria que o que a subliteratura faz não é inventar seu leitor, operação definidora da literatura genuína, mas dá-lo por inventado e concluído, com traços determinados pela suspeitosa raça dos psicopedagogos: de 3 a 5 anos, de 5 a 8, de 8 a 12, para pré-adolescentes, adolescentes, meninos, meninas; seus interesses se dão por sabidos, suas reações estão calculadas. Fica obstruída de entrada a grande liberdade criativa da literatura, que é em primeiro lugar a liberdade de criar o leitor e fazê-lo criança e adulto ao mesmo tempo, homem e mulher, um e muitos.

C.S. Lewis, autor das Crônicas de Nárnia, em seu ensaio “Três maneiras de escrever para Crianças”, também critica a separação entre histórias “infantis” e “não infantis”: “Inclino-me quase a afirmar como regra que uma história para crianças de que só crianças gostam é uma história ruim. As boas permanecem. Uma valsa da qual você só gosta enquanto está dançando não é uma bolsa valsa” (2005, p. 743).

É importante entender, ainda, que criar histórias simplificadas para o público infantil é subestimar as crianças. Existe o preconceito de que

(…) as crianças são seres tão diferentes de nós, com uma existência tão incomensurável à nossa, que precisamos ser particularmente inventivos se quisermos distraí-las. (…) nada é mais ocioso do que a tentativa febril de produzir objetos – material ilustrativo, brinquedos ou livros – supostamente apropriados às crianças. (BENJAMIN, 1994, p. 237)

Pode-se perguntar, então: qual seria a faixa etária adequada para Desventuras em Série? E respondo: nenhuma. A literatura não pode ser simplificada a faixas etárias – crianças são tão diferentes, adultos são tão diferentes… A literatura não precisa ser dividida em etapas: uma criança que leu Desventuras, por exemplo, pode crescer e reler a obra – e gostar mais ainda, já que provavelmente vai perceber que há muito mais lá do que ela havia percebido antes.

As desventuras dos órfãos são emocionantes, e eles próprios são seus heróis: conseguem amenizar as situações através da inteligência e esperteza. Digo “amenizar” porque os problemas não são totalmente resolvidos: as histórias são desagradáveis e terríveis, sem final feliz. Na verdade, muitos autores clássicos (e que poderiam ser lidos também por crianças) escreviam histórias que não necessariamente tinham um final feliz: Edgar Allan Poe (autor de “O Corvo”, “A Queda da casa de Usher”, entre outros) e W.W. Jacobs (A mão do macaco) são alguns exemplos. Crianças não gostam apenas de histórias coloridas e felizes. O mais puro exemplo não-literário disso é o Halloween: não são as crianças que mais se divertem nessa data? E, certamente, não é somente por conta dos doces do trick ortreat.

É comum que os livros escritos com o intuito de serem comprados para crianças estejam repleto de “morais”, como se a função da literatura fosse essencialmente pedagógica. O fato é que necessariamente não é a ‘moral da história’ o aspecto do texto que irá chamar a atenção do jovem leitor, já que outros aspectos (algo divertido ou assustador, por exemplo) da narrativa poderão se sobrepor a esse. Lewis Carroll brinca com isso em Alice no país das maravilhas (o autor está, de certa forma, criticando o regime escolar), quando a personagem da Duquesa encontra uma moral para tudo (e quando não encontra, inventa):

“Ora, ora, minha criança!” disse a Duquesa. “Tudo tem uma moral, basta saber encontrá-la.” E chegou ainda mais perto de Alice enquanto falava.
(…) “Parece que a partida está bem melhor agora”, observou Alice, para alongar um pouco a conversa.
“É mesmo”, disse a Duquesa, “e a moral disso é… ‘O amor, o amor que faz girar o mundo!’”
“Ouvi alguém dizer”, murmurou Alice, “que isso ocorre quando cada um cuida de seus próprios interesses!”
“Exatamente! Quer dizer a mesma coisa”, falou a Duquesa, fincando seu queixo pontudo no ombro de Alice e acrescentando, “e a moral disso é… ‘Cuide dos sentidos, que os sons cuidarão de si mesmos.”
“Como ela gosta de achar uma moral em tudo!” pensou Alice com seus botões. (2000, p. 112 – 113)

Fica claro que Handler não se preocupou em transmitir lições de moral ao escrever seus livros.  Sua preocupação, na verdade, deve ter sido a de escrever histórias interessantes, brincando com a linguagem, e que pudessem ser lidas por pessoas de todas as idades.

A obra de Handler ganhou um toque especial com os desenhos de Brett Helquist, fazendo com que os livros unissem texto e desenhos de qualidade, duas coisas raras de serem encontradas juntas, como afirma César Aira (2001):

(…) uma conseqüência que lamento especialmente: que a indústria editorial tenha reservado para o ramo infantil as melhores flores de engenho e invenção no aspecto físico dos livros. Os de adultos, que compro e leio (e, ai!, escrevo), são objetos convencionais e chatos, sempre iguais, páginas e capas; as inovações e surpresas nós encontraremos só na seção infantil das livrarias, onde, claro, não encontraremos nada que valha a pena ler. (Não conto os livros de arte, caros, pesados incômodos e também convencionais.)

O sucesso dos livros é tão grande que as três primeiras obras (The bad beginning, The reptile room e The wide window) foram adaptadas em um longa-metragem, dirigido por Brad Silberling (Lemony Snicket’s A Series of Unfortunate Events, 2004).  Em uma mistura de drama, aventura e fantasia, a adaptação para o cinema conseguiu manter o humor característico dos livros e ainda aumentar a atmosfera sombria. Os cenários, figurinos e a trilha sonora contribuem para criar o clima de “desventuras” dos livros de Daniel Handler. O longa lembra os filmes de Tim Burton, cineasta com um estilo que mistura o bizarro com o rebuscado.

Lemony Snicket é o personagem que, como nos livros, narra a história. O filme começa com uma linda animação de um “elfo feliz”, em plena primavera. Tem-se a impressão de que o filme é “cheio de vida e energia”. Mas logo a imagem congela e o narrador nos alerta:

Sinto muito dizer que não é esse o filme que você vai ver. Você vai assistir a um filme extremamente desagradável. Se quiser ver um elfinho feliz, sei que há muitos outros lugares no outro cinema. Mas se gosta de histórias sobre órfãos inteligentes e bonitos, incêndios suspeitos, sanguessugas carnívoras, comida italiana e organizações secretas, então fique porque vou contar cada passo doloroso das crianças Baudelaire. Meu nome é Lemony Snicket e é meu triste dever relatar esta história.

Além disso, o vilão Conde Olaf, interpretado por Jim Carrey, dá um toque de humor ao personagem. A pequena Sunny, no entanto, é um dos personagens mais cômicos: como ela é apenas um bebê, só reproduz sons que não fazem sentido algum. Sempre que ela “fala”, vemos uma legenda, traduzindo de forma bastante engraçada o que ela “quis dizer”.

O sucesso das “desventuras”, seja em livros ou no cinema, é inegável. A obra de Handler já foi traduzida para pelo menos trinta e nove línguas, e esteve no topo da lista de livros mais vendidos por muito tempo, competindo com o bruxo Harry Potter. “Livros-extras”, tentando solucionar mistérios da obra ou discutindo a identidade de Lemony Snicket foram lançados, como Lemony Snicket: Autobiografia não autorizada. Há, ainda, outros livros ainda não traduzidos para o Português: The Beatrice Letters, Horseradish: Bitter SecretsYou Can’t Avoid e 13 Shocking Secrets you’ll wish you never knew about Lemony Snicket.

Em uma época repleta de histórias de “coelhinhos felizes” para crianças, é um alívio perceber que a “literatura de verdade” ainda está aí – e não falo apenas dos clássicos. Desventuras em série deveriam, com certeza, estar na estante dos livros que podem (e devem) ser lidos por “crianças, adolescentes e adultos inteligentes de todas as idades”.

Referências

AIRA, C. Contra la literatura infantil. In: Babelia, suplemento de El País, 22 de Dezembro de 2001.

BENJAMIN, W. “Livros infantis antigos e esquecidos”. In: BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 235 – 243.

BOSCOV, I. Os três rivais de Harry Potter. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/210802/p_110.html>. Acesso em 10 de Novembro de 2008.

CARROLL, L. Alice no país das maravilhas. São Paulo, 2000.

DVD “Desventuras em Série” (Lemony Snicket’s A Series of unfortunate events). DreamWorks, Paramount Pictures, 2004.

LEWIS, C.S. “Três maneiras de escrever para crianças”. In: LEWIS, C.S. As Crônicas de Nárnia. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 741 – 751.

SNICKET, L. Desventuras em série – O mau começo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

TARDELI, D. D. “Desventuras em série – uma série de atividades para a sala de aula”. In: Bolando Aula. Santos: GRUHBAS Projetos Educacionais e Culturais, n. 81, p. 11 – 13, set. 2007.