A verdade e o erro

Euclides da Cunha

A verdade e o erro

Euclides da Cunha

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Studia, ano 1, nº 1, dezembro de 1950, p. 180-183.
Correio Popular, 2º Caderno – Artes e Letras, p. 9-15, Campinas, 30/11/1952.

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PROVA ESCRITA DO DR. EUCLIDES DA CUNHA
PONTO Nº 3
A VERDADE E O ERRO

Sabe-se como os lógicos tradicionalistas, que ainda existem, obedientes à influência aristotélica, ligeiramente modificada pela elaboração mais perturbadora do que fecunda de HAMILTON e de MANSEL, caracterizam o domínio da lógica que para eles é a única lógica, a Lógica Formal. Dizem: é a ciência das leis formais do pensamento. Quer dizer a lógica no analisar os conceitos repartindo-os nos seus atributos essenciais, no organizar os juízos ligando os conceitos e no desdobrar os juízos na tríade silogística ou nos longos encadeamentos dedutivos — digo encadeamentos do raciocínio dedutivo em todas estas operações se desliga da realidade. Nada tem com a gênesis desses elementos que são os seus elementos dominantes. Aceita-os formados e não inquire se são verdadeiros. O seu objetivo único é saber se eles são legítimos, rigorosamente submetidos aos princípios universais da identidade, da contradição e da exclusão do meio. Dado o conceito, o juízo e o raciocínio, a missão do lógico não é saber se o primeiro se constituiu não obediente a uma consulta lúcida das coisas, se o segundo traduz um conhecimento real ou científico, se o terceiro é o molde infrangível da verdade. A sua missão é mui outra: é saber se o conceito que lhe apresentam, e que ele não viu nascer, encerra ou não encerra alguma contradição intrínseca, em uma palavra, se é legítimo: se o juízo é analítico ou sintético, já exprimindo apenas o desdobramento de uma noção nos atributos que lhe são inerentes, já refletindo uma conquista real do pensamento sobre o mundo: e feita a distinção, o lógico tradicionalista considera “legítimo” o primeiro e francamente ilegítimo o segundo. Porque é somente mercê do mecanismo simplicíssimo em que os primeiros se desarticulam, segundo os critérios inversos da extensão e da compreensão dos termos, que ele poderá desdobrar as cadeias silogísticas adstritas a uma condição única, primordial e necessária, a condição de serem “conseqüentes” não importe que as premissas sejam flagrantemente erradas: a conclusão será legítima desde que se não violem as regras atinentes exclusivamente à forma, e não à matéria do conhecimento. Não precisamos exemplificar, o que seria facílimo. É evidente que nesse remontar exageradamente a realidade a Lógica Formal só se vincula à verdade por intermédio de laços muito frágeis, ou através de uma influência de todo em todo negativa — limitando-se, por exemplo, a negar a possibilidade de realizar-se ou de traduzir uma existência inegável aos conceitos ou juízos contraditórios. Foi à luz desse critério que LEIBNIZ, mau grado a sua profunda religiosidade, negou a possibilidade de Deus e que ZENON negou a possibilidade do movimento engendrando há dois mil anos um sofisma indestrutível ante o qual embalde se debateram os espíritos privilegiados de ARISTÓTELES, DESCARTES e D’ALEMBERT.

Mas reduzindo-se, deste modo, a ser “a ciência do possível”, a lógica formal ladeia, visivelmente o problema da Verdade. Em um lance único ela aparentemente o encerra — na teoria geral da demonstração, definida, em uma concisão admirável, por ARISTÓTELES, como sendo o silogismo do necessário. Quer dizer: aos princípios universais e ao princípio máximo do de omni et de nullo e regras que se derivam dele, o lógico tradicionalista aceita pela primeira vez a condição da realidade. Mas ainda nesse descer do céu à terra, tomando pé entre os fatos, observa-se que même en marchant elle a des ailes. Realmente, na demonstração matemática que ele especialmente considera, a conclusão dos raciocínios é necessária, e traduz, ao parecer a verdade, porque as premissas atêm à condição de traduzirem princípios verdadeiros. Mas considerando-se que essa demonstração só pode progredir mercê da energia latente dos axiomas e dos elementos claros fornecidos pelas definições matemáticas, não é difícil mostrar, de relance — por não desviarmo-nos do assunto principal — que ainda neste lance o desdobramento silogístico a que se poderia submeter toda a matemática desde a geometria à mecânica — estabelece no seu próprio rigorismo o compromisso de um abandono mais ou menos dilatado da realidade.

De fato, embora não admitamos — por incompreensão ou fragilidade do pensar — que os juízos matemáticos tenham um caráter de necessidade inelutável pela circunstância de serem “juízos sintéticos a priori”, consoante a denominação de KANT, inexplicavelmente partilhada por matemáticos destes dias, da estatura de POINCARÉ e outros — e esteiemo-nos de preferência na opinião dos que demarcam à matemática uma gênese experimental, caracterizada por verdades indutivas, quase espontâneas e intuitivas, e por isso mesmo totalmente desapercebidas em uma vasta sistematização dedutiva: não podemos deixar de reconhecer que o matemático se subordina por momentos à realidade, sob a condição de abandoná-la logo depois. Todo o rigorismo lógico de suas conclusões advém-lhe do fato de ter sido ele o próprio construtor dos elementos com que lida. As suas noções ou definições, desde a de número até às figuras mais complicadas, surgem de leis que ele estabeleceu e com os elementos que escolhe. Talha-os na realidade viva, certo mas, submetendo-as a uma lei de geração superior a essa mesma realidade. Não precisamos exemplificar. Basta-nos mostrar que enquanto todas as definições desde as mais simples definições de palavras às mais seguras definições das coisas, se acham perenemente abertas, em um perpétuo devenir, sujeitas a modificações permanentes, constantemente provisórias e refletindo continuamente nas suas transfigurações o dinamismo indestrutível do pensamento humano e a sua evolução contínua — as definições matemáticas permanecem imutáveis. Para citar dois exemplos únicos: a água que para ARISTÓTELES era um dos quatro elementos básicos com que ele imaginava constituir toda a natureza do mesmo modo que com as categorias supôs integrar todas as noções, não tem a mesma definição para os químicos de hoje, e não terá o mesmo significado para os de amanhã, dado o descobrimento crescente das propriedades que o definem. Ao passo que a linha reta ou o círculo têm hoje o mesmo significado de há dois mil anos. Assim as verdades matemáticas permanecem imóveis no fluxo contínuo da existência universal. Em toda a parte todas as noções se alteram porque a verdade é móvel; é, como a vida, um fato complexo “que continua” de sorte que as noções se transmudam, evoluindo, à medida que se vão desvendando novas propriedades. Ao passo que na matemática, sabem-no todos, são as novas propriedades que a pouco e pouco se desvendam e surgem de noções ou definições — absolutamente fechadas e estáveis.

Neste contraste está em grande parte o contraste das ciências dedutivas e indutivas. Mas apontamo-lo apenas para mostrar os dois aspectos únicos sob que nos apresenta a verdade: de um lado as verdades abstratas, as únicas através das quais a Lógica Formal se prende por momentos à realidade; de outro a verdade real, nascente da própria realidade. As primeiras são fixas, indestrutíveis; mas são uma ilusão. O lógico e o matemático, formando-as, articulando-as e desenvolvendo-as, constroem no rigorismo complexo do vocábulo um mundo ideal, uma espécie de mundo assintótico à natureza real. A passagem, quase sempre penosíssima e as mais das vezes impossível, do abstrato para o concreto, do resultado das fórmulas analíticas para as exigências da prática é iniludível atestado de uma separação que pode ir gradualmente subindo das simples operações geométricas ao largo desenvolvimento da Análise transcendente. As segundas são necessariamente relativas, contingentes, variáveis, mas nessa relatividade, nessa mesma contingência, nessa variabilidade incessante traduzem ao mesmo passo o ajustamento e a harmonia obrigatória do pensamento e das coisas, e a própria evolução da inteligência em função dos novos aspectos da existência.

Assim a verdade definida como um pensamento adequado perfeitamente às coisas, não podemos encontrá-la na Lógica Formal, e a própria matemática que é uma promoção da silogística, ou a sua “irmã brilhante e gigantesca” no dizer de BAIN, a própria matemática, somente no-la revela através de um complicado simbolismo. Uma e outra, a primeira mais que a segunda, só nos permitem a legitimidade das conseqüências.

A verdade é do domínio da Lógica indutiva. Só podemos alcançá-la por meio da observação, já interior, da consciência, já exterior, dos sentidos, assistida dos métodos experimentais e completada pela generalização das experiências que as leis naturais resumem. Daí se lhe deriva um caráter essencial, a relatividade. E no desconhecimento maior ou menor dessa relatividade essencial está em grande parte a explicação dos conflitos filosóficos que tão profundamente têm perturbado a consciência humana. Lamentamos a escassez de tempo que nos impede de explorá-los. Veríamos que entre o “realismo ingênuo” dos primeiro dogmáticos e o subjetivismo excessivo de BERKELEY ou de FUCHTE, entre os que acreditam que as coisas se nos mostram como verdadeiramente existem e os que negam a própria essência das coisas — há uma série contínua de teorias ou fantasias filosóficas cuja simples citação demandaria largo tempo. Mas veríamos que a preocupação da Verdade principia, não já no se considerarem as mais simples relações entre as coisas, senão nos próprios resultados da nossa percepção imediata dos seus elementos mais simples. Neste ponto, porém, chegamos a uma das fronteiras ainda não bem demarcadas entre a Lógica e a Psicologia, onde se têm travado e retravado os maiores conflitos entre os sistemas. Somos forçados a deixá-la. Observemos, entretanto, que a própria inibilidade de tantos esforços na pesquisa de um “critério da verdade” (o que durante todo o tempo foi o característico das mais profundas cogitações dos pensadores), delata impressionadoramente o flagrante desvio de método dos que fascinados por uma Verdade ideal, completamente acima da condição humana, mantiveram-se ilogicamente no meio dos vagos princípios apriorísticos, abandonando inteiramente a única estrada para consegui-la; a sólida estrada indutiva francamente aberta às inteligências ativas e conquistadoras. Assim (vamos a correr pelos pontos determinantes da questão), DESCARTES no estabelecer a “dúvida sistemática”, que tão eficazmente reagiu sobre o pensamento, e estatuindo que só se deve admitir “como verdadeiras as noções que se nos apresentam tão claramente e distintamente”, que não dêem lugar à menor vacilação, firmou como critério supremo da Verdade a evidência; a evidência que por sua vez se constituiu fundamento da Certeza, uma aliança tão íntima, tão ineridas as três, que dificilmente se distinguem destacadas. HOBBES, porém, pedindo-lhe logo depois um Critério para a evidência, demonstrou com uma ironia profunda, o desvio do filósofo que um exagero dedutivo (só ultrapassado depois por SPINOZA) chegara ao absurdo de proclamar como substância única a extensão, dando — conseqüentemente e paradoxalmente — uma realidade objetiva completa às figuras geométricas.

Pelo menos SPINOZA na pesquisa da verdade foi mais lógico. Estabelecido o seu princípio fundamental (e não discutiremos, alongando-nos) e dele tirando dedutivamente a conseqüência de que as coisas nos rodeiam que se impregnam de nossos pensamentos não admitem mais distinções entre a verdade e a evidência, entre a verdade e a realidade. E negou abertamente a existência do erro — caracterizando-o apenas como uma verdade incompleta.

Neste ponto interrompo a exposição por estar terminado o prazo da prova — digo por estar terminado o prazo.

Rio de Janeiro, 17 de maio de 1909.