“Memórias de um sargento de milícias”: peculiaridades e controvérsias de uma fortuna crítica

Mardelene de Carvalho Freitas

Memórias de um sargento de milícias
é um estudo ameno e precioso
de antigos costumes do país,
que brilhou como aurora promissora
de fulgurante dia.
Joaquim Manuel de Macedo

Provavelmente Manuel Antônio de Almeida ao escrever e publicar a sua obra Memórias de um sargento de milícias, no ano de 1855, assinada com o pseudônimo “Um Brasileiro”, não imaginou ou sequer previu a polêmica que se formaria em torno do seu texto, até os dias de hoje. No entanto, inserido em um contexto literário e em uma realidade político-social específicos e conhecendo bem o texto que acabara de escrever, poderia supor que sua obra estaria, de certa forma, deslocada, em meio ao conjunto de textos ficcionais produzidos na mesma época, aspecto que a levaria a se tornar um livro singular na paisagem romântica brasileira.

Antes mesmo da publicação do livro, o texto foi divulgado no suplemento dominical “Pacotilha” como um folhetim, sem a assinatura do autor, entre 27 de junho de 1852 e 31 de julho de 1853. A obra contém os elementos típicos de um folhetim, composto por capítulos curtos, publicados semanalmente, de maneira a instigar no leitor a vontade de continuar a leitura no capítulo seguinte. Logo após sua morte, ocorrida em 1861, a obra teria uma nova edição impressa pela Tipografia Brasiliana de Maximiliano Gomes Ribeiro, permanecendo assinada com o pseudônimo anteriormente utilizado, apesar do conhecimento, por parte de todos, da verdadeira autoria. Ainda sobre o suposto pseudônimo utilizado por Manuel Antônio de Almeida, em seu texto Galhofa sem melancolia: as Memórias num mundo de Luzias e Saquaremas, Mamede Mustafa Jarouche enfatiza:

Aliás, o fato de uma obra ser publicada anonimamente ou sob pseudônimo não significava que se desconhecesse o nome exato de seu autor. Num ambiente acanhado, como era o caso da Corte, existiam várias maneiras de fazer que esses homens certos soubessem quem era o autor. (JAROUCHE, 2000, P.31)

Alguns críticos afirmam que se tratava de uma profissão de fé nacionalista. Pode ser. Contudo, nunca é demais lembrar que portugueses e até franceses radicados no Brasil já haviam assinado textos com o pseudônimo “Um Brasileiro”. Talvez tencionassem, com isso, demonstrar seu amor ao País. Quem sabe? Outros críticos garantem que “Um Brasileiro” seria simples referência ao fato de tratar-se de uma produção nacional, e não de tradução do francês ou de outra língua. Mas tampouco esse ponto de vista está livre de questionamentos, pois não era inusual a publicação de traduções com igual pseudônimo (traduzido por “Um Brasileiro”) (JAROUCHE, 2000, p.41).

Memórias de um sargento de milícias é uma obra que possui uma fortuna crítica constituída de opiniões complexas e, na maioria das vezes, divergentes, por apresentar, na composição do texto, aspectos incomuns à estética da época e, principalmente, elementos temáticos não utilizados por outros autores do período no qual foi escrito, fazendo dele uma obra peculiar. A crítica literária brasileira produzida na década da publicação assumiu uma postura indiferente à obra: as abordagens foram poucas e desprestigiadas, prejudicando a sua divulgação. Pessoas próximas e afetivamente ligadas a Manuel Antônio de Almeida tentaram modificar esse panorama ao divulgarem, logo após sua morte, as primeiras considerações a respeito da obra e de sua figura enquanto escritor. O autor de Memórias sofreu uma trágica morte aos trinta anos de idade, ocorrida no naufrágio do navio que fazia o transporte do Rio de Janeiro a Campos, onde começaria sua campanha política para deputado. Uma iniciativa insuficiente de seus amigos, pois não possibilitou, ainda no século correspondente ao seu surgimento, justa carreira crítica à obra. Encontrará somente no século XX a devida valorização.

Se, com a nova edição de 1863 – proposta e realizada por Quintino Bocaiúva após a morte do autor e a primeira a atribuir a autoria do texto a Manuel Antônio de Almeida – crescia a recepção e aceitação do romance pela população, o mesmo não ocorria entre os literatos contemporâneos a ele. Talvez esse fato tivesse explicação por seu texto retratar particularidades da sociedade brasileira, ignoradas pelos demais em suas obras encarnadas do mais tradicional estilo romântico vigente no período. Ou pudesse encontrar respaldo justamente no fato de utilizar a linguagem coloquial e cômica que o diferenciava das narrativas tradicionais do Romantismo, mas que o aproximava da linguagem empregada nos textos da “Pacotilha” e dos jornais para os quais o próprio Manuel Antônio de Almeida trabalhou. Neste sentido não seria novidade para seus contemporâneos, que já estariam acostumados com essa linguagem, utilizada por ele e presente nos jornais e no falar cotidiano.

Realmente, no século do seu surgimento, as Memórias não terão da crítica e daqueles que lidam com literatura, razoável abordagem, mesmo – ou justamente por isso – trazendo em seu inusitado texto, marcas do Romantismo e, até mesmo, de um Realismo antecipado, como defendeu José Veríssimo no final do século XIX, período no qual esse movimento existiu. Seus argumentos valorizavam a obra e seu autor e tiveram sustentação nas detalhadas descrições de costumes, lugares e paisagens do Rio de Janeiro na época do governo de D. João VI encontrados no texto. José Veríssimo sugeriu aquela que seria a leitura crítica mais interessante da obra de Manuel Antônio de Almeida nesse século. Alguns críticos, já no século seguinte, defendem argumentos que reiteram a visão de José Veríssimo enquanto outros se mantêm contrários a ela. Marques Rebelo divulga essa idéia ao sustentar que Memórias foi um romance precursor do Realismo-Naturalismo. No entanto, ele inova, afirmando que seu autor:

…não foi para o Brasil apenas o precursor do naturalismo, foi principalmente o precursor do romance moderno, e é nele que vamos encontrar a legítima ascendência de um Antônio de Alcântara Machado, morto igualmente pouco depois dos trinta. (REBELO, 1943, p.38).

Sugerindo uma posição um pouco mais inovadora com relação à indiferença manifestada pela crítica, com a qual conviveu a obra no século XIX, de acordo com Marcus Vinicius Nogueira Soares:

O extremo desta posição seria formulado por Bernardo de Mendonça ao ver, no descaso crítico das Memórias no século XIX, um sintoma do processo de adiamento da modernização da sociedade brasileira, uma vez que Manuel Antônio de Almeida era um “precursor do espírito moderno” e não somente de um estilo ou estilos literários (SOARES, 2003, p.510)

Para Rebelo, na obra escrita por Manuel Antônio de Almeida estaria, também, a origem da literatura brasileira por retratar aspectos da cultura do país de uma maneira que até aquele momento não haviam sido retratados pela literatura. Rebelo reconhece a importância dos autores românticos e a dedicação à construção de uma identidade nacional tão almejada no período, mas ao mesmo tempo critica esses mesmos autores, considerando o caráter reprodutor de suas obras, se comparados aos escritores europeus e, conseqüentemente, uma carência com relação à representação de elementos típicos daquilo que ele chama “brasileirismo”.

Além disso, o autor de A estrela sobe retoma a observação feita por Mário de Andrade em seu texto introdutório de uma edição de Memórias de 1941, de que existe uma semelhança estilística entre os romancistas Manuel Antônio de Almeida e Machado de Assis. Nas palavras de Mário de Andrade “havia mesmo na maneira com que Manuel Antônio de Almeida se exprimia algo do estilo espiritual de Machado de Assis” (ANDRADE, 1940, p. 134), referindo-se à ironia que corporifica o texto Até mesmo a maneira como foram nomeados os capítulos de Memóriasremete ao estilo machadiano se pensarmos na ironia proposta em, por exemplo, “A morte é juiz”, “A comadre em exercício” e “O -arranjei-me – do compadre”.

A forma de correspondência com o narratário, convocando-o a participar mais ativamente do processo de leitura, também aproxima os estilos. Para ilustrar, no capítulo XIII, intitulado “Mudança de vida”, o narrador expõe o comportamento de Leonardo no período em que estudava. Entre uma travessura e outra, começou a faltar às aulas: ao invés de ir para a escola, ele ia para a igreja da Sé. Nesta passagem, o narrador coloca: “O leitor compreende bem que isto não era de modo algum inclinação religiosa…”, sugerindo uma leitura que dependerá de possíveis associações feitas pelo leitor/narratário considerando a composição do texto até aquele capítulo.

A crítica ao romance encontra significativo desenvolvimento no século XX, com o intuito de demonstrar como a narrativa se desvencilha do formato das obras pertencentes ao período romântico no qual surgiu, principalmente dos temas e da maneira de abordar a sociedade brasileira. Até mesmo a visão proposta anteriormente por José Veríssimo, que aproxima o texto do movimento posterior ao Romantismo, o Realismo-Naturalismo, é retomada por outros críticos. A obra de Manuel Antônio de Almeida então é vista por diferentes e divergentes olhares que estarão de acordo com o aspecto escolhido e destacado do texto para possível análise.

A dinâmica observada nos estudos sobre Memóriasimprime um caráter anacrônico ao texto, assinalada pelas diferentes abordagens críticas encontradas. A própria obra nos remete a um movimento possível, a uma não fixação, tanto dentro do universo ficcional constituído de sucessivos acontecimentos, quanto fora dele, numa alusão à trajetória do romance dentro da tradição literária brasileira. O narrador se desloca no tempo durante toda a narrativa para dizer dos costumes sociais específicos da cultura brasileira do início e meados do século XIX. Esse movimento também aparece refletido no desenvolvimento da crítica através de suas leituras. Marcus Vinícius Nogueira Soares parece resumir o processo camaleônico pelo qual atravessou a fortuna crítica acerca de Memóriasnuma passagem em seu texto Nenhum Brasil existe – Pequena enciclopédia:

“Nesse sentido, o texto das Memórias seria revisto de acordo com duas diferentes perspectivas, ambas coincidentes ao conferir ao romance um caráter anacrônico: por um lado o romance se caracterizaria por recuar na série literária, já que recupera tradições há muito esquecidas; por outro, se antecipa à série, sendo assim considerado um precursor do Realismo/Naturalismo e do Modernismo da década de 1920. No primeiro caso, se situam os textos de Mário de Andrade e Josué Montello; no segundo, os textos de José Veríssimo, Marques Rebelo e Bernardo de Mendonça. (SOARES, 2003, p. 508)

Como estratégia estilística ao esboçar o movimento ativo das memórias, o narrador, através da expressão “No tempo do rei” e das constantes expressões que a reiteram como “daquele tempo”; “naquele tempo”; “naqueles devotos tempos”; “na época em que viveram”; além daquelas que marcavam o período no qual se encontrava o narrador como “ainda hoje”; “do que as de hoje”; “ainda é hoje”, expõe um deslocamento dentro do próprio texto entre períodos distintos da sociedade brasileira:

A estrutura das Memórias de um sargento de milícias é permanente alternância: quadro/ação, espaço/tempo, horizontal/vertical. Esse princípio estrutural se repete ad infinitum, de modo que ao quadro se segue a ação, a esta ação se segue outro quadro, e assim por diante. O autor descreve um quadro de época, começando pelo “canto dos meirinhos”; em seguida, fazendo um retrocesso no tempo, apresenta a – digamos – gênese da personagem. Este primeiro episódio abrange, conforme a Natureza, pelo menos nove meses, e continua, após um salto de alguns anos, até o cap. III, quando se apaga diante do quadro “Via Sacra”. No final desse quadro entra o Leonardo em cena na procissão (GALVÃO, 1976, p. 28).

A ação de Memórias de um sargento de milícias se passa no período no qual Dom João VI permaneceu no país, quando o Brasil foi sede da monarquia portuguesa, entre 1808 e 1821. Imbui-se da trajetória aventureira de Leonardo Pataca, um meirinho do “tempo do rei” e de seu filho, também chamado Leonardo. O ato de narrar as peripécias de Leonardo e do grupo social com o qual se relacionava, ocorre no tempo presente do narrador, entre os anos de 1852 e 1853. Por isso o uso da expressão “no tempo do rei”. Esse movimento possibilita ao narrador fazer comparações entre os dois momentos, com o intuito de descrevê-los e criticá-los. O narrador de Memórias abre o texto apresentando ao leitor/narratário o processo criativo com o qual a obra se estabelecerá:

Era no tempo do rei.
Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo – O canto dos meirinhos -, e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e respeitada: formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo.(ALMEIDA, 1963, p.7)

Trata-se, como foi dito na época na qual surgiu, de “um romance de costumes brasileiros”, denominação registrada na capa do primeiro volume da edição de 1875 como subtítulo, o qual não constava do original. O relato das vivências de Leonardo pai e de Leonardo filho expõe ao leitor verdadeiras pinturas da sociedade carioca, seus costumes, comportamentos e crenças do período.

Não podemos nos esquecer do envolvimento de Manuel Antônio de Almeida com a política e o que representava para ele a presença do rei no Brasil. O autor descreve e compara a cultura brasileira referente aos dois períodos históricos citados na narrativa, utilizando a ironia para mostrar as mazelas sociais, numa tentativa de esclarecer que os defensores do “tempo do rei” estariam equivocados em afirmar que o governo déspota desenvolveria a sociedade brasileira com o passar dos anos. Aqueles que eram adeptos do liberalismo não concordavam com o posicionamento do rei por achar que um governo tirano como o que se praticava no Brasil atrasaria o desenvolvimento social, gerando pessoas ignorantes e rudes. Nesse sentido, o texto de Memórias se apresenta como uma espécie de denúncia das equivocadas práticas políticas:

Malgrado as Memórias de um sargento de milícias não apresentem uma única frase diretamente partidária, muito de seu conteúdo – as críticas aos sistemas judiciário e educacional, à polícia, ao clero, aos imigrantes portugueses, ao sistema de proteção e empenho, além do próprio comportamento “solto” demais das personagens (a grande maioria não tem educação) – pode ter sido lido como alegoria da situação presente do Brasil. Alegoria porque o texto, escrito em 1852 – 1853, enfoca o Brasil da época do rei Dom João VI (1808-1821). O que o autor pretendeu dizer? Talvez, de forma irônica, ele estivesse insinuando que o Brasil de seu tempo (1852-1853) não seria lá muito diferente do Brasil no tempo de Dom João VI. Nesse sentido, as Memórias poderiam constituir uma espécie de sátira social, texto por meio do qual se condena a sociedade contemporânea. (JAROUCHE, 2000, p. 33)

O Brasil, para se desenvolver e se tornar um país civilizado, precisaria investir na educação social de seus cidadãos, aspecto não considerado pelos governantes e abordado por Manuel Antônio de Almeida na construção dos personagens em sua narrativa. Todos os personagens em Memórias, sem exceção, apresentam comportamentos considerados inadequados, além da visível falta de uma mínima formação intelectual. Os personagens são espertos e resolvem seus problemas com certa malandragem. Até mesmo a figura do Vidigal – referência ao chefe de polícia Miguel Nunes Vidigal, um legítimo representante da lei na cidade do Rio de Janeiro do início do século XIX, conhecido pela eficiência e violência dos seus métodos investigativos e punitivos -, que no texto ficcional, para conseguir manter a ordem, lança mão de variados meios, sem exceção, para se informar dos fatos suspeitos e, ainda usando de esperteza, conseguir retirar de circulação o sujeito considerado vadio, vagabundo.

Mário de Andrade, no texto de introdução da edição referente ao ano de 1941, chama a atenção para a presença do elemento picaresco na obra. De acordo com o escritor, o livro seria um romance marginal e estaria afastado do fluxo médio das literaturas, por recuperar uma tradição remota, anterior ao seu tempo, ou seja, a literatura picaresca espanhola. Este gênero teve início na Espanha do século XVI com o surgimento da obra A vida de Lazarillo de Tormes, estendendo-se pelo século seguinte com outras obras como Gusmán de Alfarache, de Mateo Alemán, e Vida do Escudeiro Marcos de Obregón, de Vicente Espinel, entre outros. A obra picaresca se caracteriza pela narrativa da vida do pícaro, uma espécie de anti-herói, geralmente narrada em primeira pessoa. O pícaro é um aventureiro esperto, que vive às margens do “sistema social oficial”, na fronteira entre o malandro e o bandido. Geralmente não são poupados pela condição social desprivilegiada, além de serem marcados e perseguidos por um destino, uma sina desfavorável, punitiva e intolerante.

O personagem Leonardo, para Mário de Andrade, se caracteriza como “um bom e legítimo pícaro”. No texto introdutório à edição de 1941 o escritor e crítico defende, como se estivesse narrando uma história ficcional, uma associação entre aquilo que é narrado sobre ambos os Leonardos, a própria vida de Manuel Antônio de Almeida e a figura do pícaro, sugerindo semelhanças nos comportamentos, principalmente na maneira de encarar e viver os acontecimentos. Mário de Andrade embasa sua comparação, fundamentado em informações sobre a vida do autor das Memórias. Manuel Antônio de Almeida nascera numa família pobre, sendo o pai um militar e a mãe dona de casa. Provavelmente, a educação que recebeu não tivesse como modelo a educação burguesa, e suas experiências pessoais encontrassem na condição e na cultura das classes populares um respaldo:

Que “pícaro” fora ele também, o nosso Maneco Almeida. Nascera na cidade do Rio de Janeiro a 17 de novembro de 1831: de pai que era tenente apenas e família muito pobre. O menino não teria por certo largos carinhos de educação burguesa, filho de soldado, num tempo em que o serviço da guerra dependia pouco de estudos, ainda menos de boas maneiras e procriava freqüentemente ótimos cantadores de modinhas. O mais provável é que Maneco, além do amor dos pais, tivesse a experiência do ar livre e recebesse o aprendizado da rua. (ANDRADE, 1940, p. 125).

O esboço comparativo entre as aventuras de Leonardo e a trajetória do “Maneco Almeida”, apelido atribuído ao autor pelas pessoas íntimas e retomado por Mário de Andrade, alonga-se por relatos de acontecimentos relacionados à vida adulta do autor, ao processo de elaboração da obra, repleto de interpretações e suposições, numa tentativa de confirmar a tese de que Memórias de um sargento de milícias é um romance picaresco. Destaca, também, o caráter cômico da narrativa, considerando que o texto, nas palavras de Mário de Andrade, “Tem mesmo a ingenuidade da farsa, que o faz por vezes perder o senso mais apurado da comicidade em cenas do mais popular burlesco, como no caso dos dois padres pregando juntos” (ANDRADE, 1963, p. 23). Porém, sua análise crítica não explora e não aprofunda a comparação que faz, e se fixa, principalmente, no relato dos costumes e das tradições folclóricas encontradas nas Memórias.

Críticas posteriores argumentam contra a associação entre as Memórias de um sargento de milícias e a tradição picaresca. Para Walnice Nogueira Galvão, em seu texto intitulado “No Tempo do Rei”, as Memórias se distanciam da novela picaresca já que a construção do texto não está, todo o tempo, centrado no herói. Na novela picaresca, o herói está presente em todos os episódios, existem as descrições dos costumes e dos ambientes, no entanto, principalmente como pano de fundo para as aventuras do pícaro. Nas Memórias, Leonardo não aparece em todos os capítulos, em alguns os fatos narrados estão relacionados aos seus atos e em outros o herói nem sequer é citado. Neste sentido, a obra de Manuel Antônio de Almeida possui uma estrutura complexa se comparada com as obras picarescas, por não concentrar e delinear a narrativa exclusivamente a partir das ações do herói. A estruturação do tempo na narrativa também distingue o romance de Manuel Antônio de Almeida da novela picaresca já que nesta ele é sempre o mesmo, seu ritmo pouco se altera:

O tempo, por exemplo, é sempre igual na picaresca; embora haja saltos no tempo narrado, o ritmo pouco se altera, não faz muita diferença que se passem três dias ou três anos. Nas memórias, é um fator mais trabalhado, embora não nas relações entre os diversos episódios intercalados de quadros, mas dentro de cada episódio em si mesmo (GALVÃO, 1976, p. 29)

Em seu texto Dialética da Malandragem, Antonio Candido chama a atenção para outra diferença entre a narrativa picaresca e o romance de Manuel Antônio de Almeida, que está relacionada à construção do narrador na obra. Nas Memórias, o narrador está em terceira pessoa, representado por uma visão externa ao enredo, que observa os acontecimentos e permanece fora das ações, não participando delas. Na novela picaresca, geralmente o narrador das suas aventuras é o próprio pícaro, imprimindo ao texto um tom de falsa ingenuidade e inocência, característico do estilo:

Em geral, o próprio pícaro narra as suas aventuras, o que fecha a visão da realidade em torno do seu ângulo restrito; e esta voz na primeira pessoa é um dos encantos para o leitor, transmitido uma falsa candura que o autor cria habilmente e já é recurso psicológico de caracterização (CANDIDO, 1993, p. 21)

No entanto, para Antonio Candido, o personagem Leonardo Filho possui algumas afinidades com o narrador dos romances picarescos como sua humilde e marginal origem, concordando, assim, com Mário de Andrade:

Em compensação, Leonardo Filho tem com os narradores picarescos algumas afinidades: como eles, é de origem humilde e, como alguns deles, irregular, “filho de uma pisadela e um beliscão”. Ainda como eles é largado no mundo, mas não abandonado, como foram o Lazarillo ou o Buscón, de Quevedo; pelo contrário, mal os pais o deixam o destino lhe dá um pai muito melhor na pessoa do Compadre, o bom barbeiro que toma conta dele para o resto da vida e o abriga da adversidade material (CANDIDO, 1993, p. 22)

O crítico chama a atenção para vários aspectos que os aproximam e os diferenciam, entre eles, a posição de protegido na qual o Leonardo permanece por toda a narrativa. Apesar da expulsão da casa e da vida do pai, sofrida na infância, Leonardo se beneficia com o acolhimento do padrinho de batismo, o Compadre, com a preocupação e ajuda da Comadre e com as pessoas que, mesmo percebendo nele um malandro, não deixam de ajudá-lo. O personagem não é abandonado, como geralmente ocorre com o pícaro. Ele é largado por um pai que antes mesmo do ocorrido, já não demonstrava interesse por sua educação e bem-estar. O pícaro nasce ingênuo e a dura realidade e a necessidade de sobrevivência o levam à esperteza, às mentiras e confusões. Antonio Candido afirma que Leonardo “nasce malandro feito”, como se fosse sua “qualidade essencial”. Não nasce um desfavorecido economicamente e socialmente e sequer passa por muitas situações prejudiciais e traumáticas. A situação traumática mais significativa, vivida por ele e focalizada constantemente pelo narrador, com certa ironia e comicidade, corresponde, justamente, à sua expulsão de casa com um pontapé dado pelo pai. Após este fato, a cada nova experiência dramática do personagem, o narrador associa os momentos, comparando e aproximando os sentimentos e as impressões manifestadas pelo Leonardo nas diferentes situações de aperto e na ocasião do pontapé que o levou ao compadre.

Apesar de considerar a excentricidade da obra de Manuel Antônio de Almeida, Antônio Cândido não concorda com a visão que defende o caráter anacrônico do texto. Em seu texto, “Manuel Antônio de Almeida”: O Romance em Moto Contínuo, dentre outros aspectos, Antonio Candido considera as Memórias uma obra excêntrica para o período no qual surgiu, pela presença não de elementos que contradizem ou afastam o romance do estilo romântico contemporâneo ao seu surgimento, e sim pelo destaque evidente de determinados aspectos presentes no movimento romântico que, apesar de não serem hegemônicos no momento do seu surgimento, estavam “potencialmente disponíveis”. Manuel Antônio de Almeida, ao compor seu romance, privilegia o relato dos costumes específicos de uma classe popular, pertencente à sociedade carioca, quase sempre desfavorecida socialmente. É na construção de um romance de costumes, contrapondo à “exaltação sentimental” e à “vocação retórica” do estilo romântico que, para Antônio Cândido, a excentricidade está presente.

Mesmo se tratando de um romance de costumes e sua excentricidade, o deslocamento das memórias do narrador e a maneira como o texto é construído nos deixa evidente um “tom idealizado” ao descrever a cultura do tempo anterior, concomitante a uma crítica tanto a esse período quanto às mudanças ocorridas. Pode parecer paradoxal, considerando a característica de exclusividade da obra. No entanto, é possível perceber que o tom idealizado refere-se à influência da estética romântica e à tendência moralizante do período. A ironia na construção do texto caracteriza o estilo inovador do autor, elaborado e solidificado por escrever sobre uma classe social inferior e esquecida, descrevendo-a e, ao mesmo tempo, criticando-a, numa atitude moralizante, sugerindo uma nova maneira de contribuir para a formação e consolidação da sociedade brasileira. Má sina sugere, na verdade, a marca da má educação, ou seja, da educação considerada inadequada, já que a narrativa termina com a adequação de Leonardo às normas sociais, arrumando trabalho e se casando, tudo conforme a lei. Deixando a profundidade psicológica dos personagens e favorecendo a caracterização de tipos marcados pela função social e pela profissão de cada um, e da cultura relacionada a esses tipos, como um cronista o autor consegue, desta maneira, expor uma visão geral de um grupo social, como uma maneira de identificá-los e criticá-los, apontando tudo aquilo que está fora da ordem oficial. Walnice Nogueira Galvão afirma que:

Manuel Antonio de Almeida, autor de Memórias de um sargento de milícias, é a antes de tudo um cronista. Embora fale na primeira pessoa, mantém-se alheio aos acontecimentos, de que não participa. Sua presença se manifesta apenas na apresentação das personagens e no comentário que faz a suas ações, explicando ao leitor o que ele deve realmente entender, seja dos móveis das personagens, seja de incidentes que não ficaram bem claros. É um mestre-de-cerimônias onisciente.

Uma produção literária não tem, necessariamente, que corresponder completamente e com total fidelidade ao estilo literário contemporâneo a ela. Para Mário de Andrade, “As Memórias de um sargento de milícias são um desses livros que de vez em quando aparecem mesmo, por assim dizer, à margem das literaturas” (ANDRADE, 1974, p. 136). A partir de um estilo já existente, desfazendo, refazendo e utilizando dele aquilo que lhe interessa, um autor, como o fez Manuel Antônio de Almeida, constrói o próprio, deixando sua marca na história da literatura de uma sociedade.

Referências

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1963.

ANDRADE, Mário de. Memórias de Um Sargento de Milícias. In: ANDRADE, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974.

CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In:______ O discurso e a cidade. São Paulo: Duas Cidades, 1993.

CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Manuel Antônio de Almeida.In:_______ Presença da Literatura Brasileira. Vol. I. São Paulo – Rio de Janeiro: DIFEL, 1976.

CANDIDO, Antonio. Manuel Antônio de Almeida: o romance em moto contínuo. In:_______ Formação da Literatura Brasileira. Vol. II. Belo Horizonte – Rio de Janeiro: Editora Itatiaia Limitada, 1993.

GALVÃO, Walnice Nogueira. No tempo do rei. In: _______ Saco de gatos. Ensaios críticos. São Paulo: Duas Cidades, 1976.

JAROUCHE, Mamede Mustafa. Galhofa sem melancolia: as Memórias num mundo de Luzias e Saquaremas. In: ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Apresentação e notas de Mamede Mustafa Jarouche. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.

SOARES, Marcus Vinicius Nogueira. Memórias de um sargento de milícias: um romance único. In: ROCHA, João César Castro (org.). Nenhum Brasil existe: pequena enciclopédia. Rio de Janeiro: Topbooks, UniverCidade Editora, UERJ, 2003.

REBELO, Marques. Vida e obra de Manuel Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1943.