Guilherme de Almeida e João Cabral: distanciamentos e aproximações na construção poética

Sabrina Casagrande

Discussões em torno do eu-lírico e da representação da realidade são comuns quando nos referimos à construção poética. No romantismo, por exemplo, o eu-lírico era marcadamente representado por uma voz que deixava no poema a marca de uma pretensa representação de seus dramas individuais e/ou de uma realidade social. A Canção do Exílio nos deixa isso bastante claro.

A partir do final do século XIX, essas características vão deixando de ser marca da produção poética, que passa a se caracterizar por um afastamento da realidade. Donaldo Schüler se referiu ao distanciamento em relação à realidade ambiental como “uma das características da poesia das últimas décadas [do século XIX] que a distingue da poesia do passado.” (Schüler, 1970: 46). Além disso, o eu-lírico deixa de se manifestar apenas em um “eu” humano e passa a se manifestar em outras instâncias, deixando de refletir somente imagens em que o ser humano é centro irradiador, para descrever paisagens e objetos de que a pessoa humana está descartada. Porém, a humanização não deixa de existir, ela passa das pessoas para objetos, instituídos pelas palavras, que são dotados de características humanas. O que há, então, é uma realidade sendo construída por meio das palavras do poema, sem uma referência direta ao “mundo exterior”, uma realidade quase sufocada pelo poema – que dialoga com uma realidade, mas não lhe é espelho. Os objetos ganham animação – são-lhes atribuídos sentidos humanos – e, dessa maneira, manifestam-se no lugar do eu-lírico. Pode-se observar isso em poemas como O Rio, de João Cabral de Melo Neto e Rua de Guilherme de Almeida. No primeiro, o rio é dotado de visão – e tem “consciência” disso ao dizer: “pois, também como gente,/não consigo me lembrar/ dessas primeiras léguas/ de meu caminhar”. Ele vai contando tudo que se passa e que ele vê no decorrer de seu curso e, além disso, vai travando uma conversa com seu possível interlocutor:

(…)
Eu já nasci descendo
a serra que se diz do Jacarará,
entre caraibeiras
de que só sei por ouvir contar
(pois, também como gente,
não consigo me lembrar
dessas primeiras léguas
de meu caminhar).

Desde tudo me lembro,
lembro-me bem de que baixava
entre terras de sede
que de margens me vigiavam.
Rio menino, eu temia
Aquela grande sede de palha,
Grande sede sem fundo
Que águas meninas cobiçava. (O Rio)

Já no segundo, mostra-se a imagem da rua moderna, conseqüência de uma urbanização em pleno vapor que vai “devorando” o ser que nela transita:

A rua mastiga
os homens: mandíbulas
de asfalto, argamassa,
cimento, pedra e aço.

A rua deglute
os homens e nutre
com eles seu sôfrego,
omnívoro esôfago.

A rua digere
os homens: mistério
dos seus subterrâneos
com cabos e canos.

A rua dejecta
os homens: o poeta,
o agiota, o larápio,
o bêbedo e o sábio.

O que se pode notar nestes dois casos é que, principalmente em Rua, há a construção de uma linguagem que se propõe a colocar em discussão o papel fragmentado do cidadão na sociedade moderna, na qual já estão vindo à tona os movimentos que buscam questionar o papel reificado e mecanizado do ser humano nesta sociedade. Dessa forma, dar sentidos humanos a algo que não é humano seria uma extensão da “troca de papéis” comum na sociedade moderna – máquinas tomam lugar de homens e homens se comportam como máquinas. Além disso, para satisfazer o desejo expresso por Menotti del Picchia em sua Conferência de 15 de fevereiro de 1922, está se afastando da poesia “o último deus homérico, que ficou, anacronicamente, a dormir e sonhar, na era do jazz-band e do cinema, com a flauta dos pastores da Arcádia e os seios divinos de Helena.” (Menotti, 1922 apud Teles, 1978: 229).

Assim, o Modernismo representou um novo momento cultural e social que se ligava diretamente a esse novo modo fragmentado e reificado de encarar o mundo, além de abarcar os acontecimentos sócio-econômicos e políticos em ocorrência no país – a Revolução Constitucionalista de 1932, que teve a participação de Guilherme de Almeida, foi um deles. É relevante notar que isso também está ligado às idéias que Apollinaire expressou em seu ensaio O espírito novo e os poetas, em que diz serem os poetas a “expressão de um meio, de uma nação” e, por conseqüência, estão inseridos num tempo determinado. Assim, “(…) das diferenças étnicas e nacionais nasce a variedade das expressões literárias, e é esta mesma variedade que é preciso salvaguardar.” (Apollinaire, 1956 apud Teles, 1978, 152).

Transferindo essa idéia para o modernismo brasileiro, podemos entender a multiplicidade de tendências expressas por uma gama de escritores que se distribuem em momentos e lugares diversos. Esses escritores e suas tendências tiveram como ponto de encontro e/ou partida a Semana de Arte Moderna de 1922, que Bosi (1974: 383) define desta maneira:

A Semana foi, ao mesmo tempo, o ponto de encontro de várias tendências modernas que desde a I Guerra se vinham firmando em São Paulo e no Rio, e a plataforma que permitiu a consolidação de grupos a publicação de livros, revistas e manifestos, numa palavra, o seu desdobrar-se em viva realidade cultural.

O eixo Rio – São Paulo estava em urbanização e industrialização crescentes. Seus intelectuais estavam atualizados com as idéias desenvolvidas na Europa e a par das vanguardas européias e em que estas poderiam influenciar uma literatura que se propunha a apresentar um código novo. Por outro lado, realidades que não estavam em consonância com esse eixo não apresentavam as mesmas características. Bosi sinaliza que os conflitos no Brasil se deram em momentos diferentes e em lugares diferentes. Desse modo, enquanto em São Paulo os movimentos operários lutavam contra uma situação incômoda provocada por uma cidade que movia suas engrenagens industriais, no Nordeste brasileiro, um núcleo de jagunços – Canudos – havia sido recentemente exterminado, mostrando a situação ainda arcaica e marginalizada em que se apresentava tal região. Tomando as idéias de João Alexandre Barbosa (1974), diz-se que existem novos modos de se codificar a realidade. A cada momento se constrói (ou se tenta construir) um novo código que, levando em conta o que lhe é anterior, procura avançar. Esse código está relacionado com a linguagem do momento cultural a que se refere. Dessa forma, pode-se entender as diferenças entre as produções poéticas ligadas ao eixo Rio-São Paulo e as demais regiões pelas diferenças cultural, temporal e até sócio-econômica existentes entre essas duas grandes realidades. É nesse sentido que podemos comparar dois de nossos poetas modernistas – Guilherme de Almeida e João Cabral de Melo Neto – observando-se o momento e o espaço em que escreveram e atuaram na literatura brasileira.

Pretendo aqui fazer uma leitura de Guilherme de Almeida e João Cabral de Melo Neto, percebendo os distanciamentos e aproximações possíveis entre eles. Optei por observar a obra de Guilherme de Almeida (não em sua totalidade) em comparação com a produção poética cabralina pós 1950, mais especificamente com O Cão sem Plumas (1950), O Rio (1953), Morte e Vida Severina (1956) e Dois Parlamentos (1960). O objetivo é mostrar que a leitura de Guilherme de Almeida tende a enfocar mais as construções dos poemas, que possuem uma notável ligação com a versificação tradicional. Ao contrário do poeta paulista, a leitura de João Cabral se envolve com componentes e imagens que nos remetem a uma possível realidade identificada com o cotidiano do povo nordestino e permite, dessa forma, uma leitura que relegue a segundo plano as construções rítmicas e métricas do poema – apesar de estas serem tão recorrentes quanto em Guilherme de Almeida.

Utilizarei aqui a metáfora de um “muro” para estabelecer uma relação entre os dois poetas. Guilherme de Almeida e João Cabral estão no mesmo lado e, ao mesmo tempo, em lados diferentes desse “muro”. Estão no mesmo lado no sentido de utilizarem ferramentas formais para a construção do poema. A recorrência desse aspecto pode ser observada quando comparamos poemas como Rua das Rimas de Guilherme de Almeida – que está publicado no livro Meu, de 1925 – e Morte e Vida Severina de João Cabral. Naquele podemos perceber que a rima sozinha já é capaz de imprimir ao poema ritmo e musicalidade, tão fortes que até podemos abstrair os outros elementos:

A rua que eu imagino, desde menino, para o meu destino pequenino
é uma rua de poeta, reta, quieta, discreta
Direita, estreita, bem feita, perfeita,
Com pregões matinais de jornais, aventais nos portais, animais e varais nos quintais;
(…)
A rua que eu imagino, desde menino, para o meu destino pequenino
é uma rua qualquer onde desfolha um malmequer uma mulher que bem me quer
é uma rua, como todas as ruas, com suas duas caçadas nuas,
correndo paralelamente com a sorte diferente de toda a gente, para a frente,
para o infinito; mas uma rua que tem escrito um
Nome bonito, bendito que sempre repito
e que rima com mocidade, liberdade, tranqüilidade:
RUA DA FELICIDADE…

Da mesma maneira, no poema cabralino podemos perceber o jogo com a palavra, através das rimas do poema. Neste trecho, temos redondilhas maiores e todos os versos pares possuem rima consoante:

O meu nome é Severino,
não tenho outro de pai
Como há muitos Severinos,
que é santo de Romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias
Mas isso ainda é pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.

Não se pode esquecer que Morte e Vida Severina possui uma linguagem mais simplificada em relação aos demais poemas de João Cabral. Sua nomeação como Auto de Natal Pernambucano remete a obra ao gênero teatral o que poderia explicar tal simplicidade. Talvez por isso ele se permitiu utilizar a rima consoante – pela qual nutria, antes, um certo “asco”. Ele mesmo disse: “Foi a coisa mais relaxada que escrevi.”[1] (Secchin, 1985: 304).

De outro lado, a produção poética de Guilherme de Almeida reflete, segundo Lêdo Ivo, sua formação humanística. Ele estava ligado a poesias tradicionais como a greco-romana, a dos parnasianos e simbolistas franceses, a dos clássicos portugueses e brasileiros e, assim, era levado “à submissão e respeito às regras do jogo vetusto, à obediência às normas apreendidas, a fim de, com elas e através delas, poder fincar o seu modelo de expressão poética.”[2] (Almeida, 1972: XXXIII). Esse modelo de expressão poética está presente em poemas como Coração. Apresentando um certo cuidado com os jogos métricos e rítmicos, ele é composto de cinco estrofes de quatro versos cada, em que todos possuem sete sílabas e rimas alternadas e consoantes, o que imprimi ritmo especial ao poema:

Lembrança, quanta lembrança
Dos tempos que já lá vão!
Minha vida de criança,
Minha bolha de sabão!

Como vais, como te apartas,
E que sozinho que estou!
Ó meu castelo de cartas,
Quem foi que te derrubou?

Tudo muda, tudo passa
Neste mundo de ilusão;
Vai para o céu a fumaça,
Fica na terra o carvão.

Mas sempre, sem que te iludas,
Cantando no mesmo tom,
Só tu, coração, não mudas,
Porque és puro e porque és bom!

O que este e outros poemas mostram é que Guilherme de Almeida ainda está um pouco atrelado, propositalmente – segundo ele -, a códigos anteriores, isto é, a f(ô)rmas e a f(ó)rmas do Parnasianismo e à musicalidade do Simbolismo. Digo propositalmente porque, por exemplo, ele mesmo define O Herói, poema de Suave Colheita, como sendo versos pseudoparnasianos, “pois têm a correção gramatical e métrica e a precisão vocabular exigidas pelo Parnasianismo” [3] (ALMEIDA, 1982: 49). No Excerto abaixo, podemos observar claramente tais aspectos, todos os versos possuem doze sílabas, e as rimas consoantes estão dispostas de maneira alternada:

Fulvo herói medieval, cavaleiro do sonho,
No heráldico fulgor da couraça e da glória
E ao épico trotar do meu corcel, transponho
A vaga Palestina inóspita e ilusória
 (grifo meu)

Há nesse poema de Guilherme de Almeida, assim como em outros, o que Lêdo Ivo, no mesmo prefácio ao livro Raça, chamou de “um núcleo de reflexão e madureza que o levava a imprimir nos resultados estéticos as marcas de seu caminho existencial.”

Assim, sua produção poética destoa da produção poética dos seus companheiros da Semana de 1922 também no tocante à forma. Essa diferença é indicativa de um inconformismo diante de um “novo sistema poético” que corria o risco de se deteriorar ou envelhecer. Logo, a opção pelo diálogo com a versificação tradicional se mostra como a melhor saída para que sua arte não seja efêmera e, além disso, para que seja uma arte que esteja sempre a imaginar e ser imaginada e nunca a se ver e mostrar realmente, pois se a arte dissesse tudo, exatamente como a realidade, ela não existiria. Algo semelhante é dito dos ateus por Guilherme de Almeida em seu prefácio ao livro Narciso. Para ele, os ateus são pessoas que já viram Deus, e por isso não acreditam nele.

Já em João Cabral, a forma é conseqüência de uma atitude individual. A recorrência da rima toante, principalmente a partir do poema O Rio, é explicada pelo próprio João Cabral como sendo uma dificuldade que ele precisa para se impor, já que “a rima é algo necessário” e a ausência da rima inibe sua expressão. E ele completa: “não uso a [rima] consoante porque, na adolescência, tinha asco da poesia por associá-la à melodiosidade tipo parnasiana dessa rima.”[4]. (Secchin, 1985: 304). Em O Rio, todos os versos ímpares possuem seis sílabas e os pares números diferentes, e isto tem como objetivo dar ritmo ao poema. Observe estes trechos:

Sempre pensara em ir
Caminho do mar.
Para os bichos e os rios
Nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
Têm de homem do mar;
Sei que se sente o mesmo
E exigente chamar.
(…)
Desde tudo que lembro
lembro-me bem de que baixava
entre terras de sede
que das margens me vigiavam.
Rio menino, eu temia
aquela grande sede de palha,
grande sede sem fundo
que águas meninas cobiçava.
Por isso é que ao descer
caminho de pedras eu buscava,
que não leito de areia
com suas bocas multiplicadas.
Leito de pedra abaixo

rio menino eu saltava
saltei até encontrar
as terras fêmeas da Mata.

Para a construção rítmica desse poema, o poeta se baseou numa espécie de verso espanhol chamado de arte maior, no qual a primeira parte é variável e a segunda é fixa. Porém, em O Rio ele fez exatamente o contrário.

Assim, se ambos, como todos os poetas, se utilizam do trabalho com a palavra, lançando mão de aparatos formais para a produção poética, onde se fundam as diferenças nas leituras dos dois? Minha hipótese aqui é de que, mesmo João Cabral sendo nomeado o “engenheiro da palavra”, seus versos exprimem um conteúdo social – com especial presença humana – que se liga a uma realidade que é claramente a realidade nordestina, demonstrando “a atitude interessada diante da vida contemporânea” de que fala Mário de Andrade – na sua conferência Movimento Modernista, de 1942 -. Não que essa expressão de conteúdos sociais e humanos possa ser totalmente excluído da obra de Guilherme de Almeida, mas esse, realmente, não parecia ser seu objetivo. Não estou querendo com isso dizer que há, em João Cabral, uma “colagem” direta da realidade para a palavra poética, mas sim uma certa identificação dessa realidade construída por palavras, com algo que é familiar ao leitor – o Nordeste, periferia (atrasada) em relação ao centro receptor e irradiador das idéias, o eixo Rio – São Paulo. Esse aspecto também pode ser notado na prosa de Graciliano Ramos, especialmente em Vidas Secas, romance que nos mostra imagens incrivelmente ásperas, que registram a vida bastante dura da gente do mesmo nordeste trazido pelos olhos do retirante e do rio.

Desse modo, em relação à atitude de interesse diante da situação social, Guilherme de Almeida e João Cabral de Melo Neto estão em lados opostos. Guilherme, na maioria de seus poemas, imprime imagens/cenas que não objetivam a caracterização de um conteúdo social. Como em Mormaço, poema de Meu:

Calor. E as ventarolas das palmeiras
E os leques das bananeiras
Abanam devagar
Inutilmente na luz perpendicular.
Todas as coisas são mais reais, são mais humanas:
Não há borboletas azuis nem rolas líricas.
Apenas as taturanas
Escorrem quase líquidas
Na relva que estala como o esmalte.
E longe uma última romântica
– uma araponga metálica – bate
o bico de bronze na atmosfera timpânica

Ainda que em Raça, Guilherme faça uma descrição de uma origem e costumes do povo brasileiro, há “carência do protesto e do inconformismo”:

Atento às grandezas e não às misérias, às pletoras e não às carências, às cumulações e não às injustiças, Guilherme de Almeida não enxerga, no chão da sua e da nossa terra, a sombra da miséria social e econômica e a evidência das hierarquias desumanizadoras. E não se pode censurá-lo por isso, pois nessa notável alienação seu universo poético se junca das belezas e invenções mais sedutoras, duráveis e convincentes – e também dos artifícios mais efêmeros e ocasionais, já que em toda a sua obra as jóias mais fulgentes e legítimas se misturam ao brilho das miçangas.[5] (Almeida, 1972: XXXIV)

Não tenho a intenção de destituir a poesia de Guilherme de Almeida de preocupações sociais, apenas trago a discussão à tona para reforçar a diferença de leitura e percepção das imagens em relação à obra de João Cabral, isso até mesmo em poemas posteriores de Guilherme. Essa característica é mais uma vez explicada pela sua idéia de arte trazida no prefácio de Narciso: “se a natureza fosse bela, a arte não teria razão de ser.” (Almeida, 1925: 11)

Por outro lado, João Cabral, na sua produção que começa com O Cão sem Plumas, traz para os seus poemas o questionamento da vida dura, sempre perseguida pela morte, daqueles que estão sob o Sol do Sertão Nordestino. A explicação para a mudança ocorrida a partir de 1950 na poesia cabralina está no fato biográfico de que João Cabral teria se chocado diante de uma estatística publicada em O Observador econômico e financeiro. Nesta, ele soube que a expectativa de vida no Recife – sua cidade natal – era de 28 anos, enquanto que na Índia era de 29. Ele mesmo diz que “nunca tinha suposto algo parecido”. Do mesmo modo, as palavras de Lauro Escorel são explicativas em relação ao fato: “o episódio biográfico, que terá mobilizado a sensibilidade do poeta para a realidade da miséria nordestina se reveste, sem dúvida, de inegável importância na medida em que a consciência não atua em abstrato ou no vazio, mas se nutre de tudo o que tece a experiência do ser humano.” (Escorel, 1973: 50). Não podemos deixar de notar que esta preocupação social é, além disso, marca, segundo Luciana Stegagno Picchio (1977: 521), de um “reposicionamento ideológico e do novo compromisso político e social, que substitui a euforia pan-estética do Modernismo inicial” por qual passou a estética modernista entre 1930 e 1945. A temática social referente ao Nordeste pode claramente ser vista nos poemas O Cão sem Plumas (1950), O Rio (1953), Morte e Vida Severina (1956) e Dois Parlamentos (1961). Nos três primeiros temos a narração de uma viagem feita por olhos, que, se não são humanos, fazem-se parecer humanos. O rio de O Cão sem Plumas e de O Rio é tão retirante quanto Severino daquele Auto de Natal Pernambucano. Neste e em Dois Parlamentos, a temática central é a morte e todas as provações por qual ela passa e como ele se finaliza num espaço de tão escassos meios, sendo que, neste espaço, a morte passa a ser um descanso, uma recompensa a quem tanto lutou em vida. Observe-se a estrofe quinze de Dois Parlamentos:

– Nestes cemitérios gerais
os mortos não mostram surpresa
– A morte para eles
Foi coisa rotineira.
– Nenhum tem o ar de ter morrido
em instantâneo ou guilhotina.
– Porém de um sono lento
que adorme, não fulmina.
– Em nenhum deles há as posturas
desses que morrem sob protesto.
– É sempre a mesma pose
sem nenhum grito, gesto.
– Entre eles gestos de eloqüência
não se vêem nunca, quando a morte.
– Todos morrem em prosa,
como foram, ou dormem

Esse é o fim glorioso daqueles que lutaram com realidades como as registradas pelo retirante Severino e pelo rio de O Cão sem Plumas e O Rio. Assim, Como o rio/ aqueles homens/ são como cães sem plumas/ (um cão sem plumas/ é mais/ que um cão saqueado;/ é mais/ que um cão assassinado. (Melo Neto, 1979: 165)

Em suma, os momentos e lugares em que estavam João Cabral e Guilherme de Almeida definiram as suas escolhas estéticas dentro do Modernismo Brasileiro, movimento já identificado por sua multiplicidade de tendências. Naquele, o modelo humano – no recorte de leitura proposto – prevalece como a imagem mais recorrente, sendo que há uma transparência discursiva marcante neste segundo momento de sua obra. Em João Cabral, “o real se representa mais enquanto evento do que enquanto sistema.” (Secchin, 1985: 117) . Já nesse, até por estar engajado a uma literatura mais urbana e, por isso, identificador do caos da cidade, a poesia se mostrou mais paisagística no sentido de catalogar, por exemplo, imagens comuns desse ambiente – como as já mencionadas no poema Rua, citado no início deste ensaio. Ou ainda, de trazer imagens que lembrem um lirismo presente em estéticas anteriores, como o poema Coração, em que há uma melancolia e um saudosismo característico do movimento romântico. Ler estes dois poetas significa, acima de tudo, estar ciente do lugar social que eles ocupavam, o que é notável pelo momento cultural diverso em que os dois atuaram e atentar para o fato de terem trabalhado a linguagem poética de maneiras diferentes – apesar das aproximações que pudemos fazer em relação à forma.

Referências

ALMEIDA, Guilherme (1972). Raça. Pref. de Ledo Ivo. 2.ed. Rio de Janeiro, José Olympio.

______ (1925). Narciso: A flor que foi um homem. (Prefácio). São Paulo Flama.

______ (1982). Seleção de textos, notas, estudo biográfico, histórico e crítico e exercícios: Frederico Ozanam Pessoa de Barros. São Paulo, Abril Cultural.

BARBOSA, João Alexandre (1974). A Metáfora Crítica. São Paulo, Perspectiva.

BOSI, Alfredo (1974). História Concisa da Literatura Brasileira. 2.ed. São Paulo, Cultrix.

ESCOREL, Lauro (1973). A Pedra e o Rio: uma interpretação da poesia de João Cabral de Melo Neto. São Paulo, Duas Cidades.

FRIEDRICH, Hugo (1991). Estrutura da Lírica Moderna. Da metade do século XIX a meados do século XX. São Paulo, Duas Cidades.

NETO, João Cabral de Melo (1979). Antologia Poética.5.ed. Rio de Janeiro, José Olympio.

______ (2000). Morte e Vida Severina e Outros Poemas para Vozes. 4.ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.

PICCHIO, Luciana Stegagno (1997. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro, Nova Aguilar.

SCHÜLER, Donaldo. As raízes da poesia moderna. In: CHAVES, Flávio Loureiro et al. Aspectos do Modernismo Brasileiro. Porto Alegre: EDUFRGS, 1970.

SECCHIN, Antônio Carlos (1985). João Cabral: A poesia do menos. São Paulo, Duas Cidades; Brasília, INL, Fundação Nacional Pró-Memória.

TELES, Gilberto de Mendonça (1978). Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. 5. ed. Petrópolis, Vozes.

 

[1] Entrevista de João Cabral.

[2] Prefácio de Lêdo Ivo ao livro Raça.

[3] Nota atribuída ao poema pelo próprio Guilherme de Almeida.

[4] Entrevista de João Cabral.

[5] Prefácio de Lêdo Ivo ao livro Raça.