Descompassos na Aparição de Virgílio Ferreira

Júlia Telésforo Osório

RESUMO: A presente leitura pretende relacionar duas correntes filosóficas distintas, o marxismo e o existencialismo, a partir do romance Aparição, de Vergílio Ferreira. No romance, o protagonista Alberto Soares problematiza conceitos como, por exemplo, o de “alienação”, ampliando-o e relacionando-o com outro viés teórico, no caso, o existencialismo.

PALAVRAS-CHAVE: marxismo; existencialismo; neorrealismo.

ABSTRACT: This reading intend to relate two different philosophies, marxism and existialism, from Aparição by Vergílio Ferreira. In this novel, the protagonist, Alberto Soares, discusses concepts such as “alienation”, expanding and relating this concept to existentialism.

KEYWORDS: marxism; existentialism; neo-realism.

 

Vergílio Ferreira é reconhecido por parte da crítica literária como pertencente à geração de intelectuais portugueses do fim dos anos 1930, atrelada ao neorrealismo. Esse movimento surgiu como um questionamento referente ao contexto da crise pós-Primeira Guerra Mundial, no qual esses intelectuais atentaram para uma necessidade de intervenção na realidade social portuguesa através da arte. Com um forte viés marxista, eles evidenciaram uma necessidade de mudança da realidade a partir de um diagnóstico de maior empobrecimento das classes sociais em Portugal, assim como de um considerável aumento da miséria no campo e, consequente, êxodo rural, aliado à institucionalização do regime totalitário, figurado por Antônio Salazar (1933-1974). O neorrealismo, representado pela Seara Nova, revista emblemática desse grupo, também esteve em oposição à revista Presença, do grupo liderado por José Régio e demais continuadores da geração de Orpheu, que pregava a “arte pela arte” sem um compromisso político-social como centro de criação e que assegurava a importância do dogma individualista, ou seja, compromisso do artista consigo mesmo para fazer arte com qualidade.

Os jovens que, nos anos 40, se reuniram em torno do “Novo Cancioneiro” cometeram, por generosidade, alguns erros que o futuro exército da própria criação ajudou a corrigir: desprezando a arte a favor de uma entidade vaga a que se chamava “o homem” ou “a vida”, esqueceram-se da advertência de Wilde de que a escola mais adequada para se aprender arte é a Arte e não a Vida, pondo a moral social à frente dos valores estéticos ignoram a regra de ouro de que a esfera da ética e a esfera da estética são absolutamente distintas ou mesmo, como pretendeu Gide, em arte, a ética é uma dependência da estética… De começo, realmente, os jovens neorrealistas não queriam aceitar que o objectivo de um bom poema é o bem-dizer e não o bem-fazer (LISBOA, 1986, p. 122).

Em um primeiro momento, a crítica neorrealista focou-se nas questões do mundo do trabalho relacionadas ao conceito de alienação dos sujeitos portugueses. Contra um panorama de crise político-econômica, havia, então, a crença no papel revolucionário da arte como forma de interferir e promover mudanças concretas na realidade, comprometida com a sociedade lusitana com a finalidade de denunciar as barbáries provenientes das práticas capitalistas através da conscientização das massas. Esse conceito de arte foi influenciado pelas artes visuais como, por exemplo, o muralismo mexicano e as telas do brasileiro Portinari, que evidenciaram a desmoralização e a perda da subjetividade humana através da exploração pelo trabalho. Já em um segundo momento, a idealização social dos primeiros entusiastas neorrealistas perdeu força e, na década de 1950, através de um questionamento crítico, a luta contra a marginalização social tomou proporções não mais condizentes com a arte engajada proposta até então.

Já figura do improvável, do impossível ou do inaceitável, Vergílio Ferreira de antes do 25 de Abril, a Revolução enquanto espectro marxista incarnado — embora brevemente — só podia confirmar o pânico quase mítico e a repulsa visceral que desde Aparição a sua incarnação histórica — ou pseudo-incarnação — lhe suscita (LOURENÇO, 1984, p. 12).

A literatura de Vergílio Ferreira criticou o determinismo e escapou do enfoque sociológico dos intelectuais de outrora. A luta contra a marginalização social não seria mais reconhecida somente na coletividade, presente, por exemplo, no romance Gaibéus de Alves Redol, mas na individualidade, nas singularidades de cada ser.

[…] Na realidade, o autor iniciou-se como neo-realista, orientado pelo materialismo dialético (O Caminho Fica longe, 1943, Onde Tudo Foi Morrendo, 1944, Vagão “J”, 1946), mas num livro sintomaticamente intitulado Mudança dá-se a grande viragem. Embora o embasamento neo-realista do livro, este já se configura como revolução na obra romanesca de Vergílio Ferreira. Isso porque o conflito social torna-se complementar do existencial. Em Carlos Bruno está em embrião a consciência em crise dos heróis problemáticos de Aparição e Signo Sinal […] (GOMES, 1993, p. 27).

No romance Aparição, publicado em 1959, nota-se a problematização de diversos conceitos marxistas referenciais ao movimento neorrealista, principalmente o papel do indivíduo em sociedade. Em seu enredo, a reflexão social e também os anseios libertários são reconstruídos de maneira avessa à primeira geração de Seara Nova.

[Vergílio Ferreira] Preocupa-se com um campo mais subjetivo e mais profundo, mais íntimo e essencial, que é o da condição humana. Interessa-lhe pensar o Homem e o mundo em que lhe foi dado viver. Pensá-lo na intensidade emocionada da sua tragédia ou na plenitude da sua alegria. Mesmo que breve, fugazmente breve, essa alegria. Um romance em que isso fosse possível, não seria, decerto, a crônica das misérias materiais do homem, das imediatas necessidades da sua sobrevivência. Também não seria o romance de nivelamento coletivo horizontal, em que tudo (e todos) se torna igual ou semelhante pela igualdade ou semelhança dos que compõem a classe social posta em destaque. O romance que a Vergílio Ferreira interessa criar teria forçosamente que “pinça” o Homem do meio dessa coletividade humana, pô-lo em destaque, isolando-o, “construí-lo” como personagem, acompanhar a complexificação desse processo até ao mais absoluto conhecimento dessa solidão, dessa emoção, dessa relação intensa do Homem colocado frente a frente consigo mesmo e com os outros, com o Cosmos ou com o Nada (PAIVA, 2007, p. 34).

Impossível negar a presença de uma crítica feroz às práticas sociais ditadas pelos compassos da ode capitalista nessa narrativa de Vergílio Ferreira, intelectual pertencente à segunda fase do movimento neorrealista português. Nota-se, entretanto, a ausência da exegese do discurso marxista isolado ― uma das características desse período ―, perceptível anteriormente no primeiro movimento do neorrealismo.

[…] a aparição é descoberta – autodescoberta – do eu como realidade em sentido primeiro, metafísica, do “eu metafísico” como diz o próprio Vergílio Ferreira. Isto significava (significa) que a sua verdade não podia ser, em definitivo, a do eu empírico, sob nenhuma das suas figuras, desde a psicológica à social. Este foi, na ordem imediata do discurso cultural, vigente nos anos 50 entre nós, o escândalo Vergílio Ferreira. Desse “escândalo” Vergílio Ferrerira fará um mundo (LOURENÇO apud PAIVA, 2007, p. 113-114).

Vergílio, a cada capítulo, estrutura uma contaminação entre duas vertentes teóricas distintas: o marxismo e o existencialismo, esta última difundida em Portugal pelas suas traduções da obra do filósofo francês Jean-Paul Sartre. No editorial da edição portuguesa do romance Aparição de 1971, pontua-se acerca do autor: “tendo colhido no neorrealismo — que começou por caracterizar a sua obra — ‘a aprendizagem da dignificação do homem’, foi no existencialismo que a completou”.

E, todavia, pesa-me como uma pata de violência a realidade da pessoa que somos. Há muita coisa a arrumar, a harmonizar, muita coisa a morrer. Mas por enquanto está viva. Por enquanto sinto a evidência de que sou eu que me habito, de que vivo, de que sou uma entidade, uma presença total, uma necessidade do que existe, porque só há eu a existir, porque eu estou aqui, arre!, […] (FERREIRA, 1971, p. 34).

A digressão como mecanismo de desalienação construída pelo autor assemelha-se com aquela realizada pela Escola de Frankfurt na primeira metade do século XX. Intelectuais como Walter Benjamin, Marcuse, Horkheimer, Habermas e Adorno distanciaram as prerrogativas marxistas do engajamento político-social. Em seus trabalhos, é perceptível uma análise da superestrutura capitalista e dos problemas provenientes desse sistema pelo viés acadêmico: “a institucionalização dos trabalhos de um grupo de intelectuais marxistas, não ortodoxos, que na década dos anos 20 permaneceram à margem de um marxismo-leninismo ‘clássico’ […]” (FREITAG, 1986, p. 10).

A relação entre o escritor português e os pertencentes à Escola de Frankfurt dá-se, de fato, na ruptura com o discurso engajado e revolucionário dos primeiros entusiastas marxistas, que enxergaram na revolução a única forma de modificar a realidade. Em Aparição, é notável o desenvolvimento de uma crítica relacionada ao conceito de (des)alienação na construção da personagem Alberto Soares, que, ao longo da narrativa, questiona e não aceita o determinismo consequente do fluxo da superestrutura da sociedade capitalista portuguesa ― a principal crítica neorrealista.

Com o olhar voltado a si, o protagonista estrutura uma reflexão acerca do indivíduo, inserido na sociedade através do discurso memorialístico, e, também, da descrição da personagem por si própria, que relembra as suas experiências, deslocando-as no tempo e no espaço pelo mecanismo da lembrança. Importante ressaltar que o romance é escrito em primeira pessoa e é marcado pela repetição constante de pronomes, elementos narrativos que ressaltam a presença desse sujeito que é e que rompe com a engrenagem do sistema, o que possibilita pensar em uma posterior desalienação do coletivo, no caso, da sociedade lusitana, representada pela cidade de Évora.

[…] Toda a manhã lutei não apenas com elas para me exprimir, mas ainda comigo mesmo para apanhar a minha evidência. A luz viva nas frestas da janela, o rumor da casa e da rua, a minha instalação nas coisas imediatas mineralizavam-me, embruteciam-me. Tinha o meu cérebro estável como uma pedra esquadrada, estava esquecido de tudo e no entanto sabia tudo. Para recuperar a minha evidência necessitava de um estado de graça. Como os místicos em certas horas, eu sentia-me em secura. Fechei os olhos raivosamente e quis ver. Regressava à aldeia, a essa noite de Setembro, quando meu pai morreu. Se tu viesses, imagem na minha condição… Se aparecesses… como me esqueces tão cedo, como te sei te não vejo! (FERREIRA, 1971, p. 32).

Mesmo que a crítica social esteja presente no romance, ela não é o único elemento de identificação de sua complexidade. A metáfora arquitetônica marxista da infra e superestrutura é contaminada com os ideais de outro pensamento: a corrente de pensamento existencialista. Para que a desalienação torne-se uma realidade difundida socialmente, ela é articulada inicialmente no âmbito individual com o intuito de alcançar o coletivo para, então, promover o conhecimento intrínseco (de si para si) como uma forma concreta de ruptura. É justamente nesse ponto que está centrada a profecia de Vergílio Ferreira no fim da década de 1950: não há mais uma crítica ingênua e pronta de uma realidade social, mas uma luta contra a marginalização e (des)alienação de cada indivíduo, de cada ser, na sua perspectiva individual.

[…] Era uma ousadia, publicar-se em Portugal, em 1959, um livro como este. Ainda na vigência do neorrealismo, embora na sua fase final, Aparição consolidava a temática existencial na obra do seu autor, consolidava o romance-ensaio, ou de idéias, ou o romance-problema, como preferia o próprio Vergílio, que assim introduzia uma pequena revolução nesse cenário. […] Aparição representa um mergulho profundo no conhecimento do homem a partir de si mesmo. Na verdade, é o romance da descoberta emocionada do Eu, na acepção mais profunda da individualidade, a revelação da essência do homem a si mesmo (PAIVA, 2007, p. 113-114).

Assim, o existencialismo como sistema filosófico de ruptura representa o fim da utopia herdada do pós-guerra porque promove a desestabilização do projeto moderno e suas práticas ordenadoras, articulada principalmente pelo pensador alemão Martin Heidegger e pelo francês Jean-Paul Sartre em um enfoque na essência da experiência de cada sujeito: “a essência, como razão da série, é, definitivamente, apenas o liame das aparições, ou seja, é ela mesma uma aparição” (SARTRE, 1997, p. 16).

Intérprete desta urgente renovação e, ao mesmo tempo, testemunha da situação de angústia na qual o flagelo horroroso da guerra lançara a humanidade é o existencialismo, corrente de pensamento que concebe a especulação filosófica como uma análise minuciosa da experiência cotidiana em todos os seus aspectos, teóricos e práticos, individuais e sociais, instintivos e intencionais, mas sobretudo dos aspectos irracionais da existência humana (MONDIN, 1983, p. 182).

Alberto articula a aparição da sua essência pela memória, recontando suas experiências e articulando-as com a sua formação como sujeito, inserido socialmente em uma realidade veementemente questionada. Esse foco na experiência do sujeito individual e não mais do sujeito coletivo configura-se um ato transgressivo ao conduzir uma crítica à estrutura da sociedade portuguesa, componente da engrenagem capitalista.

O movimento transgressivo de questionar a realidade social perceptível em Aparição relaciona-se com o que Walter Benjamin, em Experiência e pobreza, defende como uma barbárie positiva, pensando na experiência do sujeito do pós-guerra. Atribui-se a essa modificação do conceito moderno de experiência uma miséria consequente do maquinismo, imposto pelo desenvolvimento da técnica em tempos de guerra. Em uma prática homogeneizante da modernidade, o sujeito se apaga diante da tecnologia, torna-se menor. Acompanhada dela, surge o que Benjamin denomina como barbárie positiva: um romper com a experiência do passado e olhar multiplamente para o futuro sem passado ou sem tradição transmitida anteriormente.

A natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto se unificam completamente, e aos olhos das pessoas, fatigadas com as complicações infinitas da vida diária e que vêem o objetivo da vida apenas como o mais remoto ponto de fuga numa interminável perspectiva de meios, surge uma existência que se basta a si mesma […] (BENJAMIN, 1986, p. 119).

A positividade desse caráter destrutivo, herdado da experiência da guerra, pode consistir na libertação dos conceitos predeterminados transmitidos pelos antepassados. Agora o sujeito do pós-guerra não recebe mais a experiência vivida por um sujeito anterior a sua respectiva existência e seus respectivos conflitos. Esse sujeito sem amarras vê-se inserido no caos e, sem as experiências do outro, enfrenta a barbárie diante de si com a sua miséria e pobreza ― ausências do alheio ―, acompanhado da multiplicidade ambivalente e caótica produzida pela radicalidade da ordem. Alberto representa, portanto, aquele eu diante do mundo sem amarras com o passado e com a tradição à procura de sua essência como aparição, pois “o existente, com efeito, não pode se reduzir a uma série finita de manifestações, porque cada uma delas é uma relação com o sujeito em perpétua mudança” (SARTRE, 1997, p. 17).

Desde sempre, dormíamos cada irmão em seu quarto. Cumpri o dever de ser homem e deitei-me sozinho, tendo o cuidado de não olhar para o guarda-fato. Mas no outro dia, assim que me levantei, coloquei-me no sítio donde me vira ao espelho e olhei. Diante de mim estava uma pessoa que me fitava com uma inteira individualidade que vivesse em mim e eu ignorava. Aproximei-me, fascinado, olhei de perto. E vi, vi os olhos, a face desse alguém que me habitava, que me era e eu jamais imaginara. Pela primeira vez eu tinha o alarme dessa viva realidade que era eu, desse ser vivo que até então vivera comigo na absoluta indiferença de apenas ser e em que agora descobria qualquer coisa mais, que me excedia e me metia medo. Quantas vezes mais tarde eu repetiria a experiência no desejo de fixar essa aparição fulminante de mim a mim próprio, essa entidade misteriosa que eu era e agora absolutamente se me anunciava (FERREIRA, 1971, p. 51).

Quando Alberto se olha no espelho e se (re)conhece como alguém totalmente diferente do que a exterioridade o desenhava e do que ele acreditava, o ato de ver-se, sob um viés jamais imaginado, torna-se fascinante e, ao mesmo tempo, motivo de medo, pois anuncia uma personalidade com a qual ele não estava habituado e na qual ele não se reconhecia até então. Anunciada por uma entidade misteriosa, a mistura em forma de aparição surge, assim, como um questionamento existencialista e, ao mesmo tempo, marxista: quem realmente ele era em relação a si, ao espelho e aos demais?

A complexidade do romance estrutura-se, portanto, na maneira como é construída a contaminação teórica de duas vertentes distintas; como alternativa para articular um questionamento social a partir da subjetividade de um indivíduo. Essa maneira de pensar o marxismo relacionado com o existencialismo problematiza ainda mais o contexto lusitano, criticado anteriormente pelos primeiros neorrealistas. O processo de desalienação em Aparição é, então, efetivado com esse sujeito que, no viés individualista, questiona e não aceita; aquele que rompe com o determinismo do fluxo superestrutural da sociedade capitalista portuguesa, metaforizada na aparição da essência do ser que a compõe, também a sendo.

Referências

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1986.

FERREIRA, Vergílio. Aparição. Lisboa: Editorial Verbo, 1971.

FREITAG, Barbara. O histórico da Escola de Frankfurt. In: ______. A teoria crítica ontem e hoje. São Paulo: Brasiliense, 1986.

GOMES, Álvaro Cardoso. A voz itinerante: ensaio sobre o romance português contemporâneo. São Paulo: USP, 1993.

LISBOA, Eugénio. Poesia portuguesa: do Orpheu ao Neorrealismo. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1986.

LOURENÇO, Eduardo. Literatura e revolução. Lisboa: Colóquio Letras, 1984.

MONDIN, Battista. Curso de filosofia: os filósofos do Ocidente. São Paulo: Paulinas, 1983. v. 3.

PAIVA, José Rodrigues de. Vergílio Ferreira: para sempre, romance-síntese e última fronteira de um território ficcional. Recife: UFPE, 2007.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 1997.