Aspectos da imanência transcendente de Manuel Bandeira

João Paulo Matedi Alves

“Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

-Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.”
(BANDEIRA, 1993, p. 180)[1]

A bandeira de Manuel

O que esperar de um texto que trata dos fatos mais singelos, ou antes, curva-se sobre os acontecimentos mais complexos e os traz à tona por meio de uma linguagem simples e sem “adereços”, para então juntar na ínfima cabeça de um alfinete toda a gravidade de um gigantesco universo? O que esperar de uma criação poética que celebra a vida e, paradoxalmente, confronta-nos com a morte, e não a do campo do incognoscível, mas a da esfera do imanente, do imanente à vida? O que esperar de uma poesia que interpreta o erotismo a partir de uma perspectiva “local”, comum, em que “os corpos se entendem, mas as almas não” (p. 206)? Enfim, o que esperar de uma arte que busca no objeto mais insólito a explicação para as situações mais perturbadoras?

Essas são algumas das indagações necessárias à análise da obra de Manuel Bandeira, na medida em que o modernismo brasileiro finca no poeta (ou seria o contrário?) a possibilidade “de liberdade de criação, com relação à obrigatoriedade convencional, anteriormente dominante, dos temas considerados de antemão poéticos” (ARRIGUCCI JR., 1992, p. 53)[2]. Seguindo essa máxima, Bandeira cria o equilíbrio na perturbação e, fazendo um diálogo entre a realidade estritamente poética e o mundo real que a circunda, gera poemas aparentemente bobos e non sense, que se explicam justamente na relação entre o individual e o universal. O poema “Pneumotórax” é um exemplo do primeiro caso e “Poema só para Jaime Ovalle” – que se encontra à frente – ilustra o segundo.

“Pneumotórax”

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
– Diga trinta e três.
– Trinta e três… trinta e três… trinta e [três…
– Respire.

……………………………………………………

– O senhor tem uma escavação no pulmão [esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
– Então, doutor, não é possível tentar o [pneumotórax?
– Não. A única coisa a fazer é tocar um tango [argentino. (p. 128)

O que nos interessa no poema é a tranqüilidade, o equilíbrio com que o eu lírico relaciona-se com a morte “- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? / – Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”), ao demonstrar que a morte é um acontecimento natural e intrínseco aos entes vivos. Poderíamos traduzir esses dois versos em termos paralelísticos à filosofia: a morte é imanente à vida, pois permanece dentro da vida no sentido de que tem na vida seu próprio fim. O poeta transforma uma situação perturbadora em algo sereno e até cômico, por meio de uma linguagem simples, que parte dos sintomas, passa pelo diagnóstico da enfermidade e desemboca em um desfecho àquela altura natural, em que a fala do médico traduz que “a vida inteira que podia ter sido e que não foi” continua sendo o que é. Com efeito, a morte é algo comum na obra de Bandeira, está indissociavelmente ligada à sua lírica e à sua vida. Sendo assim, muitos outros de seus poemas têm como tema a morte, mas incessantemente ligada à vida. “O último poema”, presente no livro Libertinagem, e “Preparação para a morte”, de Estrela da tarde, são exemplos disso. No primeiro, o poeta deseja que seu último poema fique preso ao campo da imanência:

“O último poema”

Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais [simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem [lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem [perfume
A pureza da chama em que se consomem os [diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem [explicação. (p. 145)

Ou seja, é querer a ternura da simplicidade, e não a intenção; a ardência do soluço sem lágrimas, e não as lágrimas; a beleza das flores quase sem perfume, e não o perfume; a pureza da chama, e não os diamantes mais límpidos; a paixão dos suicidas, e não a morte. Ele não quer o puro transcendente, ele não quer simplesmente o “para além de” (trans); ele deseja, antes, a essência das coisas próximas e fugazes, pois somente elas permitem acesso ao permanente e ao onírico.

Já no segundo poema, “Preparação para a morte”, quando, logo no primeiro verso, o eu lírico anuncia que “a vida é um milagre” e que tudo relativo à vida é milagre – flor, pássaro, tempo, memória etc. -, para então terminar dizendo “- Bendita a morte que é o fim de todos os milagres”, ele não opõe morte e vida; o eu lírico apenas expõe que ambas se completam.

“Preparação para a morte”

A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
– Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres. (p. 268)

A seqüência do poema demonstra que, para prepararmo-nos para a morte, precisamos entrar em contato estreito com a vida e com seus milagres; principalmente se levarmos em conta a forma como foi escrito – sucessão de anáforas e paralelismos que criam uma espécie de enumeração: iniciado o poema a partir da vida, ele passa por elementos pertencentes ao âmago dessa mesma vida e, no extremo oposto, termina com a morte, acontecimento igualmente íntimo ao imanente. Portanto, devemos abraçar tudo que pertence à vida. Assim, a morte será igualmente encarada como fato natural, pois está indissociavelmente ligada à vida.

Logo, a vida enquanto processo transitório é completada pela morte enquanto processo permanente que foge ao infinito, ao espaço, ao tempo, à memória, à consciência; como nos ambientes oníricos de uma “Pasárgada” ou em um paraíso onde qualquer Irene entra sem “pedir licença”. A morte, por sua vez, só tem explicação a partir do que perece, do que passa.

E é exatamente esse ponto que cria um aparente paradoxo na poesia de Manuel Bandeira, pois é pela imanência, pelo perecível que o eu lírico interpreta e conquista o ideal, o permanente: o transcendente às coisas simples e corriqueiras. Isso pode ser percebido e alcançado ainda por outros caminhos: a memória, o erotismo, o cotidiano. Encaremos a memória como algo que parte de um presente sem “vozes nem risos” em direção a um passado de conforto, em que “havia alegria e humor”, como no poema “Profundamente” (p. 139), e perceberemos que o presente próximo, imanente, transporta o sujeito a um passado ideal, que está além dos balões errantes, do ruído do bonde, do túnel, do silêncio. Um passado que se conserva profundamente dentro do eu lírico, por meio da lembrança de acontecimentos ou da lembrança de pessoas envolvidas em tais episódios.

Quanto ao erotismo, “Madrigal melancólico” e “Arte de amar” são exemplos:

“Madrigal melancólico”

O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.

A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de [incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito sutil,
Tão ágil, tão luminoso,
– Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento.
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti – lastima-me e [consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida. (p. 113-114)

***

“Arte de amar”

Se queres sentir a felicidade de amar, [esquece a tua alma,
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro [corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas [não. (p. 206)

É um erótico que busca na vida e no corpo “a felicidade de amar” a beleza que existe em nós. Não é mais o eu lírico buscando o amor naquilo que é superior e impalpável, carcomido de um “lirismo namorador / político / raquítico / sifilítico” (p. 129); é a busca do próximo, da vida. É, antes, a busca do que lastima e consola a partir do encontro dos corpos, pois as almas são incomunicáveis, tal qual o verso isolado no poema. Portanto, é uma paixão, um erotismo buscado naquilo que é próximo (“os corpos”) e que vai para além da sexualidade – “O que eu adoro em tua natureza, / Não é o profundo instinto maternal / Em teu flanco aberto como uma ferida”. Abraça a vida e o que há nela.

Agora devemos, como prometido, citar o “Poema só para Jaime Ovalle”, para buscarmos a natureza do fato cotidiano aberto ao mundo complexo, numa relação recíproca entre o privado e o público, em que o “universo de espaços misturados, a que esteve intimamente ligada a renovação espiritual do modernismo” (ARRIGUCCI JR., p. 64.), permite a existência de uma poesia aberta para além da vida privada.

“Poema só para Jaime Ovalle”

Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor [tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um [cigarro e fiquei pensando…
– Humildemente pensando na vida e nas [mulheres que amei. (p. 191)

Esse poema traz um detalhe importante da obra de Manuel Bandeira, a relação intrínseca e aparentemente reclusa do sujeito em relação ao universo que o circunda, não apenas pela referência a Jaime Ovalle (menção exterior ao texto, parte fundamental do que o poema descreve: um acontecimento comum na vida de uma pessoa, em que ficção – afinal o maestro e lirista Ovalle, segundo Davi Arrigucci Jr., foi não somente um grande amigo de Bandeira, como veio a tornar-se também um dos muitos personagens deste autor[3] -, memória e presente misturam-se para corroborar na construção de um eu aberto ao mundo), mas pela referência a um ambiente íntimo, que, apesar de não mencionado, é claramente um quarto, assim visto por Arrigucci Jr.:

Seu quarto é um espaço arejado, onde o mundo penetra enquanto dimensão social e enquanto natureza. Talvez se possa dizer que, na essência, ele é o espaço do recolhimento, onde se enforma a experiência poética; onde a vida se aconchega, aninhando-se no mais íntimo, mas onde se entrega também ao mundo de fora, resgatando-o interiormente; onde se processa o movimento que enlaça o sujeito e o objeto; onde, enfim, o vivido se muda por palavras em poesia. (ARRIGUCCI JR, p. 64, grifo do autor)

Nesse sentido, esse ambiente, o quarto, constitui um artefato nevrálgico na obra do poeta, seja como espaço ideal, “suspenso no ar”, seja como espaço real. No primeiro caso, liberto da matéria, o quarto sobrevive apenas na memória do poeta, “não como forma imperfeita / neste mundo de aparências: / vai ficar na eternidade, / com seus livros, com seus quadros, / intacto, suspenso no ar!” (p. 179), como que para afirmar uma poesia que não se desliga em momento algum do mundo; e não porque é impossibilitada disso, mas porque realmente não o quer; uma vez que deseja, como afirmado em “Poema do beco”, permanecer presa aos fatos, à vida, ao beco.

“Poema do beco”

Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a [linha do horizonte?
– O que eu vejo é o beco. (p. 150)

Contudo, o mais curioso desse processo é que o quarto, enquanto matéria, não existe mais; sobrevive apenas na memória do poeta, demonstrando, dessa forma, que sua existência transcende a realidade concreta. Por sua vez, na segunda hipótese, a do quarto como imanência, como lugar da precariedade, da solidão, desenvolve-se um lirismo dialogístico com o exterior: a rua, o beco, os espaços de camelôs, o pátio, o arranha-céu, São Paulo, Ouro Preto, Recife.

Não se trata, em que pese a solidão do poeta, de um quarto fechado ao mundo; é, antes, o espaço onde, por meio de uma força centrípeta, o eu lírico condensa inúmeras referências do além-quarto, para, a partir daí, criar o movimento inverso, uma força centrífuga que, através de uma linguagem simples, condensada e elíptica, suscita as mais inúmeras referências.

Assim, retomando os versos de “Poema só para Jaime Ovalle”, a chuva “como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite” é não somente a nítida relação entre dois fenômenos atmosféricos, mas, para mais longe, a convivência de duas realidades indissolúveis: a de um eu-íntimo-solitário e a de um eu-mundo. A partir disso, e seguindo esse dialogismo, a memória suspensa no ar, referência para a dimensão transcendente, é antes de tudo uma espécie de arquivo tempestuoso da imanência do mundo, com suas perturbações e suas alteridades. É como se a memória fizesse chover mundos no mundo solitário do próprio poeta, ou do próprio quarto, metonímias de espaços corporais capazes de, em sua precariedade, em sua aparente impotência, incorporar cosmos de outros quartos, outras solidões, outros desejos, tão imanentes quanto transcendentes; visto que já um e outro são indissociáveis.

Essa relação de “vizinhança”, ou de confluência entre a dimensão transcendente e a imanente, a da memória e a das sombras que ela memora, faz brotar a poesia do mais desconhecido e inesperado ambiente e/ou objeto. Esse é o caso, por exemplo, da composição “O cacto”, em que a poesia brota do estático, do estranho ao ambiente e ao lugar. Como pode um objeto “belo, áspero, intratável” traduzir ação, caos, surpresa; enfim, o inesperado?

“O cacto”

Aquele cacto lembrava os gestos [desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco nordeste, [carnaubais, caatingas…
Era enorme, mesmo para esta terra de [feracidades excepcionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, [carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte [e quatro horas privou a cidade de iluminação [e energia:

– Era belo, áspero, intratável. (p. 127)

Tendo o poeta deslocado o cacto de seu habitat natural para transportá-lo à realidade da cidade – ambiente estranho -, é mais que natural sentimo-lo como ameaça. Na primeira estrofe, ele já é percebido, mesmo em sua imobilidade e passividade, como figura de desespero, de ação; carregando consigo, e principalmente, a advertência de um Laocoonte que é, todavia, devorado pelas serpentes. Em outras palavras, o cacto é visto ameaçadoramente não devido a uma atitude simplesmente reacionária por parte do ambiente, mas, sim, em razão do medo que esse mesmo ambiente possui do estranho, do desconhecido; aquele mesmo medo que fez os troianos aceitarem o cavalo grego[4]. Tal imagem fica mais nítida se tomarmos o quarto verso (“Evocava também o seco nordeste, carnaubais, caatingas…”), pois o cacto, ou o devir cacto, em sua estranheza, em sua alteridade revelada, alegoriza e incorpora uma outra memória de país, um país como d’Os sertões, de Euclides da Cunha, que vai muito além da rua onde está o cacto agora. Lembra o esforço modernista de entender o Brasil para além do centro-sul, abarcando suas classes, suas raças, suas culturas; traduzindo, enfim, o gigantesco esforço de reflexão acerca de nossa realidade, a partir da interpretação da heterogeneidade espacial brasileira.

Podemos ainda, e uma vez mais, alargar essa interpretação se observarmos o terceiro verso (“Ugolino e os filhos esfaimados.”), uma vez que a figura de Ugolino e de seus filhos mantêm, devido ao termo “esfaimados” (sinônimo de “esfomeados”), uma íntima ligação com o interior brasileiro, atrasado tecnológica e economicamente e posto à margem das conquistas e projetos nacionais. Ugolino e seus filhos são uma referência de Bandeira à Divina Comédia de Dante Alighieri. Com efeito, quando Dante e Virgílio estão no segundo giro do nono e último círculo do inferno, eles encontram o personagem Ugolino, que tem os dentes profundamente cravados à nuca do arcebispo Rogério, e que narra, aos dois viandantes, o seu martírio e o de seus filhos (mais exatamente dois filhos e dois netos; Dante, e depois Bandeira, usa o termo “filhos” genericamente): quando ainda vivo, o àquela altura Conde Ugolino della Gherardesca fora traído pelo arcebispo Rogério, o que resultou na sua prisão, e de seus filhos, na Torre de Gualandi, onde, trancafiados, pereceram pela fome[5]. E é precisamente a fome, símbolo de uma traição isolada, em Dante, e de uma irresponsabilidade social, em Bandeira, que une os dois textos. A evocação, por parte do poeta brasileiro, da imagem poética, confeccionada pelo cânone italiano, não se dá à toa, demonstra que as inúmeras desigualdades e contradições brasileiras assumiram proporções dramáticas e assustadoras, tal qual a cena narrada por Dante.

Essa postura de interpretação modernista denuncia, por outro lado, o gigantesco desconhecimento e despreparo de todos em relação ao estranho, à alteridade. Por isso, a palavra “enorme” (primeira estrofe, quinto verso) abre dois caminhos de interpretação: o primeiro de ser o cacto a representação metafórica de um leque de situações, objetos, culturas e realidades que, por serem mal interpretados, são vistos como ameaças incomensuráveis; o segundo é o que se encontra claramente exposto no poema: o cacto é efetivamente enorme. Seja como for, num ou noutro caso, ele está propenso a tombar frente a um inesperado tufão para fazer valer a ameaça que representa, transladada no caos da segunda estrofe; em outras palavras, a associação do inesperado (o tufão) com o mal interpretado (o cacto) pode gerar grande desordem.

A presença do cacto perpassa a obra de Manuel Bandeira, não nominalmente; mostra-se, de fato, enquanto motivo de descobrir no insólito o subjacente; partir do observável, do que está anunciado, para abraçar o inesperado. O cacto carrega para além de sua beleza, aspereza e intratabilidade, uma gama de imagens, de acontecimentos, de lembranças, de presenças e de premonições que vão além do objeto e mostram-se em um “para além de”.

A poesia que nasce assim, ligada intimamente às coisas do mundo, mas que alarga sua significação para além da conotação habitual e inunda o poema de um sentimento aparentemente contraditório entre aquilo que vemos e aquilo que podemos descobrir, entre o próximo e o distante; ou, em outras palavras, uma poesia que se faz notar justamente pelo “incômodo” – até mesmo no seu devir-complexo a partir de imagens simples -, só poderia mesmo criar essa espécie de imanência transcendente.

REFERÊNCIAS

ARRIGUCCI JR, Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Compahia das Letras, 1992.

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Tradução, comentário e notas de Cristiano Martins. 4. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1984. v. I.

GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Tradução de Victor Jabouille. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.

 

[1] Todas as citações de Bandeira serão provenientes dessa mesma edição, portanto, a partir daqui, quando necessário, citarei apenas a página.

[2] Todas as citações de Arrigucci Jr. serão provenientes dessa mesma edição, portanto, a partir daqui, citarei apenas o sobrenome e a página.

[3] Para uma visão mais completa não apenas da figura de Jaime Ovalle, mas também de todo o “Poema só para Jaime Ovalle” – o que ultrapassa os objetivos deste pequeno texto -, aconselho o excelente trabalho de Davi Arrigucci Jr., citado nas referências.

[4] Laocoonte, segundo Pierre Grimal, no seu Dicionário da mitologia grega e romana, era o sacerdote de Apolo Tímbrio, em tróia, e tinha por esposa Antíope, que lhe deu dois filhos. Ele havia atraído sobre si a ira de seu deus, ao casar-se diante da estátua consagrada, um sacrilégio à época. Laocoonte também havia se oposto à entrada do cavalo grego na cidade de Tróia (aconselhando, inclusive, que o queimassem). Certo dia, enquanto imolava um enorme touro em honra de Posídon, duas grandes serpentes saíram do mar e envolveram seu dois filhos. O sacerdote foi em socorro e também acabou perecendo. Diante dessa visão, os troianos, acreditando que o que ocorrera fora devido à oposição de Laocoonte à entrada do presente grego na cidade, providenciaram em consagrar o cavalo à divindade e o trouxeram para dentro das muralhas; quando, de fato, era Apolo que se vingava do sacrilégio. Então, a partir disso, queremos demonstrar que os aqueus aceitaram o presente não porque realmente assim desejavam, mas porque desconheciam as verdadeiras motivações da morte do sacerdote, o que os levou a temerem a ira dos deuses e, conseqüentemente, a aceitarem o presente. Com o cacto ocorre o mesmo: o meio urbano, por desconhecer o cacto, o vê como ameaça, não porque ele seja uma ameaça, mas porque a cidade é ignorante em relação a esse objeto. Portanto, ele não representa perigo (assim como as serpentes, outrora, também não); é o desconhecimento em relação a esse objeto (assim como ocorreu em relação àquilo que efetivamente motivou a morte de Laocoonte) que gera insegurança e medo. Para maiores detalhes acerca de Laocoonte, consultar, na pág. 266, o dicionário citado nas referências.

[5] Vale ressaltar que os fatos ligados a Ugolino e seus filhos são, antes, reais; só depois Dante se apropriou do fatídico episódio ocorrido em 1289. Para maiores esclarecimentos ligados a esses eventos, aconselhamos a edição de A Divina Comédia indicada nas referências, que, a partir da página 390 do primeiro volume, traz informações concernentes a tal cena. Indicamos não apenas pela ótima tradução de Cristiano Martins, mas também pelas inúmeras notas extremamente esclarecedoras.