Dois poemas e um bico de pena

Rodrigo de Haro

NOTURNO

Vejo uma briga, vejo a cabeleira de
Berenice mergulhando no fir-
mamento para os lados da ponte
nova. A ária de Serpina escapa de
alguma janela apagada – “Ah! Poverina!
Cara um tempo ela me fu…” Com ponta
de aço o aprendiz deixou men-
sagem no granito. Sim, “Solidão é
veneno”, e piscam friamente as
constelações Andarilhas. – “Queria
ser nômade!” exclamas e tocas
meu braço. – “Caminho às vezes a noite
toda, até o dia nascer sobre os
telhados da Prainha.”

Costumava acompanhar-te e sabia
ouvir-te naquele tempo, enquanto
desbotava o esquife talhado
nas vagas. Querias partir,
mas o trabalho servil

Nunca o permitiu. Nem o rosto
precocemente marcado revelava
qualquer esperança. Sabia bem o
fumo de Angola e harpas
distantes de Assunción.

SINAIS

Obstinado, ouvistes o martelo,
acaso? No quarto ao lado, toda
a noite, não ouvistes? O toque na mesa
não ouvistes, repetido? De onde
veio? Quem te chama? Lenta-
mente, medindo os tempos, cotas
as batidas na tábua, sempre as mesmas.
Que aviso será? Primeiro é:

– Toc. Toc. Toc. – Logo depois:
Toc. Toc. Então tudo recomeça. Ad-
vertência? Simples banalidade
noturna? Quem será?

“- Está nevando em S. Joaquim”. ou “- Vamos
ter boa safra de batatas
este ano”.

Não importa o que diz a tábua corroída.
Do fundo dos tempos mortos alguém
te procura. Será, acaso, a mariposa
impertinente que ontem es-
patifou-se na lâmpada? Quantos
apelos sem resposta ecoam
em torno de ti?

De um lado e de outro do muro,
ou do biombo, ou do espelho, ar-
rastam-se sinais truncados
para longe, sem
que ninguém possa decifrá-los.

(às vezes uma
janela bate
onde não tem janela…).
Alguns viajantes retornaram. Acaso
os conheces? Atravessam
trêmulas freqüências e ondas curtas.
Executam rígidas mesuras
diante das arcadas,

circulam entre tua mesa e
a campina remota. Suspiram
com pulmões de borboleta

enquanto buscas instruir-te
aspirando vapores letais
da madrugada.

Dentro da parede
o cano soluça.

 


 

Um bico de pena