Entrevista com Ricardo Aleixo

Manoel Ricardo de Lima

Ricardo Aleixo é poeta, músico e ensaísta. Autor, entre outros, dos livros Trívio e Máquina Zero. Site de Ricardo Aleixo: [http://jaguadarte.zip.net]

 


 

Num tempo em que até os silêncios são estridentes, faz bem ouvir – ou, no caso desta entrevista, realizada por e-mail, imaginar que se ouve – a voz calma e ponderada de Manoel Ricardo de Lima. Nascido no Piauí, o poeta e ensaísta vive atualmente em Florianópolis, depois de ter vivido muitos anos em Fortaleza, cidade com a qual ainda mantém vínculos afetivos e culturais. Manoel Ricardo é autor de dois livros de poemas, ambos publicados em 2000 (Embrulho e Falas Inacabadas – objetos e um poema, este em colaboração com a artista plástica gaúcha Elida Tessler), um de ensaios – Entre Percurso e Vanguarda: Alguma Poesia de Paulo Leminski, fruto de sua dissertação de mestrado – e um, As Mãos (2003), que, à falta de melhor “classificação”, pode ser lido como prosa. Projetando-se no contra-fluxo tanto dos confessionalismos quanto dos esquematismos formais que predominam na poesia brasileira de agora, a escrita de Manoel Ricardo de Lima tira partido dos espaços “entre” para, sem pressa, quase tocando o silêncio, re-inserir o pensamento como elemento de composição poética. Como eu disse dias atrás, aqui mesmo, o nome dele é para ser muito bem guardado.

Ricardo Aleixo – Manoel, desde quando você escreve? Poesia, sempre?

Manoel – De fato, meu querido Ricardo, eu escrevo poemas quase nunca. Escrevo pouco. Muito pouco. Sou professor na universidade desde 1997, e isso me toma muito, e gosto. Mas tenho impressão que estou sempre pensando um trabalho novo, porque estou sempre distraído por alguma coisa que está fincada no meio do meu juízo, ou na falta dele, em forma de palavra, objeto ou peça pregada. Não tenho pressa, nem nunca tive, com isso do escrever e menos ainda com isso de publicar. Publiquei meu primeiro livro aos 30 anos, o Embrulho. Que foi resultado de mais de 10 anos rabiscando e pensando coisas e muito mais jogando coisas fora. E mesmo assim foi complicado, incerto, inseguro. Acho escrever muito difícil, mesmo que sempre me traga muito alegria, mas prefiro muito mais ler. E confesso a você que não entendo mesmo a quantidade de pressa que tenho visto e mais ainda a quantidade de livros ruins, que são apenas livros, empilhados, mas que não trazem neles um trabalho. Há o livro, mas não há um trabalho dentro, nenhum pensamento. E isso me encafifa, sempre.

Ricardo Aleixo – Sua poesia demonstra uma grande acuidade visual – e você tem trabalhos em colaboração com artistas plásticos. Fale um pouco a respeito.

Manoel – Eu hoje me interesso muito mais por artes visuais do que por literatura. Ao menos, agora, em nosso tempo e, principalmente, no nosso país. E isso foi natural, não precisei forçar a barra para deslocar o olhar. E quando converso com alguns amigos artistas eles sempre me devolvem ao meu cansaço com a literatura o cansaço deles com as artes visuais, e alguns deles, como Eduardo Frota e Elida Tessler, com quem converso mais e muito, gostam muito de literatura e muitas vezes até a preferem. E acho isso engraçado. Mas acho que é um pouco assim, pra ficar mais divertido e mais bacana, gosto desses avessos. Meu interesse também não é de forma acadêmica, mas são algumas questões que acho estão mais tensas e problematizadas pelas artes visuais, muito mais que no poema, e que me fazem tensionar também o meu trabalho dentro do que me interessa. Quando fiz o livro com a Elida, em 2000, o Falas Inacabadas, foi muito vizinho ao Embrulho, que já estava na editora, sendo impresso, daí, o Falas é uma outra coisa porque tem o trabalho da Elida, no meio, e tem as conversas com a Elida, e tem o que eu já estava tentando armar pra mim, como armadilha mesmo, de uma outra forma, que nem era mais o que estava no Embrulho. Assim, meu primeiro livro, o Embrulho, apareceu depois do meu segundo livro, o Falas Inacabadas. E meu segundo livro, que não é só meu, sempre me avisa melhor aquilo que penso para meu trabalho, a linha de entres que ele me aponta. Agora, bem de verdade, eu sou um distraído que presta atenção muito rapidamente às coisas, e não sei como elas se fixam, mas sei que tenho uma memória prodigiosa, e daí, penso, vem este quase apuro a um certo tipo de visualidade no meu trabalho, que é uma raspa, eu sei, uma gagueira, também sei, mas agora e cada vez mais numa linha maior de tensões.

Ricardo Aleixo – Daí, a experiência deste seu outro livro, quase em prosa, As Mãos, com as gravações da fitas?
Manoel – Um pouco isso. A experiência do As Mãos é uma continuidade do percurso que tenho impressão vem muito mais do Falas do que do Embrulho, e este como um apontamento do que não quero mais fazer (eu passei a gostar mais e mesmo do Embrulho depois que o Mané – Manuel da Costa Pinto – me disse que achava um livro bem legal). As Mãos é a experiência de uma intervenção, e não apenas um livro. E isso me interessa. Primeiro que eu queria dizer a mim mesmo que isso de poema ou de prosa não tem mais a menor importância, isso é discussão acadêmica, e isso não me interessa como criador; depois, como minha pesquisa passa por uma sugestão da cidade, eu queria pensar a cidade não mais como tema, mas como uma possibilidade de respiração, uma coisa mais corpórea, mais perto da dança contemporânea, talvez, como movimento, como gesto, como este corpo que não consegue permanecer de pé e que se arrasta, que cai, no chão. Pensei que um bom caminho seria pedir a alguns amigos que me gravassem trechos do livro. Um princípio de ter outras vozes, outras sintaxes orais sobre minha sintaxe de escrita, agora num verso longo, inteiro, esparramado em 50 páginas até arrebentar sozinho. E dividi este verso em vários pequenos versos, e passei aos amigos, pra montar uma cidade, uma babel, com várias vozes e dicções e formas de montar. Daí, me interessava pessoas que tinham alguma relação com o texto, mesmo que não fossem escritores, mas que fossem principalmente pessoas a quem eu tivesse algum afeto de amizade. E aí, deu isso, um monte de gente que passa pelo cinema, pela artes visuais, pela psicanálise, pela escrita, e vai de você ao Tarso de Melo, do Edson Sousa ao Bruno Zeni, da Renata Gomes ao Alexandre Veras, do Nelson de Oliveira ao Fabio Weintraub. Bom, eu tenho 28 fitas. São fitas cassete pra que não tenham nenhum sentido de permanência, elas envelhecem rápido e quase não há mais onde tocá-las. A permanência é uma outra coisa que me incomoda muito em literatura; ver uma gente de menos de 30 anos querendo já ter um julgamento para a posteridade; eu queria então fincar um projeto que acabasse, que não permanecesse; e monto nos lançamentos o livro em outra seqüência, sempre aleatória, com outras vozes, para que ele também desapareça ao final do lançamento. É um brincadeira que chamo de livro invisível, mas séria, e que passa por essas mínimas coisas que quero dizer.

Ricardo Aleixo – E a música? De que modo ela participa do seu processo de criação?

Manoel – Ih, Ricardo, agora você me pegou. Eu nunca pensei nisso. Gosto de música, muito. Mas não sou auditivo, e olhe que arranho um violão bem direitinho, mas tenho que gravar os acordes, não sou auditivo mesmo. Tenho dificuldade. Não sei se consigo te dizer o quanto de música no meu trabalho, talvez uma ausência dela, ou a tentativa de uma musicalidade na minha sintaxe, que é tão absolutamente quebrada que pode ser outra coisa. Tenho uma amiga, Fabiana Macchi, excelente tradutora, professora da Universidade de Zurique, que sempre chama atenção pra esta minha sintaxe, não como um cacoete, porque tomo um cuidado danado pra não virar isso, mas ela chama atenção pra apontar uma certa ausência de musicalidade, uma certa secura que ela costuma dizer ser uma coisa que ela gosta muito, e que ela acha bem diferente do que tem visto no Brasil. Bom, fico vaidoso, óbvio, porque não sou tolo de não ficar, mas fico mais atento ainda pra não virar mesmo um cacoete e pensando nas maneiras que posso trabalhar pra ir mais longe ainda, para mim mesmo. Que é para isso que acho fazemos o nosso trabalho, quando é feito com dignidade, pra não morrer. Só isso.

Ricardo Aleixo – “Nascer no Piauí, ser fêmea de cupim”, você escreveu outro dia acerca de seu conterrâneo Torquato. Qual o lugar ocupado pelo Piauí no seu roteiro vivencial e estético? E o Ceará? E a experiência no Sul, em Floripa, como tem sido?

Manoel – Bom, Ricardo, toda a minha pesquisa passa por um certo deslocamento pela cidade, e como dizia há pouco num prefácio para o próximo livro do Carlos Augusto Lima, que somos de cidades (eu de Parnaíba e ele de Fortaleza) que tiveram importância fundamental na nossa formação por causa de uma linha horizontal que acompanhou toda a primeira infância e que depois, num outro momento, e aí, e também já morador de Fortaleza, fui pra lá aos 15 anos, nos deparamos com o esfacelamento e o desaparecimento dessa linha de horizontes e com a construção enlouquecida de linhas verticais, artificiais, que nos arrancavam o mar e o rio (que é a imagem que mais carrego comigo, a do rio Parnaíba, forte, caudaloso, de vincas, rasgando a cidade ao meio), e que são estas linhas que vão empatar o desejo, o olhar ao longe. Há uma passagem aí, e esta passagem me interessa: a do olhar longe e esticado ao olhar curto e confinado. Outro dia vi alguém dizer uma bobagem que só poderia escrever sobre a cidade no Brasil quem vive em São Paulo. Poupo o nome do equivocado, que no mínimo não viaja este país e não tem dimensão dele. Nem muito menos das cidades que nos desenham, às avessas. Aí o Piauí é fundamental pra mim, Parnaíba é fundamental: é o rio. Estar morando em Florianópolis hoje é um pouco a tentativa de recuperar esta minha primeira linha de afetos externos, a do mar. Morar uma ilha é muito interessante. E me provoca nesse deslocamento de cultura que é este país, e mais ainda no pouco que se anda por ele. Ao mesmo tempo que me mantém margeando, porque meu trabalho passa por isso também, do meu margear vagaroso ao que seria o centro nervoso e frágil do país. O fato é que a literatura brasileira, meu bom Ricardo, hoje, viaja muito pouco este país. Mal sabe dele. Ela é umbigal, quase, feita e projetada a partir de um mesmo lugar. Logo, não pode ser brasileira. Isso fazia sentido até o primeiro modernismo, agora não faz mais nenhum, acho eu. O Brasil ficou pequeno, menor, e há que se andar por ele, se prestar atenção a ele. Podíamos enriquecer e muito a nossa produção se isso fosse feito. Acho que os artistas visuais viajam mais e incorporam melhor o país; sim, tá, tudo bem, devido a um circuito de arte, enfim, mas viajam mais; e talvez por isso me interesse muito mais por eles e pelo trabalho deles. Mas isso também é muito particular, não creio que seja regra, longe disso.

Ricardo Aleixo – A ensaística é outra de suas atividades. Além disso, você é presença marcante na discussão pública sobre poesia no Brasil. Que análise você faz do quadro atual de nossa poesia?

Manoel – Tenho uma forte impressão de divergência comigo mesmo acerca da produção de literatura hoje no Brasil. Isso de ter o espaço no O Povo, em Fortaleza, desde 1992, me colocou quase obrigatoriamente em contato com muito do que se publica no país. Hoje também colaboro para o JB [Jornal do Brasil], do Rio, e para o DC [Diário Catarinense], aqui de Florianópolis. É importante dizer também que eu e Carlos Augusto Lima abrimos lá, no O Povo, um espaço para uma discussão rara neste país, e digo isso sem nenhuma modéstia mesmo, porque nem carece, porque feita com abertura para a diferença e com delicadeza (tem uma mostra disso agora numa revista da UNB [Universidade de Brasília], a Cerrados), ao mesmo tempo que é importante apontar que o Nordeste está sempre muito atento ao que se produz no país, e talvez até mais porque o olhar pede mais abrangência, é mais largo, e aí cito não só o trabalho da gente no O Povo, mas o trabalho que é feito no Correio, da Paraíba, por exemplo, pelo Linaldo Guedes. Sem falar no Jornal do Commercio, do Recife, no A Tarde, da Bahia etc. E isso tem gente que não sabe, nem de longe. Assim, muitas vezes me deparo com uma opinião minha que é uma variante: numas vezes acho muito legal o que se anda fazendo, noutras, e aí, maior parte das vezes, acho tudo muito apressado, muito sem prumo, sem pensamento, sem risco, sem trânsito, sem descolamento. Porque também acho que há uma resenharia e uma crítica conformada demais, confirmada demais, e que parece precisa dar lugar a tudo, dar logo um adereço fundamental a qualquer livro que se publica ou a qualquer trabalho que é muitas vezes só uma repetição do de sempre. Assim, tudo parece legal e fundamental aos quadros da literatura contemporânea, o que é uma forma ruim de cartografia. Muito afirmativa. Até porque, penso, a forma de ler as coisas ainda é muito moderna e muito literária demais: ainda se fala em obra prima, em posteridade etc. E isso me cansa um pouco. Mas é minha maneira, meu jeito, também muito provável visto como equivocado ao olhar de alguém. E acho importante que se tenha uma crítica e um olhar crítico a partir de quem também se exerce como criador, esse olhar sempre me interessa mais, muito mais. Pra te dar um exemplo de outra coisa que me preocupa, outro dia vi um livro que se chama A nova literatura brasileira, livro que é um conjunto de pequenas narrativas. Caramba, abri o livro, é um livro quase carioca. Como brasileira?? É este buraco que precisa ser visto, ser ao menos problematizado, ao menos apontado como deficiência na hora de ler as coisas. Acho que seria muito legal se tentássemos aprender a ler este país e sua produção a partir, por exemplo, de uma idéia do deserto.

Ricardo Aleixo – Está com algum novo projeto de livro em curso?

Manoel – Tenho sim um projeto de livro, ou dois. Sem nenhuma pressa, para quando e se. E se, como sempre, provável, sem orelha nem prefácio de ninguém, como tem sido. Se você lembrar, o Embrulho nem orelha tem. E nos outros eu mesmo fiz tudo. Mas estou me interrogando ainda se quero publicar, apenas. Porque depois do Falas Inacabadas e da experiência com o As Mãos, eu queria tentar experimentar outra coisa. Mas não tenho habilidade de pensamento pra isso. Nem talento. E talvez apenas publique mesmo, o que já é muito, se eu conseguir fazer um livro que seja um rasgo no meu trabalho. Tenho experimentado outras coisas com o texto, que não é novidade nenhuma, mas para mim e para o meu trabalho é, e é isso que me interessa, como experiência mesmo, como no dito do Richard Serra, o escultor: “… me defrontar com uma situação que está além das possibilidades de realização. Inventar métodos sobre os quais não sei nada, utilizar o conteúdo da experiência de modo que ela se torne conhecida para mim, e então desafiar a autoridade dessa experiência e desse modo desafiar a mim mesmo”. Um pouco isso.