A vida por um fio

Juliana Cristina Garcia

RESUMO: Esse ensaio visa a mostrar a realidade da infância em alguns pontos da África a partir das crianças presentes na obra de Mia Couto, O fio das missangas. Fazendo ligações com outras obras de escritores que também são africanos, esse trabalho mostra como são retratados, na literatura africana, as dificuldades encontradas pelas crianças daquele continente, o preconceito e o sofrimento que enfrentam diariamente, levando-as, na maioria das vezes, a tornarem-se adultas precocemente.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura africana; Infância; Preconceito.

ABSTRACT: This essay aims to show the reality of childhood in some parts of Africa based on the children present in the work of Mia Couto, O fio das missangas. Making connections with other works by writers who are also African, this essay shows how they are portrayed in African literature, the difficulties encountered by children of that continent, the prejudice and suffering that they face daily, leading them, in most cases, to an early adulthood.

KEYWORDS: African literature; Childhood; Preconception.

 

Que valia ser criança se lhe faltava a infância?
Mia Couto

Mia Couto nos mostra em O fio das missangas um pouco da realidade africana nos dias atuais, de maneira muito enigmática e levemente trágica, misturando elementos que tornam a leitura de seus contos bastante intrigante.

O sofrimento e a tristeza são sentimentos fortíssimos de O fio das missangas. São muitos os episódios em que algo de ruim ocorre com um dos personagens, seja ele secundário ou protagonista. Em geral, os contos trabalham com a morte, mesmo que seja a morte interior, sintoma da falta de anseios e esperança na vida dos personagens. O óbito, na África, é visto de maneira diferente, por haver lá uma cultura distinta da nossa. Para eles, as pessoas que já partiram dessa vida estão sempre por perto, seja para os abençoar ou para os amaldiçoar.

Embora as questões tratadas nesse artigo não sejam apenas problemas africanos, pois ­existem jovens em todo mundo que sofrem diversos tipos de preconceitos, discriminações e passam por muitas dificuldades, destacamos a história de algumas crianças que representam essa falta de infância na África, por se tratar de um continente muito pobre, em que o sofrimento da fome, da falta de expectativa e esperança, é causado a um número representativo de crianças.

A infância é uma fase delicada da vida, quando muitos conflitos psicológicos acontecem. É a época que todos deveriam ser felizes, brincar e aprender para se tornarem pessoas construtivas e construtoras de um mundo melhor. Mas, por questões sociais, econômicas, raciais e familiares, existe tanto sofrimento e desconforto que muitas crianças vêem mais alegria na morte do que na vida. Jovens e crianças de todo o mundo sofrem até mais do que os adultos, por serem mais sensíveis, e estão apenas começando sua história. A literatura de Mia Couto deixa sua marca através da caracterização de personagens fortes, mostrando que a literatura moçambicana apresenta tantas boas qualidades quanto possuem as demais literaturas lusófonas.

A agonia sentida durante a leitura dos contos da obra não se faz presente apenas com a morte dos personagens, e sim, com a questão de que, muitas vezes, o que proporciona a morte são os fatos da vida ou simplesmente a impossibilidade de viver bem. Pode-se notar isso, em especial, nos contos em que as crianças são personagens. O rio das Quatro Luzes é o conto em que melhor se percebe a angústia da vida de algumas crianças africanas.

O garoto sem nome se encanta ao ver um enterro, desejando ser ele o morto chorado e enterrado. É repreendido por sua mãe e em seguida, por seu pai, que, segundo o narrador, “nunca lhe dirigira um pensamento”. Essa dura realidade vivida pelo menino o faz desejar envelhecer mais rápido do que o tempo lhe permite. Para ele não há sentido em ser criança. O próprio personagem se pergunta: se não existe infância, para que lhe servia ser uma criança?

É no momento de reflexões sobre a dificuldade de ser criança, sem direito ao sonho, que aparece outro personagem muito importante para a narrativa: o avô. Este, sabendo da tristeza do neto e de seu desejo de morte por estar cansado da vida que tinha, propõe uma falsa troca de papéis que acaba por transformar a realidade do “miúdo”, que passa a se comportar como criança ao lado do avô que o acompanha em suas aventuras, relembrando momentos de sua infância.

Algumas vezes, o garoto chega a perguntar se o avô tem pedido a Deus que faça a sua vontade de morrer primeiro, já que não tem interesse nenhum de viver, ao contrário do mais velho que ama a vida. Mas, na medida em que vai “meninando”, ele inicia a sua infância tardia e deixa de pensar na morte e em ser adulto para viver o presente.

Conselho do avô: ele que, entretanto, fosse meninando, distraído nos brincados. Que, ainda agora, o que ele se lembrava era o mais antigo de sua existência. E lhe contou os lugares secretos de sua infância, mostrou-lhe as grutas junto ao rio, perseguiram borboletas, adivinharam pegadas de bichos. O menino,  sem saber, se iniciava nos amplos territórios da infância. Na companhia do avô, o moço se criançava, convertido em menino. A voz antiga era o pátio onde ele se adornava de folguedos. E assim sendo. (COUTO, 2009, p. 113).

Foi o avô quem fez com que o pequeno rapaz visse o que é ser criança. É ainda ele quem tenta explicar aos pais do garoto que “criancice é como amor, não se desempenha sozinha. Faltava aos pais serem filhos, juntarem-se miúdos com o miúdo. Faltava aceitarem despir a idade, desobedecer ao tempo, esquivar-se do corpo e do juízo” (COUTO, 2009, p.113), mas os pais não faziam isso, não conseguiam voltar às alegrias de ser criança, e tratavam o pequeno como gente grande.

Com a morte do avô, o menino sente que tudo não passou de uma artimanha sua, para que pudesse viver sua infância. E assim como o velho vê o curso do rio se inverter em seu delírio de morte, o garoto vê sua vida voltar a ser como era, torna-se novamente um jovem adulto. Ao dizer que no “leito do rio se afundaram quatro luzências” (COUTO, 2009, p. 115), subentende-se que o brilho existente no olhar do garoto naqueles bons momentos que viveram afundou, assim como a luz que havia nos olhos de seu avô.

Sabendo das dificuldades da vida em diversas regiões do continente Africano, podemos compreender a razão pelo qual almejar uma vida com melhores condições seja uma tarefa tão complexa. Embora não revelado o local em que se passa esse conto, sabemos que a África sofre com guerras civis em diversos lugares, não somente as guerras, mas também a fome, a falta de estrutura e as dificuldades com saúde são bastante presentes em diversos países africanos. Dessa forma, a infância acaba sendo deixada de lado, e as crianças vêem-se forçadas a amadurecer de alguma forma.

A “falta de infância” e o amadurecimento precoce e forçado que percebemos em O rio das Quatro Luzes, está presente também ­− junto da impossibilidade de sonho −  em O menino que roubava versos, conto em que o protagonista é visto pelos pais como um menino doente, apenas pelo fato de gostar de escrever poesias.

Nesse conto, ao contrário de O rio das Quatro Luzes, o menino não anseia pela morte, e sim, deseja poder viver e escrever seus versos, que funcionam como uma espécie de válvula de escape para suas frustrações. Sua infância é sofrida, por mais que não lhe falte o pão na mesa. Mas não é só isso que necessita uma criança para que seja feliz e goste de viver. O amor, a compreensão e o lúdico são elementos fundamentais para que cresça e viva bem. Entretanto, nem pai e nem mãe compreendiam o garoto. Para piorar a situação, o pai, de maneira asquerosa, acreditava que seria necessário tirar o menino da escola, pois “o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos” (COUTO, 2009, p. 132), como se ser poeta fosse algo errado, e demonstrar virilidade fosse o melhor a ser feito.

O menino é repreendido por sonhar e se mostra inconformado com isso. Seus pais se esquecem que parte da infância é baseada na imaginação e no mundo do faz de contas. Levam o garoto ao médico por acreditarem que manter o pé no chão é o melhor a ser feito. Quando perguntado pelo médico se algo lhe doía, responde que “Dói-me a vida, doutor”. Surpreendido, o médico passa a prestar mais atenção ao garoto:

E o que fazes quando te assaltam essas dores?
O que melhor sei fazer, excelência.
E o que é?
É sonhar.

Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrara o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o menino reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. (COUTO, 2009, p. 133)

Seus pais não sabem mais o que é sonhar. Vivem um dia após o outro sem expectativas de melhora. O pai, mecânico, mal conseguia pagar o pão e a escola do filho. A mãe aceitava um marido que mal lhe sabia fazer um agrado. Não sonhavam. Não demonstravam almejar uma vida melhor, já haviam perdido as esperanças que existem dentro de cada sonho.

Os poemas, para o menino, tinham importância vital. “Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida” (COUTO, 2009, p. 133), diz o menino ao médico, que o ouve com atenção e determinado interesse, tentando explicar que, o que ele faz, não são apenas poemas. O menino ainda sonhava.

Maria Alexandre Dáskalos, em seu poema O garoto corria corria… ilustra a fuga de um garoto, correndo sem direção e sem saber o sabor da vida. Corre aos braços da morte, sem colo e sem esperanças:

O garoto corria corria
não podia saber
da diferença entre as flores.
O garoto corria corria
não podia saber
que na sua terra há
morangos doces e perfumados,
o garoto corria corria
fugia.
Ninguém lhe pegou ao colo
ninguém lhe parou a morte.
(DASKALOS, 2003, p. 115)

O poema de Dáskalos, assim como os dois contos de Mia Couto, mostra a problemática da infância na África, e ilustra também questões que vão muito além da infância. Mesmo não sendo moçambicana como o autor, Maria Alexandre Dáskalos é africana e sabe das dificuldades de seu povo. As guerras, a fome, a desilusão estão muito presentes nas obras de escritores africanos exatamente por exprimirem a realidade daquela nação. Assim como os adultos, as crianças também sofrem com os acontecimentos ao seu redor, e muitas vezes acabam sofrendo mais, pois perdem a melhor etapa de suas vidas, que é a infância.

No poema, podemos supor os mais diversos motivos para fuga, inclusive a fuga das guerrilhas que estão presente, ainda nos dias de hoje, em diversos países africanos, onde crianças pequenas são capturadas para tornarem-se guerrilheiros, treinadas para atirar e para matar sem discriminação. A fuga da miséria causada pela péssima distribuição de dinheiro e de riquezas que existem por lá, sendo os deliciosos “morangos”, nunca vistos por ninguém, um grande motivo para a discórdia. O menino corre… e sua infância fica cada vez mais longe, inalcançável.

Em seu conto Kuíto, o escritor angolano Ondjaki mostra um pouco da vida africana dentro da guerra. “Que era chorar ou ter fome? Dentro de toda aquela confusão interior, alguém mais sabia onde acabava uma sensação e começava um sentimento? E quando chorava, esse alguém podia dizer com certeza por que chorava?” (2004, p. 93). Uma criança, em meio a tantos tormentos, não consegue encontrar seu lugar, deixa de ser criança. A lágrima passa a ser apenas um alívio, um “conforto” em meio a tanto sofrimento, onde tantas vezes, como no poema de Dáskalos, nem o colo lhe é oferecido para que seja acalentado e acalmado.

Os garotos de O rio das Quatro Luzes e de O menino que escrevia versos, porém, encontraram seu refúgio: um nos braços do avô e outro nas linhas de seus poemas. Porém, ambas as sensações de alívio são passageiras. O avô, pouco tempo depois de ter mostrado e ensinado ao seu neto o quanto pode ser bom viver, morre, deixando o menino sozinho novamente, dentro de uma família que demonstra não saber como lidar com a situação de ter uma criança em casa; no caso do garoto poeta, não se sabe por quanto tempo o doutor irá sustentar a ânsia poética do pequeno. Sabe-se que não será para sempre e que, um dia, voltará a sua dura realidade.

Luandino Vieira mostra mais uma dificuldade enfrentada por algumas crianças africanas. Preconceito é a palavra chave de seu conto A fronteira de asfalto, em que Ricardo precisa se afastar de sua amiga de infância Nina pelo fato de ser negro. “Virou os olhos para o seu mundo. Do outro lado da rua asfaltada não havia passeio. A terra era vermelha. […]. Casas de pau-a-pique à sombra de mulembas. As ruas de areia eram sinuosas. Uma tênue nuvem de poeira que o vento levantava cobria tudo” (VIEIRA, 2007, p. 40).

A rua, nesse conto, serve como fronteira que separa dois mundos, o mundo dos negros e o dos brancos. Enquanto pequenos, não havia tantos problemas em serem vistos juntos, mas conforme vão crescendo, os amigos precisam deixar de conviver. A sociedade não via essa aproximação de cores com bons olhos. Fica explícita a relação desse conto com o regimento do Apartheid, existente na África do Sul, a partir do ano de 1948, no qual a relação entre brancos e negros era proibida em diversos momentos, sendo o Apartheid decretado por lei.

As crianças no conto não eram a favor dessa condição, se questionando “[…] porque? Por que é que ela não podia continuar a ser amiga dele, como fora em criança? Por que é que agora era diferente?” (VIEIRA, 2007, p. 42). Nesse conto, pode-se notar que as crianças puderam aproveitar um pouco sua infância, mas ao crescerem, precisaram deixar para trás as alegrias vividas, afastando-se um do outro, e sendo forçados a tornarem-se intolerantes racialmente, assim como os adultos em seu redor. É nesse afastamento forçado que ocorre a tragédia final do conto. O rapaz, tentando aproximar-se de Nina, acaba morto fugindo da polícia. E morre no lado “branco” da rua.

Como mostra o protagonista do conto de Mia Couto, O menino que escrevia versos, as crianças não tinham voz:

De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entende?
De que vale acordar
se o que vivo é menos que o que sonhei?
(COUTO, 2009, p. 131)

Não há remédio que cure a tristeza de perder a infância. Inocência, brincadeiras, risadas, não é isso que vemos nos contos de O fio das missangas. Os contos, em geral, trazem morte, dor e sofrimento. Trazem um fio de esperança que acaba sendo cortado ao meio. Quando o leitor pensa que a história vai mudar de rumo e acredita que algo de bom acontecerá com os personagens, há uma reviravolta e isso não ocorre. No caso do menino que fazia seus poemas, o final não foi trágico, mas ele acaba afastado da família para viver por tempo indeterminado internado, recitando poemas para o médico.

Maria Nazareth Soares Fonseca e Maria Zilda Ferreira Cury afirmam que “os romances de Mia Couto apresentam espaços formados por imagens de morte e destruição; por outro lado, são eles iluminados por busca de redenção” (2008, p. 58). O autor trabalha alguns contos assim como seus romances. A busca por redenção está visível na vida das personagens infantis. E isso não apenas em Mia Couto, mas nas obras de Luandino Vieira e Maria Dáskalos citadas nesse trabalho. As crianças procuram uma salvação em algum lugar ou alguma situação que lhes seja confortante. Ricardo, em A fronteira de asfalto procura sua redenção na janela de Nina, na intenção de conversar com ela e resolver a questão racial que os separava, pois sabia que dentro dela, assim como nele, não havia fronteira alguma. No poema da Dáskalos, o menino corre, fugindo de sua miséria, e encontra a redenção nos braços da morte.

Nos contos, a redenção não é plenamente alcançada. O miúdo do primeiro conto, O rio das Quatro Luzes, encontra sua salvação na companhia do avô. Quando esse se vai, deixando o menino sem um parceiro de meninice, o garoto se vê novamente sem infância, retornando à sua vida dura de adulto em corpo de criança. “Porque nos fazem com esta idade, tão pequenos, se a vida aparece sempre adiada para outras idades, outras vidas? Deviam-nos fazer já graúdos, ensinados a sonhar com conta medida” (COUTO, 2009, p. 112), dizia o garoto no início do conto, ansiando por outra vida.

Com o pequeno de O menino que escrevia versos, a redenção se dá ao sair de casa, se afastando da vida sem sonhos e ambições de seus pais. Seus sonhos eram escritos em poemas, e assim seu dia a dia se tornava mais fácil, menos sofrível. Desejava ao menos ter direito de viver, pois se sentia como se estivesse já morto por dentro.

Em O fio das missangas, temos vários contos que são interligados por um fio, como o próprio autor considera sua obra. Na literatura africana, temos o relato de várias vidas que ainda são sustentadas por um fio de esperança que muitas vezes está prestes a se cortar, porém, o fio da vida das crianças desse continente, precisa de reforço urgentemente, pois já vem arrebentando há algum tempo, e elas não tem mais força dentro de si para manterem-se inteiras.

Num continente pobre que vive em conflito, os valores estão perdidos e a luta não é pela felicidade, mas sim pela sobrevivência. O lar deixa de ser o lugar onde se busca o amor e passa a ser apenas o refúgio. As crianças são tratadas como adultos, sem sonhos, brincadeiras ou esperança. A vida perde o sentido e infância passa a ser apenas uma palavra.

Referências

COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

DÁSKALOS, Maria Alexandre. O garoto corria corria… In: DÁSKALOS, Maria Alexandre; APA, Lívia; BARBEITOS, Arlindo. Poesia africana de língua portuguesa – antologia. Rio de Janeiro: Lacerda editores, 2003.

FONSECA, Maria Nazareth Soares; CURY, Maria Zilda Fereira. Mia Couto: Espaços ficcionais.Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.

ONDJAKI. Kuito. In: ______. Momentos de aqui. Lisboa: Caminho, 2004.

VIEIRA, José Luandino. A fronteira de asfalto. In: ______. A cidade e a infância. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.