Os equívocos de uma visão pré-concebida em “Marília de Dirceu”

Rachel Pantalena Leal

Este trabalho impôs um ousado desafio: assumir uma postura crítica sobre determinado assunto relacionado à Literatura Brasileira, e, sobretudo, defender esta postura, ou seja, definir argumentos capazes de sustentar a opinião formada. Um desafio, talvez tal palavra seja encarada com certo exagero, porém ela possui fundamento, ao passo que minha história estudantil nunca exigiu um posicionamento crítico literário, e apesar de achar que sempre o tive, minhas opiniões eram abafadas por um sistema escolar de caráter behaviorista, que reduz a aprendizagem a constituir uma cadeia de “estímulos” e “reações”, logo a colocação de idéias próprias tornou-se algo visto com muito receio de minha parte. Porém, não estou disposta a usar este problema como desculpa. Reconheço, desde já, que meu conhecimento literário e minha escrita são incipientes, contudo assumo o compromisso de tentar compor um trabalho, que demande esforço e dedicação, por acreditar que tais elementos sejam essenciais para um bom desempenho. Reconheço, também, uma forte inclinação para gostar de literatura nacional, já que esta sempre provocou forte interesse,e desta maneira a semente(disposição) de conhecê-la melhor está plantada(desculpe o clichê). E como adendo, queria fazer uma colocação de Antônio Cândido, que me parece muito coerente para iniciar este trabalho e fechar meu primeiro prefácio: “Comparada às grandes a nossa literatura é pobre e fraca, mas é ela, não outra que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem e se não a amarmos ninguém os fará…”.

Dirceu, Marília e História

Literatura Brasileira Colonial, esta nomenclatura não é de consenso de todos os críticos literários, porque para muitos autores é impossível definir características claras de um real movimento literário e ainda se reforça a idéia do alto atrelamento com a metrópole, que inviabilizaria uma possível expressão cultural verdadeira. Porém, o Arcadismo traz uma novidade na história brasileira: pela primeira vez um grupo de escritores formam um movimento literário-poético, mais ou menos coeso, com destaque a Tomás Antônio Gonzaga.  Esse autor é conhecido pela obra poética que fez sobre sua Maria Dorotéia, no trabalho ele assumiu o pseudônimo de Dirceu e ela o de Marília, que se transformou na famosa personagem feminina da Literatura Brasileira. Todavia, para compreender Marília de Dirceu, vamos falar um pouco mais do estilo Árcade, que foi posterior ao Barroco, visto que este não comportava os anseios da nascente sociedade burguesa do século XVIII , que começava a valorizar o individual e a vida particular, e foi na harmonia e simplicidade da Antigüidade Clássica que os poetas árcades acharam sua literatura. Vale lembrar que os clássicos da Antigüidade imitavam a natureza, já os neoclássicos, ou árcades, seguindo mais a doutrina de Boileau em “Arte Poética”, imitavam modelos clássicos renascentistas, isto é, a imitação da arte vai em direção ao esteticismo. É curioso pensar que em pleno século XVIII, que é lembrado pela revolução Francesa, independência dos EUA, buscou-se na “simples” Arcádia a inspiração artística, mas muitos críticos atuais defendem que a ideologia capitalista só se completaria no Romantismo. Enfim…vamos falar do Arcadismo no Brasil…

“Doces invenções da Arcádia!
Delicada Primavera
Pastoras, sonetos, liras
entre as ameaças austeras
de mais impostos e taxas
que uns protelam e outros negam.
Casamentos impossíveis.
Calúnias Sátiras. Essa
Paixão da mediocridade
que na sombra exaspera
E os versos de asas douradas
Que amor trazem e que amor levam…
Anarda, Nise, Marília…
As verdades e as quimeras.”

Esses versos retirados do Romanceiro da Inconfidência, Cecília Meireles, refletem bem o contexto histórico-social do arcadismo no Brasil , mas como quem tem que escrever sou eu… vamos lá! É importante saber separar sempre a história e literatura, não apenas por aquela possuir um total compromisso com a verdade, ao passo que esta não possui tal dever, mas como motivo maior o fato de que ambas merecem um esforço em pesquisa específica, por serem áreas ricas e por ainda apresentarem lacunas não muito bem esclarecidas. Apesar disso, quando o assunto é Arcadismo Brasileiro, torna-se interessante e muitas vezes necessária uma análise do contexto histórico. Bem, o século XVIII foi realmente marcado por acontecimentos importantíssimos ocorridos no Brasil, esses não escaparam das influências do iluminismo que varriam a Europa e América do Norte.

Vale lembrar que nossa metrópole, desde o século XVII, vinha enfrentando uma fase crítica e decadente, onde o Brasil transformou-se na sua principal base de sustentação, entretanto mesmo o açúcar, produto mais lucrativo do Brasil, perdia seu valor diante das concorrências, tornando a situação de Portugal mais preocupante. Porém foi nesse cenário que os bandeirantes paulistas encontraram ouro nas regiões do centro-oeste brasileiro. A fase do Ouro propiciou um quadro de profundas mudanças: maior urbanização, concentração populacional e uma modesta diversidade social, impensável na sociedade açucareira.Essas mudanças ocasionaram um “progresso” econômico, administrativo, social responsável pela criação de uma incipiente consciência nacional. Enfatizando que um dos “culpados” por esta foi o todo-poderoso Marquês de Pombal, ministro de D. José I. Esse foi um déspota esclarecido, ou seja, um daqueles estadistas da época que compreendeu a necessidade de modernizar um sistema a fim de mantê-lo. O déspota é conhecido por ter expulsado os jesuítas do território brasileiro, no entanto para a elite aurífera a medida mais importante adotada foi a maior participação de elementos novos, no caso eles, em órgãos administrativos e fiscais e também nas instituições judiciárias e militares. Um exemplo foi o aristocrata Alvarenga Peixoto, que foi nomeado ouvidor na comarca do Rio das Mortes (deve ficar em Minas), região onde ele tinha interesses em terras e mineração. Notadamente o ainda poeta árcade-ilustrado é autor de uma trabalhada Ode dedicada ao Marquês. Logo abaixo segue-se um trecho:

“Grande Marquês, os Sátiros saltando
por entre verdes parras
defendidas por ti de estranhas garras
os trigos ondeando
nas fecundas searas
os incensos fumando sobre as aras,
à nascente cidade
mostram a verdadeira heroicidade”

Infelizmente, com a morte de D. José I, houve a volta da rigidez mercantilista instaurada por D. Maria em 1777, que não agradou aos setores da Oligarquia Mineira, acostumada com as facilidades e os espaços concedidos na fase de Pombal, que inclusive foi afastado. Melo Castro, novo ministro de Portugal, tendo uma visão conservadora tentou destruir muitos avanços do antigo governo. No Brasil ele demitiu o governados de MG, D. Rodrigo Menezes, “amigo” da elite aurífera, e restitui no lugar o “mandão” Cunha Menezes. Este novo governo foi marcado por mandos e desmandos, substituições de velhos favorecidos por novos, ainda é válido mencionar, que o governador desprezava os magistrados. Gonzaga, enquanto ouvidor, era obrigado a ver regularmente a figura antipática do governador, refletindo o desgosto da aristocracia mineira, que não o suportava. Tanto é assim, que a coroa o demitiu. Sua marca peculiar na história do Brasil rendeu-lhe ainda a “homenagem” nas célebres Cartas Chilenas. Essas são um conjunto de poemas satíricos, onde são relatadas as atitudes do Governador, que recebeu o pseudônimo Fanfarrão Minésio. Talvez esta importante obra seja ainda o documento histórico que comprova a insatisfação, que tenderia a crescer e engendrar uma famosa conspiração…mas voltando a obra, nota-se:

* Deboche, chega-se a comparar a figura do Governador com o jocoso personagem Sancho Pança (Dom Quixote).
“Escuta a história de um moderno Chefe,
Que acaba de reger a nossa Chile(Brasil),
Ilustre imitador a Sancho Pança.”
* O trecho seguinte exemplifica o abuso de poder e ainda expõe a crise que a falta de ouro estava causando, deixando claro a dificuldade para se pagar o quinto. Ao passo que o Fanfarrão, seguindo a política da metrópole, parecia ignorar os problemas, usando a força para cobrar os impostos.
“Pertence, Doroteu (Cláudio Manuel), o nosso chefe
Mostrar um grande zelo nas cobranças
Do imenso cabedal que todo o povo
aos cofres do monarca está devendo.
Envia bons soldados às comarcas,
E manda-lhe que cobrem, ou que metam,
A quantas não pagarem, nas cadeias.
Não quero, Doroteu, lembrar-me agora
Das Leis do nosso augusto, estou cansado
De confrontar os fatos deste chefe
Com as disposições de são direito…”
* E para fechar, segue-se um trecho enraivecido, onde o autor faz de interlocutor o próprio Cunha Menezes, o Fanfarrão.
“Agora, Fanfarrão, agora falo
Contigo, e só contigo. Porque causa
Ordenas que se faça uma cobrança
Tão rápida e tão forte contra aqueles
que ao Erário só devem tênues somas?
Não tens contratadores, que ao rei devem
De mil cruzados centos e mais centos?
Uma só quinta parte, que estes desses,
Não matava Erário o grande empenho?
O pobre, porque é rico, vai pagando
Sem soldados à porta, como sossego!
Não era menos torpe, e mais prudente
Que sem haver respeito ao pobre ou rico,
Metessem, no Erário, um tanto certo,
à proporção das somas que devessem?
Indigno, indigno chefe! Tu não buscas
O público interesse. Tu só queres
Mostra ao sábio augusto um falso zelo,
Poupando, ao mesmo tempo, os devedores
Os grossos devedores, que repartem
Contigo os cabedais, que são do reino”

Realmente é interessante como o autor coloca sua crítica, claro que expondo sua indignação, mas mais que isso, pois no mesmo fragmento a postura “déspota” é assumida, no sentido que violência não seria o meio mais eficiente na cobrança de impostos, seria mais prudente uma interlocução entre estado e população(aristocracia). E ao final da estrofe, mais uma vez, o questionamento sobre uma atitude política melhor é descartada, pois o grande chefe é indigno e está preocupado em garantir interesses próprios. Ao longo de todas as 13 cartas, que se dão em versos decassílabos soltos, sendo a sexta sílaba tônica, nota-se ainda características típicas do neoclassicismo, como a simplicidade nos termos, uso de figuras mitológicas para intermediações, sintaxe clara, esta muitas vezes aproximada com a sintaxe latina, que altera determinados constituintes, que não são muito usuais do português.

“Há tempos, Doroteu, que não prossigo
do nosso Fanfarrão a longa história.”
“Indigno, indigno Chefe! Tu não buscas
o público interesse.”

Arrisco ainda que em alguns trechos, como no exemplo acima citado, ocorrem rimas (na verdade não sei se posso considerar rimas). Talvez o autor tenha pretendido construir ritmo, enfim…estou em dúvida…, o fato é que ele usa palavras que possuem seus sons finais semelhantes, como em “metessem”, “devessem”, “interesse”, que ecoam em uma leitura atenta. Isso ocorre quando ele também usa palavras repetidas muito próximas, repare: “Agora, Fanfarrão, agora falo”, “tão rápida e tão forte”, “Tu não buscas…Tu só queres”, nos dois últimos exemplos ainda pode ser considerado o uso repetido da mesma estrutura frasal.

Enfim, a obra Carta Chilenas constitui papel importante no movimento literário do arcadismo e no momento histórico da mineração. Sua autoria é revogada a Tomás Antônio Gonzaga, no entanto essa questão ainda gera polêmica. Eu ainda não possuo autoridade para afirmar nada, porém por hora vou concordar. Para fechar a questão histórica, Cunha Menezes foi demitido pela coroa e em seu lugar assume outro Fanfarrão, digo, outro governador o Visconde Barbacena, que teve seu governo marcado pelo esboço da conspiração nomeada Inconfidência Mineira.

E como curiosidades finais:

  • Os letrados tiveram participação oblíqua na Inconfidência. Gonzaga e Cláudio Manuel não chegaram a se envolver profundamente na conjura. Exceção era Alvarenga Peixoto, que inclusive seria responsável por conseguir homens para lutar numa possível guerra.
  • Mesmo sendo um nome importante, Alvarenga Peixoto, no fundo, como muitos, continuava bajulador do sistema, e, ao que diz, só não virou denunciante por interferência de Bárbara Heliodora, sua mulher.
  • Caso a república se instalasse Gonzaga seria nomeado presidente desta.

A Construção de uma Visão Crítica sobre Marília

Deixando a questão histórica um pouco de lado, queria me ater a Marília de Dirceu, mencionada no início do ensaio, e para ressaltar a importância da obra vale citar que em seu século, só Camões (Os Lusíadas) conheceu mais edições. Isso reflete o forte interesse que a sociedade da época demonstrava pelo livro, porém o que se torna mais relevante é a perenidade, pois depois de dois séculos a obra ainda se faz presente. Ainda sim, sem desmerecer sua importância, confesso que as primeiras impressões não foram muito boas, uma delas até frustrante. O livro apresenta como temas centrais Marília e a declaração de amor por ela. Assim esses foram os assuntos de todas as liras, e se algum poema apresenta variação em certos momentos, este com certeza ainda acabaria falando de ou sobre a Pastora. Isso acabou causando (arriscando a redundância) uma monotonia-tediosa. Outro fato chamativo é como Marília é colocada, na verdade a descrição da personagem não apresenta nada de novo: “bonitinha”, “meiguinha”, “purinha”, “obedientinha”. Enfim, o modelo feminino bem convencional. A superficialidade também incomodou, isto é, apesar de falar sobre Amor e a mulher amada, parece ter faltado a exposição de um sentimento mais sincero, talvez mais intenso. E como foi dito antes, um sentimento de frustração também foi experimentado, ao passo que ao saber o real envolvimento entre Gonzaga e Maria Dorotéia, esperei por uma leitura com mais complexos e dilemas amorosos, visto o relacionamento conturbado vivido pelo casal.

Contudo, com o decorrer do trabalho, admito que as pesquisas e as informações coletadas esclareceram alguns equívocos da minha visão simplista sobre uma obra que é referência em nossa literatura. Assim torna-se pertinente a apresentação dos pontos que me obrigaram a repensar o meu ponto de vista.
Primeiramente, é válido salientar um importantíssimo mas muitas vezes ignorado fato: em alguns casos, para o entendimento do texto literário, principalmente em textos já antigos, é necessária compreensão de fatores externos, como tempo, condição social etc.

Marília de Dirceu está inserida no contexto literário do arcadismo, ao afirmar isso temos que reconhecer diversas posições que o estilo árcade impõe, e estes obviamente influenciaram a obra. E entre as características formais importantes do também conhecido neoclassicismo, as principais para a obra em questão são:

  • sintaxe clara
  • vocabulário não-erudito
  • exaltação da clareza oposição ao cultismo
  • busca do equilíbrio
  • verso sem rima (há exceção)

Já os temas, além do modelo convencional-idealizado feminino, evidentes em Gonzaga são:

  • Carpe diem – em latim, “colhe o dia que passa”. Em face da transitoriedade da vida, dá-se aqui o convite a gozar o momento presente.
  • Locus amoenus – lugar tranqüilo, ameno, onde se pode encontrar a paz.
  • Aurea medocritas – expressão latina que simboliza a existência sem sobressaltos, sem ambições de glória ou de fortuna, o meio termo saudável (este se liga ainda com a corrente filosófica do estoicismo).
  • Imitilia truncat – cortar as inutilidades, os exageros, buscar satisfação naquilo que é simples (há também uma analogia com o estoicismo).
  • Fugere urbem – expressão latina que indica fugir da cidade, buscar a natureza, o paraíso perdido (a natureza torna-se o locus amoenus).

De fato, esses temas são presentes e constantes, e de maneira geral a busca pela clareza, simplicidade, equilíbrio é feita a partir do modelo da natureza (onde entra o Bucolismo). A cultura grega também tem papel importantíssimo, dela se serve o autor e em muitos casos faz-se necessário sua compreensão para melhor entender a passagem em algumas liras. Seguem-se agora alguns trechos, que têm por finalidade a comprovação dos itens acima citados, ou apenas são postos para colocações que julguei interessantes.

“Mal vis o teu rosto, Avista furtiva
O sangue gelou-se O rio imperfeito
A língua prendeu-se Fizeram a chaga
Tremi e mudou-se Que abriste no peito,
Das faces a cor Mais funda, e maior
Marília, escuta Marília, escuta
Um triste pastor. Um triste Pastor.”

Aqui (Lira IV, 1), o autor parece descrever quando a paixão revelou-se em sua vida, a passagem consegue traduzir os anseios e nervosismos muito comuns aos apaixonados, principalmente quanto estes deparam-se com a pessoa especial. De fato, a lira é muito bonita. O uso do decassílabo quebrado e algumas rimas ainda facilitam uma leitura dinâmica e prazerosa.

“Que havemos d’esperar, Marília bela?
Que vão passando os florescentes dias?
As glórias, que vêm tarde, já vêm frias,
E pode enfim mudar-se a nossa estrela.
Ah! Não, minha Marília
Aproveite-se o tempo, antes que faça
O estrago de roubar ao corpo as forças
E ao sublime a graça.”
Neste trecho (lira XIV, 1), quanto em toda esta lira, há explicitação do tema carpe diem. Porém, esta temática é intensificada, pois o poeta tem consciência da diferença de idade entre ele e sua amada, e os problemas futuros que podem causar. Logo a seguir tais problemas são expostos:
“Daqui a poucos anos,
Que ímpio tempo para todos corre
Os dentes cairão, e os meus cabelos
Ah! Sentirei os danos,
Que evita só quem morre.”

No entanto, na mesma lira Dirceu quebra a angústia e restabelece o equilíbrio (imitilia truncat), já que sua velhice, apesar de penosa, possuirá a companhia de sua amada, que aliviará os problemas.

“Mas sempre passarei uma velhice
Muito menos penosa
Não trarei a muleta carregada
Descansarei o já vergado corpo
Na tua mão nevada.”

Em ambos os trechos citados a estrutura formal é a mesma, todavia esta se dá de maneira peculiar: no primeiro verso há 9 sílabas, no segundo ocorre redondilha maior, já o terceiro e quarto são decassílabos. No final dos dois trechos há alteração, enquanto no primeiro ocorre novamente a redondilha maior, o segundo é em decassílabo quebrado, E ainda na última estrofe da mesma lira, Dirceu se conforta ao pensar em sua morte, pois sabe que sua amada estará a chorar por ele. Ocorre na mesma a aproximação da sintaxe latina.

“Quem, sentida, chorando,
Meus baços olhos cerras.”

Logo abaixo vem um trecho (VIII, 1), que para maior compreensão é necessário algum conhecimento sobre mitologia.

“As Grandes Deusas do Céu Pelo amor de Endimião?
Sentem a seta tirana Todos amam: só Marília
Da rancorosa inclinação. Desta Lei da Natureza
Diana, com ser Diana Queria ter isenção?”
Não se abrasa, não suspira

Ora, quem é Diana? Quem é Endimião? Estas perguntas não são essenciais para o entendimento geral de lira, no entanto se não respondidas tornam-se lacunas incômodas. Assim Diana ou Ártenis parece ter sido a deusa da vida selvagem, virgem caçadora e vingativa, que castigava cruelmente todos que por indeterminados motivos a incomodavam. Endimião deve ter sido o homem, pelo qual a deusa tenha se apaixonado. Provavelmente, Dirceu tentou mostrar para Marília, que nem mesmo a Deusa mais severa consegue fugir do amor. (auxílio, MARQUES JUNIOR, Milton. O clássico em Marília de Dirceu). Agora analisemos o seguinte trecho da lira XIX:

“Enquanto pasta alegre o manso gado
Minha Marília, nos sentemos
À sombra deste cedro levantado
Um pouco meditemos
Na regular beleza,
Quem em tudo quanto vive nos descobre
A sábia Natureza.”

O fragmento anterior consegue passar certa tranqüilidade, ao término de sua leitura até um suspiro escapa. Isso não é casual, visto que um dos objetivos é transmitir o equilíbrio racional e também sentimental, e um dos recursos é a utilização do tema Locus amoenus, onde o lugar ameno, que no caso é encontrado na natureza (Fugere urbem), é responsável pela sensação de paz. Note que a natureza tanto no fragmento quanto ao longo das liras vai assumindo papel importantíssimo, e é ela que compõe os lugares onde a paz reina. Ressaltando ainda na passagem o Bucolismo, pois o ambiente campestre é lembrado, embora em outras partes com mais evidência.

Passando para outro ponto, a leitura de Marília de Dirceu, em certos momentos, é capaz de proporcionar a recriação de imagens relatadas, você parece ver o que a lira descreve. Esta característica realmente é muito admirável e remete idéia que “A pintura é uma poesia muda, e a poesia uma pintura falante”. Para Gonzaga, portanto, “poetar é pintar”. Ele faz isso muito bem, é bastante notável ainda a exposição dos valores culturais e morais, nessas “pinturas”. Mas para explicar melhor esta peculiar capacidade do poeta, vou apoiar-me em dados e em algumas conclusões retiradas do livro de Fernando Cristovão.

Segundo levantamentos feitos a partir da descrição que Dirceu fez de sua amada, selecionou-se traços físicos que apareciam com mais persistência. Assim o retrato feminino é fundamentalmente de meio – corpo, em que o que mais evidência é a cabeça (rosto – 51 ocorrências, olhos – 33 , cabelo – 21) e o peito (15). Notadamente os traços relativos às partes do corpo de natureza mais sensuais são apresentados em freqüência menor.

“Semelhante retrato traduz, pelo primado do rosto e do olhar, uma atitude espiritualista e contemplativa que faz do rosto, especialmente dos olhos, o espelho da alma, pois supõe que o espírito em tudo sobreleva ao corpo.” Já quando se fala na cor que caracteriza Marília, é o branco que tem predominância. Isso porque a associação à cor branca e também a elementos florais e preciosos que também a suportam (jasmim branco, lírios, cristal, marfim), põe em evidência um significado especial para o retrato: a pureza. “A predominância da cor branca tão intensa no rosto, espelho da alma, denuncia o seu estado interior e a sua situação: expectativa de mudança de condição para a donzela que o poeta elegeu para sua esposa e sinal inicáticio do feminino-mundo lunar, branco, frio e silencioso.” Segundo o estudo do mesmo autor, a idéia da simbologia é comprovada pelo “dicionário” da Arcádia Lusitana. Assim, o lírio lembra virgindade e a inocência, o jasmim, o cristal e a pérola apontam a sublimação dos instintos e a espiritualização da matéria. Seguem-se alguns trechos para exemplificação dos poemas-pinturas:

“Noto, gentil Marília, os teus cabelos,
E noto as faces de jasmins e rosas;
Noto os teus olhos belos,
Os brancos dentes e as feições mimosas.” (VI, 1)
“Na sua face mimosa, “Lisas faces cor de rosa
Marília, estão misturadas Brancos dentes, olhos belos
Piopurés folhas rosas, Lindos beiços encarnados,
Brancas folhas de jasmim Pescoço e peito nevado,
Dos Rubins mais preciosos Negros e finos cabelos.”
Os seus beiços são formados;
Os seus dentes delicados
São pedaços de marfim” (I, 2)

Porém, Gonzaga, embora episódico, consegue fugir do convencionalismo estérico-estático da mulher. Nesses raros momentos a personagem assume uma postura mais dinâmica, e apesar de bela e perfeita, ela surge mais natural e espontânea.

“Quando apareces “A porta abria
Na madrugada Inda esfregando
Mal embrulhada Os olhos belos
Na larga roupa Sem flor, nem fita
E desgrenhada Nem seus cabelos.
Sem fita ou flor Ah! Que assim mesmo
Ah! Que então brilha Sem compostura,
A natureza! E mais formosa
Então se mostra Quem a estrela d’alva
Tua beleza Que a fresca rosa!” (IX, 1)
Inda maior” (XVII, 1)

O juízo final da obra, pautada agora a partir de estudos concretos parece ter mudado em muitos pontos, se comparado à primeira impressão. É sabido, por exemplo, que mesmo utilizando ao longo das liras o mesmo tema, Gonzaga recorre a vários recursos: contando uma história (artifício narrativo), na insistência da mesma idéia através de vários argumentos (artifício persuasivo), fazendo um paralelismo com autores clássicos (artifício intertextual), poetizando pinturas (artifício estilístico). Portanto, o poeta demonstra sua incrível capacidade de compor.

Sobre o modelo feminino convencional, de fato ele se confirmou durante a pesquisa, todavia analisando a obra a partir de seu contexto compreende-se a adoção do ponto de vista de Gonzaga, que era um homem de seu tempo. Além disso, é impossível negar o talento do autor ao compor a figura de sua amada usando de recursos já citados neste trabalho. Entretanto ainda sustento uma crítica, melhor uma ressalva. Afinal é revoltante como este modelo feminino do século XVIII (e anteriores), seja ainda difundido no século XXI. E apesar de ter sofrido algumas mudanças e não fazer parte da boa literatura, ele ainda sobrevive no senso comum, afinal a mocinha da novela ainda tem que ser linda, meiga, pura, enfim a Marília moderna.
A superficialidade também entrou em processo de reformulação, pois em muitas liras o poeta chega a se expor, por isso muitos críticos acreditam em uma postura pré-romântica em Gonzaga. Sobre isso Antônio Candido tem uma colocação interessante: “A obra de Gonzaga é admirável graças a tal capacidade de extrair uma linha condutora dentre a variedade de afetos e estados d’alma. Deste modo ela é verdadeiramente sincera no plano artístico e, nas partes em que superou os modismos bastante corruptíveis do Rococó literário, admirável, geralmente superior às produções do Romantismo”.

E sobre o sentimento frustrante…seguem-se trechos da lira XXI, 1:

“Se estou, Marília, contigo,
Não tenho um leve cuidado;
Nem me lembra se são horas
De levar à fonte o gado.
Se vivo de ti distante,
Ao minuto, ao breve instante
Finge um dia o meu desgosto
Jamais pastora, te vejo
Que em teu semblante composto
Não veja graça maior.” (3a estrofe)

Nesta lira Dirceu confessa-se apaixonado, relata a angústia (1a estrofe), o ciúme (2a estrofe), o imenso prazer (3a estrofe), e a perturbação (4a estrofe) causados pelo amor, porém o efeito deste só é confirmado na última estrofe: “Ah! Que os efeitos que sinto/Só são efeitos de Amor!”, onde expõe seu sentimento através da construção de um final muito sensível e expressivo. Mas, mesmo lendo essa belíssima lira a frustração não se dissolve. Confesso que muitos equívocos foram cometidos por culpa de uma leitura pré-concebida, porém este tornou-se forte porque reconhecendo que a obra possui um cunho real, esperava que os “efeitos do Amor!” se refletissem na vida real de Gonzaga e Maria Dorotéia, mas as coisas não foram bem assim. Segundo o autor Cristovão, Gonzaga levado pelo pragmatismo de encarar a situação, ele iria ser degredado, o poeta não hesitou em jurar que nunca dera palavra de casamento a NINGUÉM, e no mesmo ano casou com D. Juliana de Souza, continuando brilhante carreira em Moçambique. Já Marília passou dez anos, prazo do degredo, esperando por seu Dirceu. Depois, ao completar-se o prazo foi a Portugal, pretendendo encontrar-se com Gonzaga. Foi quando soube que o seu amado havia se casado. Mas mesmo mergulhada na tristeza a bela Marília só foi morrer aos 85 anos, velha e só. Claro que esses dados históricos não comprometem a qualidade da obra, mas ainda sim reforçam minha frustração, que admito ser mais ideológica que literária.

Bem, espero ter feito um bom trabalho e assim ter cumprido meu compromisso. De minha parte, estou satisfeita por ter tido a oportunidade de conhecer melhor um importante momento histórico-literário brasileiro, assim formando uma opinião que foge do senso comum, que ora se baseia em divagações ufanistas, ora em julgamentos moralistas. Admito já os ter tido, porém, sem falsa modéstia, posso dizer que hoje possuo uma opinião concreta e coerente sobre o Arcadismo, Gonzaga e a figura de Marília.

Bibliografia

CRISTOVÃO, Fernando. Marília de Dirceu de Tomás Antônio Gonzaga, ou poesia como imitação e pintura. Rio de Janeiro: Nacional/Casa da moeda, 1981.

CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. São Paulo: Martins, 1959. Vol. 1.

GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, [198-].

MARQUES JUNIOR, Milton. O Clássico na Marília de Dirceu. João Pessoa: Idéia/CCHLA, 1994.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1979.