Conversa com Ricardo Corono

Victor da Rosa

Ricardo Corona é arranjador de palavras? ou desenhista de versos? Como queira, Corona escreve torto por linhas certas, pelo avesso: um criador de signos. [..] Entre palavras e sons, imagens e corpo, nesse intervalo onde já não é mais possível a diferenciação, o artista vai costurando sentidos em potência, perguntando mesmo sobre o fazer com a linguagem – e afetando leitores/vedores com rara sensibilidade. Nessa conversa, Corona fala da trajetória de seu trabalho desde 1999, quando escreveu Cinemaginário, e desdobramentos até 2005, seu trabalho com o som e com as artes plásticas, e a recém publicação de Corpo sutil, fazendo aparecer o caráter múltiplo de suas construções.

Ricardo Corona, divulgação

Victor da Rosa – No teu livro de poemas Cinemaginário(1999), além da referência clara ao cinema no título – ou ao “imaginário do cinema” -, existem vários poemas que exploram com muita força a justaposição de imagens. Gostaria que você falasse um pouco sobre essa proposta de diálogo entre as duas interfaces – poema/cinema e/ou palavra/imagem.

Ricardo Corona – Ainda penso (na esteira de Ítalo Calvino) que há um cinema mental que vem antes da invenção do cinema. Esse pensamento é importante pra mim não só porque deixa claro que a invenção do cinema era inevitável, mas também que a imagem cinética não é uma exclusividade do cineasta ou da linguagem cinematográfica. E é daí, desse contexto, que vem o princípio dialógico da minha poesia com o cinema. Mais do que uma referência, trata-se da invenção de um núcleo que abre muitos níveis de conversa com a imagem em movimento e sempre a partir de um livre fluxo da minha imaginação.

A “palavra/imagem” permitiu-me um deslocamento estratégico da dicção que se apresentava à época, marcada pela logopéia e pelo discurso puramente descritivo. Trata-se de um livro pensado, consciente de que a imagem aparecia como antítese, como desvio.

Victor da Rosa – Pode-se dizer que esse diálogo entre palavra e imagem adquire proporções ainda maiores em Tortografia (2002) – livro que você construiu com a artista plástica Eliana Borges? Tenho a impressão que a visualidade, nesse trabalho, aparece não somente a partir da palavra, mas com a palavra se funde e se torna uma só arte, um só signo.

Ricardo Corona – É possível pensar uma linearidade, digamos, imagética para os dois trabalhos. Uma linearidade que inclua as diferenças, pois, enquanto a imagem em Cinemaginário está ligada ao fluxo imaginativo (próxima do cinema da mente); ao movimento contínuo; às camadas de sentidos e sujeita à edição mental (o corte, o zoom, o close-up do olhar humano) e que vai sendo poéticamente construída com palavras, em Tortografia, a imagem é o objeto, a matéria, o próprio recurso.

Você coloca muito bem quando afirma que em Tortografiaa visualidade nasce não só a partir da palavra. Ela vem do gesto da caligrafia, do clique fotográfico, da montagem da palavra, etc. Materialidades estas, que vêm das artes plásticas, das poéticas de vanguarda e da arte como evento primitivo (coletiva, tribal). Também é um livro absolutamente duchampeano (com a “pegada” DADA do mestre) e antiaffonsorromanodesantana (risos).Tortografia traz uma questão central: quais os limites da linguagem? Em um dos trabalhos procuramos tencionar esse limite colocando lado a lado um postal escrito à mão cem anos atrás e sem intenção artística alguma e uma mensagem eletrônica (por e-mail), que, em princípio, também não tem linguagem. A Eliana achou esse postal na Casa da Imagem e do Som aqui de Curitiba e resolvemos intervir nessa correspondência. O conteúdo do postal é uma carta – talvez amorosa, de amantes – em que a remetente faz comentários sobre suas leituras de jornal, etc. Resolvemos responder, cem anos depois, via e-mail. São contextos e meios que se interpenetram; correspondências garranchosas e/ou tortas sem planos estéticos ou pretensão artística… Criamos um contexto, relacionamos dois tipos de códigos e suportes e brincamos com a idéia de linguagem artística, propriamente dita.

Victor da Rosa – Depois de algumas criações em livros, você se dedica, em um trabalho de 2001, à criação de um “CD de poesia” – que chama de Ladrão de Fogo. Gostaria que, I) você falasse um pouco dessa descontinuidade dentro da tua trajetória e II) como se dá tua relação com a palavra e mesmo com o processo criativo nessas duas formas relativamente distintas.

Ricardo Corona – Ladrão de fogo apresenta descontinuidade porque é um CD e não um LIVRO. Mas eu trabalho com a oralidade desde sempre. A maior parte dos poemas apareceu antes em Cinemaginário, e os outros, que estavam inéditos na época, aparecem agora no meu livro de 2005 (Corpo sutil). Quer dizer, há um conjunto que transita pelos formatos. Em Tortografia, livro de arte, também chamado livro de artista, e que divido com minha mulher, Eliana Borges, que é artista plástica, aparece um conjunto de poemas gráficos, visuais, caligráficos… Bom, acho que levo à risca o toque de Pound: “A poesia está mais próxima da música e das artes visuais do que da literatura”.

Claro que o formato também influencia a forma. A principal diferença é a consciência de que um deles (CD) exige um trabalho mais elaborado com o som. Uma coisa é som em silêncio (que não existe, ensinou-nos John Cage…), descansando na página de um livro, e, outra coisa, é o som no ar. Não que a poesia em livro não tenha som. Mas no livro, há a ilusão do silêncio. Se alguém não tirá-lo da página, aquele som intrínseco do poema existirá apenas como idéia sonora. Para ficar claro o que estou querendo dizer, sugiro aqui e agora, um exercício: O poema abaixo foi criado por um grupo de estudantes (em oficina com o músico canadense Murray Schafer), a partir da audição de um “fenômeno” sonoro. O exercício consiste em identificá-lo? Trata-se de apenas UM tipo de som, que é o som das GOTAS DE CHUVA:

p
pta
petetata
tliptliptlip
bleepblop
pittapitt
betebetebetebete
drimpollillins
plimniblemay
lapluttop
dook
pairleedroms
tilapitatu
cudabulut
ipdes
pelak
schplort
thipthipwoosh

A poesia feita para transcender os limites da página, a partir de associações com sons diversos, traz para si peculiaridades que exigem do poeta novas concepções e, consequentemente, passam a exigir do leitor-ouvinte uma educação auditiva que seja capaz de perceber essa mudança de referenciais. Atualmente, com o aparecimento da gravação digital, que resultou no barateamento da produção sonora, transformando o CD em veículo mais acessível para a experiência “poesia + som”, tornou-se possível a formação de um contexto próprio nessa área da experiência da poesia associada ao som.

capa de Corpo Sutil, último livro de Corona

Victor da Rosa – Você poderia falar mais de teu trabalho com a oralidade – desse ESTILO DA BOCA, como você chama alguns poemas de Corpo sutil? Como você disse, então, é uma proposta que não se limita, necessariamente, à voz e ao materialmente sonoro? De que maneira se dá essa oralidade no papel?

Ricardo Corona – Eu acho sinceramente que a poesia brasileira se afastou do canto, da oralidade, salvo exceções como Vinícius de Moraes e Augusto de Campos, entre outros, claro, mas para ficar com esses dois “extremos”: um é poeta de vanguarda e o outro, popular. Mas não me refiro a essas experiências e sim de um contexto mais orgânico, menos individualizado. A impressão que tenho é que a poesia brasileira se especializou ao silêncio da página. Aqui não tivemos um movimento como o da Beat Generation, por exemplo. E não desejo reivindicá-lo para os tempos de hoje, pois seria ineficaz, além de ingênuo. Mas, por exemplo, poderíamos prestar mais atenção na oralidade que vem da trova e do cordel, ou das nossas mitologias indígenas, que são poeticamente riquíssimas. Segundo Antonio Risério, entre os índios brasileiros, em termos de estética da palavra, os Kuikuro, por exemplo, distinguem o que é fala, fala cantada e canto. E o canto falado cerimonial tem uma forma textual rigorosa, mais ou menos o que nós costumamos chamar de erudito. Quer dizer, há todo um universo poético complexo e de oralidade latente que podemos descobrir e acrescentar à rica poesia brasileira… Então, em “Estilo da boca”, seção do meio de Corpo sutil, que abre com uma epígrafe de Jean-Joseph Rabearivelo, o poeta da grande Ilha Vermelha (Madagascar): (…) chants en quête de paroles / pour peupler le silence du livre(Cantos em busca de palavras /para povoar o silêncio do livro), procurei evocar essa poesia. Trabalhei com adaptações (livres) ou meras referências de lendas Suruí, Tupinambá, Pigmeu, Ianomâmi… Acho que isso é uma maneira de trabalhar com a oralidade, ou seja, trazendo-a para a página do livro. Uma coisa que entendi de imediato é que esse tipo de poesia deve dispensar o hermetismo. Um canto poético tem estrutura simples e trabalha mesmo com o som da palavra. É a associação do simples com o sofisticado:

BAKA

palma da mão
baka
alma baka
na mão

palma da mão
baka
bate n’água
rebate n’alma

alma baka
na mão
bate n’água
rebate n’alma

palma da mão
baka
alma baka
na mão

Victor da Rosa – E em teu trabalho também entra a pesquisa com o corpo – falo, agora, não mais no corpo da palavra, nem no corpo do som, mas no teu próprio corpo como suporte textual, já que você realiza poemas também em performances.

Ricardo Corona – Não me considero um performer, no sentido de usar o corpo como uma linguagem. Não que seja contrário a essa utilização. Mas o que faço é simplesmente transformar-me em veículo da minha poesia. Os índios trabalham muito bem essa mítica do poema lido em voz alta. Eles possuem uma cosmogonia, um imaginário próprio, um “algo mais” que está sempre presente. Penso que alguns poetas têm isso. No meu caso, como não escrevo a partir de um vazio, isso tem certa “força”, capaz de transformar o fingimento em verdade. Tenho dificuldade de dizer poemas de outros poetas. Tenho que me identificar muito com o texto, incorporá-lo. Eu tenho que roubá-lo. O poema “Pessoa ruim” eu o escrevi porque tinha muita vontade de dizer “O poema em linha reta”, de Fernando Pessoa.

Corona realizando uma leitura de seus poemas no SESC de Florianópolis – fotografia de Eliana Borges

Victor da Rosa – Para finalizar: I) como você percebe a condição do artista nesse início de século, quando ainda se insiste em falar de esgotamento criativo, e II) como você concebe a tradição no teu trabalho?

Ricardo Corona – Ainda se fala em esgotamento criativo?

Victor da Rosa – Eu acho que sim, não? De vez em quando, ainda.

Ricardo Corona – Não tenho lido crítica literária… Eu não sei como se pode esgotar a criatividade!? Acho esse conceito muito ligado à idéia do novo. A invenção, muitas vezes, não quer apresentar o novo, mas passar por uma experiência, o que, por sua vez, sempre se dará num processo criativo. A criatividade é inesgotável. Cito o exemplo de Ronaldinho Gaúcho, que veio depois de Garrincha…

A tradição me interessa muito. A minha poesia tem muitos poros em que respiram desde, por exemplo, o verso-ambiente e polifônico de Cruz e Sousa à verve de Maiakovski e Ginsberg; do trans-sentido de Khlébnikov ao verso-suicida de Iessiênin… Ultimamente tenho buscado obsessivamente o grande silêncio do poeta catalão Carles Camps Mundó e, sobretudo, a tradição viva dos poetas yanomami Koromani Waica, Mamokè Rorowè e Kreptip Wakatautheri, que tenho a oportunidade e a honra de ser amigo.