Configurações da ausência (ou: a saudade portuguesa segundo Alexandre Herculano)

Victor da Rosa

ao Manoel Ricardo de Lima,
amigo e orientador deste trabalho

“[…] sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudades… sei lá de quê!”.
Florbela Espanca, poeta portuguesa.

I

No aforismo nove do texto intitulado Sobre o conceito de história, Walter Benjamin evoca um quadro de Paul Klee, Ângelus Novus, para falar do futuro e do progresso, martírios da modernidade. A imagem que Benjamin sugere é a de um anjo que, com o rosto dirigido para o passado, vê uma catástrofe – vê ruína sobre ruína, até os céus. O anjo de Benjamin – ou: o anjo da história – possui o desejo de voltar ao passado e catar os fragmentos, mas um vento impossível sopra de lá – e esse vento parece que diz: “ao futuro, caro anjo, ao futuro!”. Não é viável voltar ao passado num momento em que somente o futuro é possível. O anjo, portanto, não volta ao passado – o vento não permite: o vento do progresso[1].

O futuro é a paranóia da modernidade. A modernidade é o tempo das vanguardas e das rupturas – das utopias. A esperança de algum futuro venturoso e bem-sucedido, foi o que a modernidade, insistentemente, perseguiu – quase sempre deslumbrada com tecnologias, novas possibilidades, novas novidades. A novidade é a obsessão moderna. Lembra Gianni Vattimo: “De fato, uma das mais difundidas e confiáveis visões da modernidade é a que a caracteriza como a ‘época da história’, em oposição à mentalidade antiga, dominada por uma visão naturalista e cíclica do curso do mundo”[2]. Ou seja, a idéia de superação e da construção de um futuro a partir de um presente é uma idéia fundamentalmente moderna – e uma idéia que caracteriza a modernidade como época da história.

Porém, seria equivocado acreditar que tal idéia possui estatuto totalizante – seria, aliás, um equívoco moderno. Quero dizer que a idéia de superação e de construção incessante da novidade, no que diz respeito à época moderna, possui suas nuances e interdições culturais. O caso português é característico, uma vez que a questão da modernidade portuguesa é a do passado, e não do futuro. A modernidade portuguesa é excêntrica. O anjo português, se fosse para caracterizá-lo, seria um anjo avesso. O vento português vem do futuro e sopra o anjo para o passado – talvez uma imagem mais prudente: o anjo português possui suas asas amarradas no passado, e não consegue soltá-las para voar em direção ao futuro. E ele não sabe o motivo de ter sido amarrado.

UMA SAUDADE-SEI-LÁ-DE-QUÊ

O crítico português Eduardo Lourenço escreve dois livros para perseguir uma questão que, parece, lhe atormenta: o culto da nação portuguesa ao passado. O primeiro livro,Nós como futuro, foi publicado no ano de 1997 e possui, já em seu título, uma espécie de manifesto que reclama um olhar português para o futuro. O segundo livro, intitulado Mitologia da saudade, foi publicado dois anos depois e, diferente do primeiro, possui vários ensaios que investigam, com mais precisão, um certo vario que a cultura portuguesa carrega, uma certa saudade-sei-lá-de-quê.

Segundo Eduardo Lourenço, “[…] nenhum povo vive no passado como Portugal”[3]. Ou ainda: “Nenhuma barca européia é mais carregada de passado do que a nossa”[4]. Ou seja, o povo português busca num passado, talvez bastante distante, uma segurança, uma estabilidade simbólica, que preencha esse buraco de sentido causado pela fragmentação moderna. Como uma recusa ao Nada, ao vazio deixado pela modernidade, Portugal se volta à sua História no sentido de buscar um sustento ontológico que suporte esse desconhecimento, que suporte o caos, em que se afunda e se perde o sujeito moderno. Mas a pergunta que Lourenço faz é: “que passado é esse? que sustento é esse?”. Pergunta simples e dramática.

Ora, Portugal foi uma nação que sempre se quis grande, grandiosa, sempre se viu grande. Uma nação de aventureiros[5], como sugere Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil – uma nação de sonhadores. Quero dizer que esse passado português, visto pelos próprios portugueses, é ilusório, onírico – chega a ser mítico. Esse passado não é tão grandioso como querem os portugueses. O olhar português para si mesmo é, sobretudo, exaltado e deslumbrado.

Por isso, esse sustento que os portugueses procuram é, antes de qualquer questão, um sustento contraditório. Ao mesmo tempo em que Portugal busca num certo passado um sustento para o presente, esse passado não existe: é falso, ilusório. Por ser um passado onírico e idealizado, ele também somente é percebido como morto, estático. Ou seja, tal passado não é desconstruído do imaginário português justamente porque é representado como um passado grandioso.

Logo, resta ao português um sentimento estranho diante do mundo, uma saudade inexplicável. Esse deslumbre de algo que não existe cria uma espécie de curto-circuito na percepção portuguesa de mundo. Portugal tem saudade de um tempo que não sabe exatamente qual é, tem saudade de algo que não sabe bem o que é. Se existe um buraco na cultura moderna, de modo geral, na portuguesa esse buraco é ainda mais estranho, porque é um buraco tapado com vento. Uma falta que tem saudades de não ser falta.

Eduardo Lourenço, por fim, coloca que os portugueses “[…] não suportam ser olhados por quem ignore ou tenha esquecido sua vida imaginário. Preferem […] ausentar-se de si mesmos e outorgar-se o estatuto mesmo da Ausência”[6]. Em outras palavras, diante de um olhar crítico, o português opta pela fuga de si mesmo. Fogem de um reconhecimento outro que não o de nação grandiosa como “cristãos nas catacumbas”[7]. Um efeito dessa fuga, apontado por Lourenço, é a de um povo que se sente desconhecido em relação a si. Ou: um povo ausente de si mesmo. A relação do sujeito português em relação a si, passa a ser uma relação de desconhecimento, de fuga, de ausência, de falta.

***

II

Penso que o romance de Alexandre Herculano, Eurico, o presbítero, se configura em torno destas questões. Mais especificamente: Eurico, o personagem principal, é construído a partir desse mal-estar fundamentalmente português; a partir dessa relação contraditória com o passado, nascida de uma perda, de uma falta; e a partir, por fim, de um isolamento em si próprio. O movimento do personagem é, justamente, o de I) ausência em relação ao outro e II) ausência em relação a si.

Eurico, até então grande guerreiro visigodo, se apaixona pela filha do duque de Fávila, a “celestial” Hermengarda. Tenta esquecê-la, não consegue e ousa dizer ao duque: “Dá-me por mulher tua filha”. A seqüência dos acontecimentos nos é contada numa carta que Eurico escreve a seu amigo Teodomiro, se auto-representando em terceira pessoa: “A amizade de Teodomiro salvou então o desprezado gardingo da morte do corpo, mas não pode salvá-lo da morte da alma”[8]. A perda de um grande amor se torna insuportável para Eurico, e ele se torna presbítero, se recolhendo numa solitária morada longe de sua amada – longo do mundo. “Eurico ou, antes, a sua sombra, fugiu do lado de Teodomiro, e da porta do santuário disse-lhe um adeus eterno, como ao resto do mundo”[9].

A partir daí, Eurico passa a viver uma vida ausente, distante de si e dos outros:

“[…] via-se ao longo da praia vestido com a flutuante estringe o presbítero. Eurico, encaminhando-se para os alcantis aprumados à beira-mar. Os pastores que o encontravam, voltando ao povoado, diziam quem, ao passarem por ele e ao saudarem-no, nem sequer os escutava, e que dos seus lábios semiabertos e trêmulos rompia um sussurro de palavras inarticuladas […]”[10].

Em vários momentos do romance, tanto a voz do narrador quanto a de próprio Eurico, em seus fragmentos e cartas, dão sinais de que Eurico sofre por saudades de Hermengarda. Um amor de mulher mal-correspondido tinha aberto uma ferida no presbítero, uma chaga, diz o narrador.[11] Uma saudade, no entanto, que pode ser pensada como contraditória, uma vez que, em nenhum momento houve nada efetivo entre Eurico e Hermengarda. Eurico, portanto, tem saudades de algo que não foi, algo que não aconteceu, algo ilusório.

Indo nessa direção, é interessante perceber que Eurico constrói sonhos em torno de sua amada. Lembra de Hermengarda de uma forma idealizada. No sexto capítulo do romance, por exemplo, há uma espécie de epifania da imagem de Hermengarda nos pensamentos de Eurico – uma imagem irreal, onírica, ilusória. Escreve o presbítero: “Nesse chão tenebroso do oriente a tua imagem serena e luminosa surge a meus olhos, oh Hermengarda, semelhante à aparição do anjo da esperança nas trevas do condenado”[12]. E Eurico continua a descrevê-la com uma “coroa de virgens”, “rosto de pudor”, com “formas divinas e inocentes”. E conclui: “É assim que eu te vejo em meus sonhos de noites de atroz saudade”[13].

Hermengarda é consolo e martírio, verdade e ilusão, e, acima de tudo, contradição e paradoxo. Diz Eurico que Hermengarda nem sabe se ele morreu ou não, dele ela não lembra, mas mesmo assim Eurico insiste nas saudades, se mantém preso a um passado falso e vive mergulhado em sofrimentos e solidão.[14] Uma saudade que é ao mesmo tempo “amarga e “deliciosa”, como nos versos do poeta português Almeida Garret: “gosto amargo de infelizes / delicioso pungir de acerbo espinho”.

Como se não bastassem tais contradições, Eurico ainda se culpa por seu amor. Uma culpa cristã lhe arrasa a consciência. Pensa que seu amor por Hermengarda é um crime e que, na medida em que prometeu se voltar à Deus, devia se despir das paixões que o mundo lhe trouxera. A consciência lhe pergunta: “E quem te disse, presbítero, que o teu amor não era um crime?”. Responde Eurico: Tens razão, consciência!”[15].

Ora, tal confusão faz com que o presbítero chegue ao limite de desejar a morte, com todas as suas forças. Os episódios descritos da guerra entre visigodos e árabes, nesse sentido, são significativos. Eurico, de forma enlouquecida, corre para o meio dos árabes com sua espada, com uma fúria indizível, buscando matar todos, buscando matar a si próprio. Mas não morre, assim, de uma vez, com um golpe. Eurico morre aos poucos, vai morrendo.

A busca de um aniquilamento radical, de uma anulação do corpo – pois a alma, como escreveu o próprio presbítero numa de suas cartas, já estava morta. É impossível, para Eurico, viver com tanta saudade, com tanta contradição.

Recordo, por fim, o quarto capítulo do livro, intitulado “Saudade”. Nesse capítulo, o mar aparece como uma referência maior à saudade portuguesa. A cena: Eurico sai da solidão de seu quarto e busca a solidão do mar – sai de seu refúgio, com muros ao redor, paredes, e somente uma pequena janela; sai de seu refúgio para buscar algo grande, algo como um sonho. Diz Eurico: “[…] uma saudade indizível atraía-me para o mar”. E pede ao barqueiro: “Leva-me para onde te aprouver”[16]. Com o barco, correm ao largo da ilha, correm pelo mar. As lágrimas invadem os olhos de Eurico. É uma saudade, uma dor de saudade, um prazer suave – uma saudade portuguesa. Uma saudade-sei-lá-de-quê.

Referências

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.

HERCULANO, Alexandre. Eurico, o presbítero. Lisboa: Bertrand, 1972.

LOURENÇO, Eduardo. Nós como futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

 

[1] BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política, p. 226.

[2] VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, p. VIII.

[3] LOURENÇO, Eduardo. Nós como futuro, p. 19.

[4] Idem, Ibidem, p. 18.

[5] É interessante perceber a maneira como a questão da aventura se relaciona com o tema da saudade. Diz Eduardo Lourenço, em Mitologia da Saudade: “[…] d. Francisco Manuel de Mello supôs, primeiro do que ninguém, que Portugal é esse povo de uma nostalgia sem verdadeiro objeto devido ao seu destino de povo marítimo, viajante, separado de si mesmo pelas águas do mar e do tempo”.

[6] LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da saudade, p. 11.

[7] Idem, Ibidem.

[8] HERCULANO, Alexandre. Eurico, o presbítero, p. 76.

[9] Idem, Ibidem.

[10] Idem, Ibidem, pp. 23-24.

[11] Idem, Ibidem, p. 30.

[12] Idem, Ibidem, p. 59.

[13] Idem, Ibidem, p. 60.

[14] É interessante perceber que também o sentimento de solidão é ambíguo e contraditório. Porque se a solidão é, para Eurico, algo que cause lágrimas e dor, é também algo que, parece, lhe dá certo prazer.

[15] Idem, Ibidem.

[16] Idem, Ibidem, p. 56.