Adeus ao mundo – rumo à campa do lugar-comum

Dennis Radünz

Vamos. Adeus ó mãe, irmãos, e amigos!
Adeus, terra, adeus, mares, adeus, céus!…
Adeus: que vou viagem de finados!…
Adeus!… adeus!… adeus!

Violeiro de carnação mulata e um dos versejadores diletos dos salões da Salvador do século XIX, o fluminense Laurindo Rabelo teve um destino comum à maior parte dos poetas da segunda geração romântica: a vida boêmia e a morte prematura por tuberculose. De origem humílima, tornou-se um “trovador semipopular”, no dizer de Alfredo Bosi, talvez porque, em seu pertencimento ao gosto médio, não pudesse aprofundar demasiado na carne de seu verso o punhal do tédio, da fuga, do funéreo – temas esses tão presentes na poesia romântica brasileira de inspiração byroniana -, nem vestir, de todo, o traje de losangos do arlequinal trovador de rua.

Nesse território entre culturas, Laurindo José da Silva Rabelo (03/07/1826-28/09/1864) tem sido lido pela crítica como um poeta menor – se comparado às profundezas de seu contemporâneo Álvares de Azevedo, cuja narrativa sepulcral de “Noite na Taverna” resume e reinventa o imaginário de época -, em que pouco mais do que uma “obsessão floral”, na expressão de Antônio Cândido, o distingue da imensa massa informe do linguajar romântico eivado de lugares-comuns.

Ou seja, na poesia de Laurindo Rabelo prepondera, conforme Cândido, não “duro sarcasmo”, mas “devaneio balbuciante” e “lânguido quebranto” (in “Formação da Literatura Brasileira”, vol..2, p. 134), como evidencia o poema “Adeus ao Mundo”, objeto dessa breve análise. O notável crítico da literatura brasileira é ainda mais incisivo quando afirma que:

[Laurindo Rabelo] foi um poeta raso, de asas curtas, extrovertido e sincero, manifestando em versos fáceis, geralmente agradáveis, mesmo quando tristes, os sentimentos mais comuns do homem comum: melancolia, patriotismo, pundonor, amor fraterno, amor filial, amizade, gratidão. Tudo medido e singelo, numa forma em que o desejo de comunicar prima qualquer artesania; o seu verso é notação psicológica imediatamente registrada, com a facilidade dos bons improvisadores. (…) Nada de profundo nem muito belo: apenas sentimentos comuns, transmitidos com tal singeleza que parece desabafo espontâneo, manifestação dessa autenticidade que desperta ressonância no leitor e o faz irmanar-se ao estado de alma do poeta. Em Laurindo há sempre sinceridade a mais e estilização de menos, deixando-nos algo alheios a este remoer de penas. (op. cit., p. 145-146).

Na vertente crítica que evidencia sua filiação ao romantismo, a pesquisadora italiana Luciana Stegagno-Picchio observa que o primeiro livro de Laurindo Rabelo, “Trovas”, publicado na Bahia em 1853, introduz “a predileção por uma poesia dolorosa e elegíaca, sacudida, todavia, por imprevistas risadas fesceninas em composições satíricas e boêmias: o costumeiro contraponto obsceno e liberatório de todo bem sofrido stress romântico.” (in “História da Literatura Brasileira”, p. 209). Em outra direção, Alfredo Bosi sugere uma leitura das relações culturais entre “popular” e “culto” a partir da sua poesia (em que a cadência musical previsível e de extração popular é pontuada por alguns vocábulos esparsos do léxico romântico), como enfatiza: “Creio que sua obra pode ser uma das balizas para um estudo que a nossa cultura reclama: o das relações entre a linguagem do povo, da classe média e dos grupos de prestígio nos meios urbanos. Talvez nos surpreendam as águas que se misturam quando esperaríamos ver rígidas barreiras” (in “História Concisa da Literatura Brasileira”, p. 115).

“Adeus ao Mundo”, o poema

Do ponto de vista formal, o poema “Adeus ao Mundo”, de Laurindo Rabelo, alterna versos hexassílabos e decassílabos (este o metro mais presente em todo o texto), com rápidas interpolações de um ou outro tetrassílabo (como o verso “a morte é dura”, canto V) para enfatizar o tom melodramático dessa elegia de exílio e estertor. Não há constância no número de versos por estrofe e a ausência de um esquema de rimas propicia a aparição esporádica de diálogos, o que o aproxima ao gênero dramático.

Pois o encadeamento das estrofes de “Adeus ao mundo” evidencia, com clareza quase didática, o desvanecimento do “eu lírico”, do instante em que este perde o “leme do batel da vida” e vai se despedindo – ao avistar, próximo, “o porto da Eternidade” – de toda a “harmonia” do mundo sensível, até o ponto extremo em que, sabendo-se desterrado, não tem palavras com que evocar seu infortúnio exceto o patético e monocórdio “adeus”. Todo o texto, assim, “encena” a lenta despedida desse eu.

O mundo como lugar-comum

O mundo do qual Laurindo Rabelo se despede é inumano, porque despovoado, limitando-se a descrevê-lo e a situá-lo na sucessão de traços idílicos (não-vividos pelo próprio poeta) que apenas repisa uma série de topos da poesia romântica, sem acrescer a esse mundo nenhum ruído de desassossego ou estranhamento urbano. Ou seja, quando o poeta observa, no canto I,

Como é tão belo o sol! Quantas grinaldas
Não tem de mais a aurora!!
Como requinta o brilho a luz dos astros!
Como são recendentes os aromas
Que se exalam das flores! Que harmonia
Não se desfruta no cantar das aves,
No embater do mar, e das cascatas,
No sussurrar dos límpidos ribeiros,
Na natureza inteira, quando os olhos
Do moribundo, quase extintos, bebem
Seus últimos encantos!

está por descrever uma paisagem imaginária na qual se evadiria, caso a Providência o permitisse e suspendesse o seu destino inexorável na direção da “campa”. O lugar do qual despede-se, então, é um lugar não vivenciado, que se dedica a reproduzir numa torrente de lugares-comuns do Romantismo, para nos relatar o seu “perder o mundo”, como se ele, o mundo, não passasse de cenografia, numa natureza feita só de rotundas e de coxias, teatral, talvez pintada com a cor local dos salões da época. A confirmar essa minha leitura, no canto II, fenômenos naturais como “a noite, o dia, o inverno, o verão, a primavera, a aurora, a tarde, as nuvens, e as estrelas” interpretarão, nessa pantomima do adeus, o papel das hienas vingativas que “a rir-se passarão sobre os meus ossos!”

O exilado sem causa

O que “azeda os pálidos instantes” do eu lírico à véspera da morte – instantes esses “contados por gemidos” – é a sensação pungente de haver abandonado um mundo no qual se fixam seus laços de família, etnia, credo e classe, ainda que esse mundo possa ser inóspito, como Laurindo Rabelo enuncia em outro texto: “Este mundo é-me um deserto.” (poema “A minha Vida”). Por isso, o desterro, cuja causa jamais é aludida – sendo, talvez, consumação de outro lugar-comum do Romantismo: a fuga -, pesa mais sobre o eu lírico de “Adeus…” do que a própria morte, como afirma o canto II : “Minha dor é morrer longe da pátria,/Da mãe, e dos irmãos de que tanto adoro”.

Todo o poema, nesse sentido, abunda em referências aos amores filial e fraterno, sem nenhuma evocação da figura paterna, que não ocupa nenhum lugar entre os que estão “dentro de minh’alma!”, talvez porque o seu lugar na ascendência esteja ocupado pela imagem imponente da pátria – uma pátria, então, imperial -, ou seja, pela expressão do culto à pátria que é outro dos estilemas do Romantismo, isso para não dizer que é outro de seus lugares-comuns. Porque “longe da pátria é dupla a morte”, irmã e mãe são, assim, o salvo-conduto para deitar raízes imaginárias na terra-pater.

Embora deportado sem causa aparente, o eu lírico do texto não revela nenhuma inquietude de ordem social ou política, pois, como o mundo idílico do qual se despede se situa entre o lugar-comum e a utopia, não há indício do convívio em sociedade, de vícios e vicissitudes, exceto numa fugaz figura de mendigo, “a quem cedi pequena esmola”, surgida no canto III somente para introduzir a imagem lírica mais pronunciada do poema – é do mendigo que o exilado ganha “quatro sementes de saudade”, que depois germinam, depois “nadam sobre lágrimas” e, por último, são replantadas. Sementes de saudades das quais surgiu uma planta, a do afeto perdido, que “já crescida, terá brotado flor” (canto IV).

Comédia no sepulcro

Para explicitar a dissociação que sente, no canto III, o eu lírico parte (de onde? aonde vai-se?) e traz “da alma só metade”, para logo culminar na cena hilária digna do Grand-Guignol: “E o coração?… deixei-o num abraço” – no século seguinte, Vicente Celestino exacerbaria essa imagem do coração fora do peito, aliás comum nas narrativas de trolls do folclore norueguês, na canção insólita e talvez satírica “Coração Materno”. Mais burlesco é o efeito teatral que a imagem de sua recepção ao sepulcro suscita: “A campa vejo aberta, e lá do fundo/Um esqueleto em pé vejo a acenar-me…” (canto VI).

Tomado por lugares-comuns, Laurindo Rabelo raramente mantém suas metáforas no plano do concreto e do sensível, como o faz no versos “Desgraçado do mísero que expira/Longe dos seus, que molha a língua, seca/Pelo fogo da febre, em caldo estranho” (canto V), pois quase sempre está imerso no copioso, no retórico, no redundante, ou opta por perífrases como “o lenho do Senhor nas mãos maternas” para designar a cruz, quando a densidade daquele instante dramático, a extrema-unção, pede a crueza da palavra cruz, e não o a imagem impalpável do lenho do Senhor.

“Adeus ao Mundo” não tem a necessária concisão, erra na escolha do léxico, hesita em assumir a atmosfera dramática e é povoado por lugares-comuns, tudo isso para que nós, leitores, o sintamos como um esboço frágil, demasiado confidencial e direto, que não atinge o seu intento de ser uma elegia laudatória do amor à pátria e à família. Assim, o mundo de Laurindo, o violeiro dos salões de Salvador, não tem a mesma densidade das noites passadas na taverna de um Álvares de Azevedo:

“Sim, já não sou bela como há cinco anos! (…) É que a flor da beleza é como todas as flores. Alentai-as ao orvalho da virgindade, ao vento da pureza, e serão belas… Revolvei-as no lodo… e, como os frutos que caem e mergulham nas águas do mar, cobrem-se de um invólucro impuro e salobre! Outrora era Giorgia – a virgem: mas hoje é Giorgia – a prostituta! (in “Noite na Taverna, p. 71)

A obsessão floral de Laurindo Rabelo em “Adeus ao Mundo” germinou apenas “florezinhas de brinquedos”, não flores de lodo, fleurs du mal, com que o seu adeus de desterrado pudesse se aprofundar na véspera de chegar à Eternidade (a eternidade que no canto I era porto e, no canto V, torna-se embarcação…). Fenômenos naturais que escarnecem o eu lírico, o coração esquecido no abraço, um esqueleto ereto sobre a campa, quatro sementes de saudades, e tudo então se passa como um devaneio “raso, de asas curtas”, muito distante dos precipícios românticos de imagens torrenciais e tétricas.

Impermanência de Laurindo Rabelo

“Homens, que vedes-me a passar sombrio/pela estrada que vai da vida à morte!”, escreve Laurindo Rabelo no poema “O que sou e o que serei”. Não só do imaginário romântico, mas também da condição de saúde do poeta provém tal sentimento de transitoriedade e a “lembrança de morrer”, o memento mori. Pode-se dizer que “Adeus ao Mundo”, o poema, é também uma tentativa de comunicar a sensação de impermanência e provisoriedade do ser no mundo (é inspirador ler-se o Gregório de Matos de “À inconstância das cousas do mundo” tendo a sky-line de Nova York sem as torres gêmeas ao fundo), mas não o expressa exatamente pela tibieza de sua elaboração poética.

Assim, na única passagem que toca o conceptismo (aquela mesma em que o esqueleto o saúda sobre a lápide), Laurindo Rabelo vale-se de um jogo de inversão de imagens para afirmar que “quem sempre a morte achou no lar da vida/deve a vida encontrar no lar da morte”, versos que, é quase certo, despertariam o interesse de sua platéia dada à mediania no desfrute estético. Um truque de palavras que tiraria, mágico, uma surpresa do fundo da viola, para tudo logo voltar ao seu antigo estado de marasmo. Ou seja, estão sempre presentes “sinceridade a mais e estilização de menos”.

Laurindo Rabelo e “Adeus ao Mundo”, por tudo isso, inscrevem-se no imaginário de época, no qual, segundo Antônio Cândido, “pessimismo, humor negro, perversidade, de mãos dadas com ternura, singeleza, doçura, nestes poetas é o que devemos procurar. Considerados em bloco, formam um conjunto em que se manifestam as características mais peculiares do espírito romântico. Inclusive a atração pela morte, a autodestruição dos que não se sentem ajustados ao mundo. (op. cit., p. 134). Um campo no qual Laurindo Rabelo foi uma flor comum, sem nenhum traço de flor-de-lótus.

Estudá-lo, no entanto, pode lançar um outro olhar sobre as relações entre “povo, classe média e grupos de prestígio” do século XIX, como sugere Alfredo Bosi, e, nesse impulso, examinar o porquê de tantos desses lugares-comuns ainda germinarem no século XXI. Difícil seria conseguir conter na campa todos os esqueletos empertigados dessa poesia invertebrada.

APROXIMAÇÕES E REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Álvares de. Noite na Taverna. Rio de Janeiro/São Paulo: Ediouro/Publifolha, 1997.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 41 ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 6 ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.

NASCENTES, Antenor (org.). Poesias Completas [de Laurindo Rabelo]. Rio de Janeiro, 1963.

RABELO, Laurindo. Poemas. Florianópolis: Núcleo de Pesquisas em Informática, Língua e Literatura/UFSC.

STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da Literatura Brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.

 


 

ADEUS AO MUNDO 
Laurindo Rabelo

I

Já do batel da vida
Sinto tomar-me o leme a mão da morte:
E perto avisto o pôrto
Imenso nebuloso, e sempre noite,
Chamado – Eternidade!
Como é tão belo o sol! Quantas grinaldas
Não tem de mais a aurora!!
Como requinta o brilho a luz dos astros!
Como são recendentes os aromas
Que se exalam das flores! Que harmonia
Não se desfruta no cantar das aves,
No embater do mar, e das cascatas,
No sussurrar dos límpidos ribeiros,
Na natureza inteira, quando os olhos
Do moribundo, quase extintos, bebem
Seus últimos encantos!

II

Quando eu guardava, ao menos na esperança,
Para o dia seguinte o sol de um dia,
De uma noite o luar para outras noites;
Quando durar contava mais que um prado,
Mais que o mar, que a cascata erguer meu canto,
E murmurá-lo num jardim de amores;
Quando julgava a natureza minha,
Desdenhava os seus dons: ei-la vingada:
Cedo de vermes rojarei ludíbrio,
E vida alardearão fracos arbustos
Sôbre meu lar de morto! A noite, o dia,
O inverno, o verão, a primavera,
A aurora, a tarde, as nuvens, e as estrêlas,
A rir-se passarão sôbre meus ossos!
Não importa: não é perder o mundo
O que me azeda os pálidos instantes
Que conto por gemidos. Meu tormento,
Minha dor, é morrer longe da pátria,
Da mãe, e dos irmãos que tanto adoro.

III

Quando da pátria me ausentei, não tinha
Nada que lhes deixar, que lhes dissesse
O que eram eles dentro de minh’alma.
Mendigo, a quem cedi pequena esmola,
Deu-me quatro sementes de saudades;
Ao meu jardim doméstico levei-as,
Cavei, reguei a terra com meu pranto,
E plantei as saudades. Soluçando
Chamei ali os meus: “Aqui vos deixo
(Disse apontando à plantação) “em flores
“Minh’alma toda inteira; aqui vos deixo
“Um tesouro enterrado. Jóias, oiro,
“Riquezas, não, não tem, porém na terra
Estéril não será.” Ondas de pranto
Afogaram-me a voz: houve silêncio;
Palpei de novo o chão; vi que de novo
Cavado estava! A terra se afundara,
E as sementes nadavam sobre lágrimas,
Que minha mãe e minha irmã choravam…
Replantei-as, orei, beijei a terra,
E parti… Trouxe d’alma só metade;
E o coração?… deixei-o num abraço.

IV

Certo estou de que a planta, já crescida,
Terá brotado flor. Se ao menos dado
Me fosse colher uma… ver a terra
Pelo pranto dos meus santificada!
Se uma dessas saudades enfeitar-me
Viesse a minha essa, ou meu sudário,
Ou, pela mão materna transplantada,
Encravar-me as raízes no sepulcro…
É tão pouco, meu Deus!!… Eu não vos peço
Soberbo mausoléu, estátua augusta
De túmulo de rei. Assaz desprezo
Esses gigantes de oiro
Com entranhas de pó. Mortalha escassa
De grosseiro burel, que bordem lágrimas;
Terra só quanto baste p’ra um cadáver,
E as minhas saudades, e entre elas
Uma cruz com os braços bem abertos,
Que peça a todos preces. Terra, terra
Perto dos meus e no terrão da pátria,
É só quanto suplico.

V

A morte é dura,
Porém longe da pátria é dupla a morte.
Desgraçado do mísero, que expira
Longe dos seus, que molha a língua, seca
Pelo fogo da febre, em caldo estranho;
Que vigílias de amor não tem consigo,
Nem palavras amigas que lhe adocem
O tédio dos remédios, nem um seio,
Um seio palpitante de cuidados
Onde descanse a lânguida cabeça!
Feliz, feliz aquele, a quem não cercam
Nesse momento acerbo indiferentes
Olhos sem pranto; que na mão gelada
Sente a macia destra d’amizade
Num aperto de dor prender-lhe a vida!
Feliz o que no arfar da ânsia extrema
De desvelada irmã piedoso lenço,
Úmido de saudades vem limpar-lhe
As frias bagas dos finais suores!
Feliz o que repete a extrema prece,
Ensinada por ela, e beijar pode
O lenho do Senhor nas mãos maternas!
Desgraçado de mim!… Talvez bem cedo
Longe de mãe, de irmãos, longe da pátria
Tenha de me finar… Ramo perdido
Do tronco que o gerou, e arremessado
Por mão de Gênio mau à plaga alheia,
Mirrarei esquecido! Os céus o querem,
Os Céus são imutáveis: aos decretos
Do Senhor curvarei a fronte humilde,
Como cristão que sou. Eternidade,
Recebe-me a teu bordo!… Adeus, ó mundo!

VI

Já sinto da geada dos sepulcros
O pavoroso frio enregelar-me…
A campa vejo aberta, e lá do fundo
Um esqueleto em pé vejo a acenar-me…
Entremos. Deve haver nestes lugares
Mudança grave na mundana sorte;
Quem sempre a morte achou no lar da vida
Deve a vida encontrar no lar da morte.
Vamos. Adeus, ó mãe, irmãos, e amigos!
Adeus, terra, adeus, mares, adeus, céus!…
Adeus, que vou viagem de finados…
Adeus… adeus… adeus!
Adeus, ó sol que, amigo iluminaste
Meu pobre berço com os raios teus…
Ilumina-me agora a sepultura: –
Adeus, meu sol, adeus!
Florezinhas, que quando era menino
Tanto servistes aos brinquedos meus,
Vegetai, vegetai-me sobre a campa: –
Adeus, flores, adeus!
Vós, cujo canto tanto me encantava,
Da madrugada alígeros orfeus,
Uma nênia cantai-me ao pôr da tarde:
Passarinhos, adeus!
Vamos. Adeus ó mãe, irmãos, e amigos!
Adeus, terra, adeus, mares, adeus, céus!…
Adeus: que vou viagem de finados!…
Adeus!… adeus!… adeus!