Um mergulho perscrutador no universo onírico joyciano

Mariana Santos de Resenes, Rachel Pentalena Leal

Ours is essentially a tragic age, so we refuse to take it tragically. The cataclysm has happened, we are among the ruins, we start to build up new little hopes. It is rather hard work: there is now no smooth road into the future: but we go round, or scramble over the obstacles. We’ve got to live, no matter how many skies have fallen. (D.H. Lawrence, Lady Chaterley’s Love)[1]

O escritor irlandês James Joyce é considerado o divisor de águas da arte narrativa, por revolucionar o romance do século XX através de um inédito experimentalismo lingüístico. Nascido em 1882 em Dublin, capital da qual exilou-se voluntariamente sem que deixasse de se desvincular por inteiro – uma vez que ela foi retratada em todas as suas obras, podendo-se pensá-la até como uma sua personagem -, Joyce veio a falecer 59 anos depois na capital suíça, Zurique.

Dentre as obras desse mestre de criação destacam-se: Dubliners (1914), A Portrait of the Artists as a Young Man (1916), Ulisses (1922), Finnegans Wake (1939). As duas primeiras já encerram um espírito subversivo; porém, é com as duas últimas que explode o seu apogeu literário.

Consoante a ensaísta Leyla Perrone Moisés, Joyce, tamanha sua empresa, obteve consagração imediata. E a despeito de ter contado com um expressivo reconhecimento de grandes nomes como Pound e Eliot, ele sofreu hostilidades por parte da crítica, do público, enfrentando censuras baseadas na “obscenidade” de Ulisses e na “ilegibilidade” de Finnegans Wake (questão melhor desenvolvida mais à frente).

Ainda a esse respeito, Augusto de Campos estabeleceu um paralelo entre Shem, personagem de Finnegans Wake, e Joyce, podendo aquele ser visto à luz deste. Shem encarna o desterrado, o segregado e rejeitado pela sociedade.

Ele é o visionário, o poeta, o próprio Joyce em seu aspecto de artista incompreendido, repudiado. Sua conduta característica é refugiar-se em seu quarto, onde (…) escreve um livro numa linguagem corrosiva que Shaun não consegue entender. (CAMPOS, 2001, p.161)

Curiosamente, também uma incompreensão advém do irmão de Joyce, Stanislaus que, ao ler um fascículo de Work in Progress, se vê incomodado com o “palavreado debilóide” tal qual ele mesmo o nomeia.

A grandiosidade joyciana é ainda oriunda da inserção de uma musicalidade originalmente poética em sua prosa. Devido a esse diferencial do escritor, o poeta Paulo Leminski ousa equipará-lo aos poderes sinfônicos de um Beethoven, de um Wagner, de um Stravinski. Vale lembrar que a comparação com Beethoven ultrapassa o âmbito de performance artística – ambos sofreram a privação de um dos sentidos: o músico perdeu a audição; o escritor, a visão.

James Joyce – o pai da modernidade (escritura moderna) – foi influência determinante em diversos autores, tanto contemporâneos seus, quanto de décadas posteriores. Samuel Beckett, que inclusive foi seu secretário, herdou a estirpe insólita da narrativa complexa, desafiando a idéia de compreensão, trazendo à tona um homem imerso em seu subconsciente, em uma força maior que o detém. E a lista avança: Faulkner, Virgínia Woolf, Borges, … No Brasil, Clarice Lispector, João Gilberto Noll e Guimarães Rosa, dentre outros, portam fortes afinidades estéticas com o gênio irlandês. Noll absorveu isso através do viés beckettiano. Em UlissesComo é (Beckett) e Canoas e Marolas (Noll) há um diálogo no que tange à caracterização dos protagonistas – são viajantes em busca de uma identidade, seres errantes espelhando o caótico século XX. Clarice, por sua vez, já em fase iniciante demonstrava algum conhecimento sobre Joyce, haja vista sua extração de um trecho do Portrait para servir-lhe de epígrafe a Perto do Coração Selvagem. E as semelhanças continuam em A maçã no escuro, na qual ocorre a revelação do apreendimento por Lispector de uma técnica marcadamente joyciana: o monólogo interior. Contudo, é com Guimarães Rosa que a analogia se acentua ainda mais. Torna-se clarividente a profunda exploração dos signos, sua forma e significado e, sobretudo, a fusão de ambos. O paralelo Joyce/Rosa será abordado mais adiante.

Ulisses, publicado na segunda década do século XX, funda o romance moderno. Nessa obra, Joyce, para contar a epopéia do homem contemporâneo, vai se apoiar num cânone da cultura ocidental: a Odisséia de Homero. Tal intertextualidade carrega idéia de ruptura que esse “romance-anti-romance” estabelecerá. Ulisses firma-se como uma grande obra, e a grande obra é aquela que fala por si própria; ela transcende a intencionalidade do autor e a expectativa do leitor.

Ulisses é a perambulação pelo dia (Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?) “em meio ao absurdo de um mundo que começa a se decompor (…); ele nos prova que cada um dos nossos dias é uma miséria e uma imensidão.”(BUTOR, 1974, p. 132). E o modo que Joyce forjou para abordar tais questões metafísicas deu-se pela voz narrativa com o advento do monólogo interior, ensaiado durante o livro e elevado a cume no capítulo dedicado a Molly Bloom. “No último monólogo, essa penetração é particularmente sensível pelo fato de a personagem ser mulher. A escavação é tão profunda que ficamos constrangidos, como se tivéssemos penetrado em algum segredo proibido.” (BUTOR, 1974, p. 135). E o sujeito que realiza extraordinário feito é a linguagem – onde as palavras deixam de ser objetos passivos. Pound ainda salienta que Joyce retomou a arte de escrever no ponto em que a deixou Flaubert.

Desafiado, instigado com sua obra de 22, Joyce irá criar algo até então impensável: Finnegans Wake. O livro, publicado em 1939, ousa representar o inconsciente, expondo o sonho da humanidade. Enquanto Ulisses se passa durante o dia, Finnegans perscruta a noite adentrando a uma mente adormecida, na qual afloram todos os delírios, temores, alucinações, devaneios, fantasias e desejos proibidos. Nesse aglomerado vertiginoso, “passam-se mais coisas e todas elas passam quase ao mesmo tempo, não uma atrás da outra, mas simultaneamente. Aceleração é fusão: todos os tempos e todos os espaços confluem em um aqui e um agora.” (PAZ, 1984, p. 23).

Para retratar esse lado escuro/obscuro da vida, Joyce terá de inventar um idioma calcado na lógica onírica. O mesmo declara:

escrevendo sobre a noite eu realmente não pude, senti que não podia usar palavras em suas ligações habituais. Usadas dessa maneira elas não expressam como são as coisas à noite, nos diferentes estágios – consciente, semiconsciente, depois inconsciente. (AMARANTE, 2001, p. 118).

A linguagem é ambígua por excelência e, sobretudo, em sua última obra, a plurissignificação atinge o seu ponto limítrofe. Ao passo que a emanação de sentidos ulissiana dá-se no nível frasal, em Finnegans isso se estenderá ao nível silábico. Logo, pode-se constatar que o sêmen germinador deste já se encontrava enraizado naquele.

Dois artifícios estilísticos utilizados por Joyce conferem-lhe essa imensa densidade de expressão: a palavra-valise e o trocadilho. A primeira, originalmente empregada por Lewis Carroll, consiste em uma combinação de duas ou mais palavras que somam significações – “palavras fermentadas”. No universo wakiano, o autor não se limitará a justapô-las como outrora, indo fundi-las, contraí-las em seus fonemas comuns, portando, assim, tais palavras uma convergência de fundo e forma. A fim de elucidar a questão, seguem alguns exemplos: continuarration (continuos + narration), chaosmos (chaos + cosmos), laughtears (laughter + tears), finneagain (finis + again). O filósofo Jacques Derrida também opina a esse respeito ao dizer que Joyce

fissiona cada átomo de escrita para com eles sobrecarregar o inconsciente de toda a memória do homem: mitologias, religiões, filosofia, ciências psicanálise, literaturas. E a operação desconstrói a hierarquia que, num sentido ou noutro, ordena essas últimas categorias a uma ou outra dentre elas. (DERRIDA, 1990, p. 24)

Por sua vez, o segundo recurso – o trocadilho – caracteriza-se por um jogo de palavras parecidas no som, mas diferentes no significado, possibilitando, então, margem a equívocos tal qual o sonho propicia: “I wouldn’t miss her for irthing on nerthe” (“Eu não sentiria sua falta por nauda nesse fundo.”) (AMARANTE, 2001, p. 227).

É interessante atentar à simultaneidade do quadro mental esquizofrênico da filha de Joyce, Lucia, com o período da elaboração de Finnegans Wake, o que leva muitos críticos a traçarem relação entre a linguagem perturbada e desconexa da filha com a da sua derradeira obra.

A riqueza de FW provém da ânsia do escritor de lhe atribuir um caráter universal; para isso ele incorpora todas as épocas, todos os mitos, todas as lendas. O espírito inspirador joyciano constrói o mosaico da humanidade no qual engendra mais de 60 línguas (mortas e vivas) e, pelo menos, 5000 lugares, deixando o leitor incomodado pela abundância onde os contrários não se anulam. Essa exuberância de unidade irregular impregna o livro de um ar barroco.

Outra peculiaridade que ganha relevo no livro é a música que o perpassa por inteiro. O idear da perfeita arquitetura fonética articula-se, sobretudo, através dos seguintes elementos: rimas internas, aliterações, onomatopéias. A sonoridade assume expressiva importância em Wake a tal ponto que é legítimo afirmar que “a audição precede a visão”. Eis um aviso do próprio Joyce: “If anyone doesn’t understand a passage, all he needs do is read it aloud.” A elevada sensibilidade ao mundo sonoro desencadeia-se em Joyce muito por sua gradativa perda da visão quando da tessitura de sua enciclopédia onírica.

Ler em voz alta, um conselho que encontra obstáculo naquilo que se caracterizou o extremo da experimentação lingüística – as palavras de cem letras.

Essas palavras só podem ser interpretadas como ruídos: a trovoada, o desmoronamento, a tosse etc., elas representam pois, no texto, o mesmo papel que as onomatopéias, mas são formadas não só de aglomerados de letras, mas de uma aglomeração de palavras; são onomatopéias desenvolvidas, o ruído é aí não só reproduzido, mas soletrado em sua significação. (BUTOR, 1974, p. 159)

A poeira radioativa da bomba atômica com que Finnegans Wake explodiu servirá de matéria-prima ao músico norte-americano John Cage, como ainda se mencionará neste ensaio.

Quanto à voz narrativa, faz-se complexa sua classificação, visto que a mesma ostenta uma perda de controle sobre as vozes, só é capaz de fornecer fragmentos. Essa incerteza espelha a própria voz narrativa do homem contemporâneo – uma voz dilacerada.

Há ainda um notório recurso estilístico a comporFinnegans Wake – a paródia. E esta incide inegavelmente nos “mitemas” da cultura ocidental: Édipo, Adão e Eva, Tristão e Isolda, Rômulo e Remo, Ísis e Osíris, Zeus e Leda, Prometeu, Cristo, Antigo e Novo Testamento, as lendas irlandesas de Finn Mac Cool, etc. O mito edipiano revela-se no livro através da conflitante relação entre pai e filho, cuja disputa era travada pela mãe.

A costura desse verdadeiro caleidoscópio joyciano realiza-se ao incorporar uma teoria circular desenvolvida pelo filósofo e historiador italiano Giambattista Vico. Um patente exemplo da circularidade vico/wakiana consiste na complementaridade da última frase do livro em relação à primeira. Em Joyce, as coisas sempre caminham numa espiral. Isso já pode ser verificado na parte inicial do livro com a parodiada balada popular irlandesa “Finnegans’s Wake”, a qual conta a história da morte e ressurreição de Tim Finnegan. Dela, o autor vai beber o título, o tema e a estrutura. O título encerra circularidade, pois ao mesmo tempo, pode significar velório/morte e o despertar/ressurreição de Finnegan. “Quedas e restaurações movem o universo”. Ana Livia Plurabelle bem como todos os outros personagens são mutantes. Em seu ciclo metamórfico, ALP encarna um rio, convertendo-se num “perfeito exemplo do corso e ricorso de Vico – o esquema circular em que se assenta Finnegans Wake.” (CAMPOS, 2001, p. 160).

Sendo assim, o irlandês entra, inquestionavelmente, para a história da literatura universal.

O Joyce de Ulisses e Finnegans Wake divide a história do romance em antes e depois. A.J., D.J., antes de Joyce, depois de Joyce. E, bem pesadas as coisas, talvez nem haja ‘depois’; talvez, depois de Joyce, o romance já não deva ser romance, mas uma outra coisa.(CAMPOS, 2001, p. 172).

Alguns aspectos para um diálogo Joyce/Rosa

João Guimarães Rosa, escritor mineiro nascido em 1908, teve sua consagração literária com Grande Sertão Veredas(1956), sua principal obra a explorar o experimentalismo lingüístico, temático e poético. Tanto é assim que o crítico e poeta Augusto de Campos dedica “Um Lance de ‘Dês’ do Grande Sertão” a traçar paralelos entre esse escritor e o irlandês James Joyce.

A intersecção entre ambos se resume na revolução da linguagem. Eles criam uma linguagem única, inconfundível; elaboram uma fantástica alquimia verbal, onde se misturam neologismos, línguas, novas construções morfológicas e sintáticas, exploração plurissêmica das palavras, aproveitamento dos recursos rítmicos e sonoros. O valor da narrativa não advém apenas do que é contado, mas também, ou ainda, sobretudo, do modo como é contado – fecunda fonte de prazer para o leitor.

O texto literário é um universo construído de palavras; porém de palavras que não se resumam só a sentido, detendo, pois, som, música, efeitos visuais, magia, encantamento… A esse respeito, conflui a opinião de Rosa que, maestrialmente, soube bem explorar o profundo potencial criador das palavras:

Nos meus livros (…) tem importância, pelo menos igual ao sentido da estória, se é que não muito mais: a poética ou poeticidade da forma, tanto a “sensação” mágica, visual das palavras, quanto a “eficácia sonora” delas; e mais as alterações viventes do ritmo, a música subjacente, as fórmulas – esqueletos das frases – transmitindo ao subconsciente vibrações emotivas sutis.

Tendo em vista a fundamentada relação Joyce/Rosa, lançaremo-nos à aventura no que concerne à leitura do conto rosiano “Nenhum, nenhuma”, de Primeiras Estórias.

O conto despeja a dúvida entre uma recordação de um passado longínquo ou um sonho. Essa incerteza se solidifica, de modo especial, na performatização da voz narrativa, que se alterna ora em primeira pessoa, ora em terceira pessoa, deixando o leitor confuso, tumultuado com esse “presenciador inconsciente” que foge ao convencional. A fim de resgatar o ambiente joyciano, há em “Nenhum, nenhuma” a ausência de recursos determinantes, tais como o largo uso de pronomes indefinidos (“outras várias recomeçadas distâncias”; “a beira da mata de algum rio”; “esforço para algo remembrar”), de interrogações (“que a data era 1914?”; “tresbisavó de quem”; “A Moça e o Moço vieram buscá-lo?”), construções verbais no futuro do pretérito (“seria o escritório”), sujeito indeterminado (“não sabiam mais quem ela era”). O próprio título da estória verte a prioriuma indefinição, uma inexatidão.

No que tange aos personagens, estes são nomeados com substantivos comuns, genéricos, adquirindo, assim, o grau de próprios – o Moço e a Moça, o Menino, o Homem. A falta de uma identificação mais concreta dos personagens colabora com aquele estigma de diluição wakiano. A Moça caracteriza-se mais pelo sentimento de bondade, paz e carinho que causava no Menino do que propriamente por descrições físicas. A imagem do Moço também vaga, difusa, fica a cargo do leitor (“The keys to. Given!”) que não conseguirá montar um rosto identificável. A imprecisão/oscilação de personagens manipulada por Joyce é resgatada num “homem sem aparência”, (“o homem sem aspecto tenta agora parecer-se com outro”). Mais um interessante momento consiste naquele em que a “tresbisavó” Nenha é descrita: uma personagem de velhice extra-imaginária, irreal, “de história, de estória”.

A estudiosa Dirce W. do Amarante pontua a esse respeito ao elucidar Freud: “A elaboração onírica, estudada por Freud no livro Interpretação dos Sonhos (1900), cria deformações e ambivalências, originando seres imprecisos e compósitos. Ou seja, as imagens oníricas, ou os personagens do sonho, tendem a ser vagos e confusos.” (AMARANTE, 2001, p. 53).

A musicalidade poética de Joyce igualmente singulariza Guimarães pela abundância de aliterações (“Reperdida a remembrança, a representação de tudo se desordena”), bem como de rimas internas (“Será que em meu coração ela tem razão?”). Há passagens, porém, em que a notação musical roseia-se: “Infância é coisa, coisa?”; “Porque eu desconheci meus Pais – eram-me tão estranhos; jamais poderia verdadeiramente conhecê-los, eu; eu?”. Seus textos, podendo ser lidos em voz alta, emanam um inefável prazer oriundo da colaboração ininterrupta da imaginação auditiva.

O escritor brasileiro superou a tachação de regionalista ao efetuar um incessante experimentalismo que transcendeu a linguagem a partir dela mesma – micromacrocosmo joyciano. Para tal, ele forja palavras, numa engenhosidade ímpar. Seguem alguns exemplos: “irreversos”, “sojornar”, “ultramuito”, “não-distância”, “tresbisavó”, “desnascer”, “reperdida”, “confusamento”, “torna-viajor”, “beladormeceu”.

Do exposto, depreende-se que em “Nenhum, nenhuma”, quase todos os signos são pluridimensionais, carregados de significado oculto. Como nas palavras de Paulo Ronái: “Todos os rios do mundo de Guimarães Rosa têm três margens.” (ROSA, 2001, p.27).

Uma terra a desbravar

Apesar de mais de meio século ter-se passado da publicação de Finnegans Wake, ele ainda causa muita estranheza e angústia em grande parte de seus leitores que, por conseguinte, denominam-no impenetrável e até ilegível. Tamanha hostilidade advém de uma tradição literária que sempre nos impeliu a buscar um sentido pleno e imediato. Ao que Butor ressalta: “A última obra de Joyce, proibindo-nos de ter a seu respeito a ilusão de uma leitura integral ( e é isso que se quer dizer quando se declara que ele é ilegível)”, obriga o leitor a repensar seus conceitos de compreensão.

O leitor, porém, detém certa razão no concernente à dificuldade wakiana, cuja apreensão é, de fato, complexa. O próprio Joyce toma a sua defesa: “É natural que as coisas não sejam tão claras durante a noite, não é mesmo?”. Inclusive leitores como Butor, Cage, Derrida afirmam sua leitura-não-leitura de Finnegans Wake. Não obstante, “é preciso repensar o conceito ou preconceito do ‘difícil’. Dizia Valéry: ‘Meu fácil me enfada. Meu difícil me guia’. Ou: ‘O que é difícil é sempre novo.'” (CAMPOS, 2001, p.198).

Quem penetra o labirinto joyciano se vê incitado a fazer escolhas segundo os elementos que lhe parecerem mais atraentes, não podendo, tampouco necessitando, atrelar-se à intencionalidade do criador. E, como Octávio Paz complementa muito bem, entre a obra imaginada pelo autor e a obra apreendida pelo espectador existe algo fisicamente concreto: a obra. Ela que foi, é e será, afinal, o ponto de partida para passadas, presentes e futuras significações: “Uma obra é uma máquina de significar”. Assim, explica-se a complexidade atribuída a artistas como Joyce e Guimarães Rosa que “obrigam o espectador a converter-se em artista e em poeta”, eles não querem meros receptores para suas obras; desejam sim um olhar modificador, ativo, reflexivo. Esse viés também é realçado pelo responsável da única tradução/versão brasileira completa de Finnegans Wake – Donaldo Schüler: “O romance faz do leitor analista”; “habituados que éramos a ser conduzidos, somos intimados a decidir” (SCHÜLER, 1999, p. 23).

Tal leitor interativo deve suspender a descrença para cair no sonho joyciano, fruindo sua linguagem. Então, a leitura se tornará um jogo divertidíssimo com o deleite de um ludismo de sons, imagens e idéias.

O universo mítico e onírico de Joyce foi assimilado por John Cage em sua música Roaratorio, composta de “roar” (rugido, bramido) e “oratorio” (oratório), que congrega sons humanos e de animais (aves, elefantes, cães, gatos…), choros, risos, gritos, ruídos, barulhos de rios, sinos, chuvas, trovões, estilos musicais… Cage ainda recita trechos de Wake na música que, à sua maneira, é uma tradução daquele sonho “do qual todas as coisas participam, um sonho quase sempre assustador, por vezes atroz, repleto de um riso que mascara uma profunda ansiedade. É um pesadelo que vai terminar num despertar” (BUTOR, 1974, p. 143). E, Roaratorio constitui-se, por meio desse despertar, nossa verdadeira epifania para Finnegans Wake.

Joyce se afirmou para nós não através de um contato direto e imediato com sua obra, mas sim através de todo um repertório que adquirimos acerca dela. Essa experiência foi a força motriz que nos atreveu a escrever este ensaio, no qual discorremos um pouco sobre a homérica empresa de James Joyce.

O intelectual argentino Jorge Luís Borges admirou-o antes de compreendê-lo. Por essa razão, fazemos de suas palavras, as nossas: “Dele falarei com a licença que me confere minha admiração e com a vaga intensidade que houve nos viajantes antigos, ao descobrirem a terra que era nova diante de seu assombro errante.” (apud MOISÉS, 1998, p. 135).

REFERÊNCIAS

AMARANTE, Dirce Waltrick do. A Terceira Margem do Liffey: Uma Aproximação ao Finnegans Wake. Florianópolis: UFSC, Pós-Graduação em Literatura, 2001. 366 fls. Dissertação de mestrado em Teoria Literária.

BUTOR, Michel. Repertório. São Paulo: Perspectiva, 1974.

CAMPOS, Augusto de . “Um Lance de ‘Dês’ do Grande Sertão”. In: Poesia, antipoesia, antropofagia. São Paulo: Cortez & Moraes, 1978.

CAMPOS, Augusto e Haroldo de. Panaroma de Finnegans Wake. São Paulo: Perspectiva, 2001.

CULT – REVISTA BRASILEIRA DE LITERATURA. São Paulo. Ano III – nº 31.

DERRIDA, Jacques. “Duas Palavras“. In: Ensaios sobre James Joyce. Org. Arthur Nestrovski. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

ET CETERA – REVISTA DE LITERATURA & ARTE. Curitiba. 2004 – nº 3.

JOYCE, James. Finnegans Wake/Finnicius Revém – Capítulo 1. Trad. por Donaldo Schüler. Porto Alegre: Ateliê Editorial, 1999.

____________ Finnegans Wake/Finnicius Revém – Capítulos 9, 10, 11 e 12. Trad. por Donaldo Schüler. Porto Alegre: Ateliê Editorial, 2002.

LEMINSKI, Paulo. Investigando a vida de um texto bastardo. Disponível em: http://www.lumiarte.com/luardeoutono/joycegiacomo.htm. Acessado em 28 de maio de 2004.

MOISÉS, Leila Perrone. Altas Literaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

NORRIS, Margot. “A Estrutura Narrativa“. In: Ensaios sobre James Joyce. Org. Arthur Nestrovski. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

PAZ, Octávio. Marcel Duchamp ou Castelo da Pureza. São Paulo: Perspectiva, 1977.

___________ “A Tradição da Ruptura“. In: Os Filhos do Barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

ROSA, João Guimarães. “Nenhum, nenhuma“. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

 

[1] Em Ulisses, “os universos intelectuais de Stephen e de Bloom perderam o apoio de uma certeza ou de uma transcendência, são mal-assombrados pelos restos dos velhos sistemas. E, em meio a esse aturdimento, esse lento desmoronar camuflado pelos gracejos cotidianos, os homens perdidos e isolados tentam viver apesar de tudo, e se buscam uns aos outros.” (BUTOR, 1974, p. 136)