Tradição e Modernidade: elementos narrativos na tragédia e no melodrama

Cláudia Cristina Maia

Aristóteles, a teoria da imitação e sua definição da tragédia

Aristóteles, no capítulo IV da Arte Poética, apresenta como causa e origem da poesia a tendência humana à imitação. Segundo o filósofo, essa tendência é instintiva no homem desde a infância e por ela todos experimentam prazer. Para sustentar essa teoria, Aristóteles, contrariando a teoria platônica da mímesis como simples imitação da natureza, afirmou que a arte dramática, sobretudo a tragédia, é uma imitação “dos caracteres, das paixões e das ações humanas” e por esse motivo alcança uma identificação com o público para, enfim, chegar a promover um prazer ao espectador.

A definição da tragédia é assim dada por Aristóteles, no capítulo VI da Arte Poética:

A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes; ação apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação dessas emoções. (ARISTÓTELES: 1985, 248)

Segundo o pensador grego, para suscitar o terror e a compaixão, o público precisaria se identificar com as situações apresentadas no palco. Sendo a compaixão uma espécie de pena e o terror um estado de pavor e medo, tais sentimentos são suscitados quando o público presume que também é suscetível de sofrer de um mal idêntico àquele representado. Essa identificação do público com os fatos narrados no palco é chamada por Aristóteles de mímesis, a qual, por sua vez, provocaria a kátharsis, que seria a purgação dos sentimentos de terror e compaixão por parte dos espectadores.

Para que a tragédia chegue ao seu objetivo maior – a kátharsis, Aristóteles demonstrou em sua Arte Poética como a fábula e os personagens devem ser construídos. Ali se observa que o herói trágico possui um caráter elevado, mas também características de descomedimento. Além disso, ele encontra-se numa situação intermediária, não sendo demasiadamente bom ou generoso, nem demasiadamente perverso. Para este autor, a compaixão nasce do homem injustamente infortunado e o terror nasce do homem nosso semelhante.

As peças trágicas, então, na busca de uma identificação do palco com a platéia, constróem cuidadosamente os personagens e a trama das ações. Estes são submetidos a um princípio de verossimilhança e a trama, valendo-se de peripécias e reconhecimentos, apresenta uma mudança da felicidade ao infortúnio, mudança esta que ocorre devido a um erro grave do herói trágico. Toda a fábula, então, desde a caracterização das personagens até a catástrofe final, deve ser construída em conformidade com o verossímil. As personagens, em suas palavras e ações, devem apresentar-se coerentemente para que não comprometa a identificação com espectador nem a emoção ao final do espetáculo.

Podemos perceber, portanto, que a tragédia, pela imitação dos caracteres e das paixões, valendo-se da música, da dança, do espetáculo e, sobretudo, do princípio de verossimilhança, provoca um prazer que lhe é próprio, instigando no ânimo do espectador o terror e a compaixão. Este prazer, por mais estranho que pareça, é alcançado, na tragédia, com o fim terrível que é destinado ao personagem trágico. É um prazer que vem da dor e que se compõe de vários elementos: consiste num desafogo, num repouso, num modo de ocupar os lazeres – num gozo intelectual – numa vantagem que não é inútil aos bons costumes; enfim opera a catarse, palavra que uns traduzem por purificação e outros por purgação. (Goffredo Telles Júnior: 1985, 234)

A fábula trágica e seus elementos

Aristóteles, no decorrer de sua análise, afirma que a tragédia é composta de seis partes: a fábula, os caracteres, a elocução, o pensamento, o espetáculo e o canto. Dessas, a fábula ou trama dos fatos pode ser considerada como a mais importante, pois, sendo a tragédia uma imitação dos atos, é através desses atos que os caracteres dos personagens são representados. É pela imitação das ações que os personagens vão representar todos os desejos e aflições humanas, fazendo com que o espectador se identifique com o que é representado.

Sendo a fábula ou organização dos fatos a parte mais importante da tragédia, foi sobre ela que o filósofo mais se debruçou. Para que a peça trágica leve o espectador à mímesis e conseqüentemente à kátharsis, a fábula deve se constituir de peripécias, reconhecimentos e terminar com um acontecimento catastrófico. A peripécia, na peça trágica, é uma reviravolta completa na ação, que deve acontecer sempre em conformidade com o verossímil e o necessário. O reconhecimento acontece quando algo é revelado e pode mudar toda a trama das ações. São esses dois elementos da fábula, reconhecimento e peripécia, as estratégicas que mais intensificam o terror e a compaixão suscitados no espectador e é através deles que a tragédia alcança seu objetivo maior: o espectador se identifica com os infortúnios destinados ao personagem trágico, sente compaixão e terror por este personagem, e depois purga esses sentimentos, provando que o prazer alcançado com o teatro não tem nada de danoso, como afirmava Platão. Ao final da peça, para provocar a kátharsis, dá-se a catástrofe, que seria a morte ou sofrimento muito forte de uma das personagens.

mímesis e a kátharsis no melodrama

mímesis aristotélica, associada à kátharsis e intimamente ligada à recepção de uma obra teatral pelo público, tem fundamentado, até os dias atuais, boa parte da produção dramática, na qual são utilizadas uma ou mais características entre aquelas elencadas pelo filósofo. Algumas características trágicas descritas por Aristóteles, no entanto, não são mais observadas nos textos teatrais mais recentes. Uma das definições aristotélicas que praticamente desaparece das obras dramatúrgicas posteriores é a do herói trágico, o qual, sobretudo a partir do advento do cristianismo, que traz a possibilidade do livre arbítrio, anulando a questão do “destino”, perde sua densidade inicial, sendo substituído por figuras mais próximas da realidade.

No caso do melodrama, gênero extremamente popular no Brasil a partir de meados do século XIX e forma teatral que é objeto de nosso estudo, embora não se observe ali a utilização de todas as características de construção da tragédia, nota-se que foram mantidas as principais, sobretudo no sentido de dar continuidade à mímesisaristotélica, tendo o gênero também o objetivo de proporcionar uma identificação do espectador com os fatos narrados no palco e, a partir dessa identificação, suscitar o terror e a compaixão nesse mesmo espectador.

Entre as características trágicas que não aparecem no melodrama está a de que neste, diferentemente do que se observa na tragédia, as personagens são construídas de forma bem rotulada: os bons são excessivamente bons e os maus, ainda que eventualmente se arrependam ao final da trama, agem com intuitos genuinamente maléficos. O conflito é estabelecido entre campos separados e os espectadores distinguem facilmente um do outro: o herói e o vilão. Regina Horta Duarte, em seu estudo sobre espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX, define quatro tipos básicos de personagens para o melodrama:

Em primeiro lugar, o vilão, possuidor de uma maldade intensa e de uma série de vícios, muitas vezes encarnado como um príncipe cruel e sanguinário ou por um chefe militar. A heroína, fosse ela uma princesa ou plebéia, aparecia sempre como uma segunda figura, bela e extremamente virtuosa. Em terceiro lugar, o jovem e destemido amado da mocinha, a quem cabia defendê-la da maldade do vilão, salvando-a e concretizando a paixão entre os dois, não sem antes dar ao tirânico perseguidor uma vingança exemplar (…). Mas havia um quarto personagem, em geral pouco considerada pelos comentadores do melodrama: o “niais” ou tolo, invasor do palco nos momentos de maior dramaticidade e lacrimejar da platéia, atuando de forma a levá-la a explodir em risos em meio às lágrimas.(DUARTE: 1995, 210)

Tais personagens estão envolvidos em uma trama que pode buscar a reparação da injustiça ou uma realização amorosa. Em ambos os temas, a trama das ações, assim como na tragédia, caminha para o propósito de excitar o terror e a compaixão. O herói melodramático se encontra numa situação terrível, ameaçado pelo vilão, que provoca o terror. Diante desse quadro, o espectador se identifica com um dos quatro tipos caracterizados por Regina Horta, sente compaixão pelo personagem ameaçado e também compartilha de seus temores, até chegar a purgar essas emoções e operar a kátharsis. As lágrimas derramadas pelos espectadores ao assistirem uma peça melodramática são uma prova da identificação da platéia com o palco, identificação esta observada também na representação de uma tragédia.

Com relação ao melodrama, a identificação do público com a peça é despertada também pelo sentido de moralidade e justiça e pela simplicidade das intrigas. Ao final da trama, quando o bem vence o mal, o público tem a certeza de que aquele personagem que foi ameaçado durante toda a trama foi vingado e será recompensado por seu sofrimento.

Peripécias e Reconhecimentos na construção do enredo melodramático

Como pudemos ver, muitas são as comparações estabelecidas entre a tragédia clássica grega e o melodrama, gênero do teatro popular surgido na França em finais do século XVIII. Ivete Huppes reconhece que este gênero teatral é uma das criações estéticas mais importantes do século XIX. Seria ele o sucessor da tragédia. Melhor, o melodrama seria a tragédia que a civilização mecanicista emergente ensejou produzir, ou então, a composição adequada ao horizonte que a revolução burguesa constitui. (HUPPES: 2000,10). Eric Bentley vai mais longe e declara que há um melodrama em cada tragédia, assim como há uma criança em cada adulto (…), que a tragédia não é melodrama menos loucura. É melodrama mais alguma coisa (BENTLEY: 1981, 200). E Arnold Hauser afirma ainda que o melodrama é, nem mais nem menos, a tragédia popularizada [grifos nossos] (HAUSER:1982, 854).

Mas o que há de tão próximo entre as duas formas dramáticas para que os teóricos usem o nome de um para definir o outro gênero? O que seria uma tragédia popularizada? O que o melodrama realmente herdou da tragédia grega? Será que os autores melodramáticos tinham consciência dessa herança? Hauser, para explicar sua definição do melodrama, declara que:

O melodrama é tudo menos uma arte espontânea e ingênua; segue, pelo contrário, os princípios formais, intelectualmente requintados, da tragédia, adquiridos no decorrer de uma evolução longa e consistente, ainda que os reflita num estilo que se tornou rude, sem as sutilezas psicológicas e as poéticas belezas da forma clássica. No plano puramente formal, o melodrama é o gênero mais convencional, esquemático e artificial que se pode imaginar – (…). Tem uma estrutura estritamente tríplice, um antagonismo forte como situação inicial, uma colisão violenta, e um desenlace em que a virtude triunfa e é punido o vício; numa palavra, um enredo que facilmente se compreende e é economicamente desenvolvido, com a prioridade do enredo sobre os personagens bem definidos: o herói, a inocência perseguida, o vilão e o cômico; com a cega e cruel fatalidade dos acontecimentos; (…). (HAUSER: 1980, 855-6)

A prioridade do enredo sobre as personagens, a estrutura tripartida, o uso do exagero, a preocupação em suscitar sentimentos de terror e compaixão para posteriormente chegar a operar a kátharsis e a importância em constituir uma ação complexa, assim definida por Aristóteles na Poética, são estratégias trágicas que o melodrama usou para chegar o mais perto possível da platéia.

Aristóteles explicou, quando analisou o gênero trágico, que ação complexa é aquela em que a mudança da fortuna resulta do uso de reconhecimento ou de peripécia ou de ambos os meios. A peripécia é, segundo o filósofo grego, uma reviravolta completa das ações e o reconhecimento é o que faz passar da ignorância ao conhecimento. Para exemplificar o uso dessas duas estratégias na tragédia grega, usamos aqui a peça Édipo Rei, de Sófocles. Nela, a peripécia acontece quando o mensageiro chega e, ao contrário de libertar Édipo de sua inquietação, faz com que ele se desespere ainda mais. No momento do reconhecimento, quando Édipo descobre que é ele o assassino de Laio e filho de Jocasta, há uma reviravolta completa na ação, até chegar à catástrofe final: o suicídio de Jocasta e a cegueira de Édipo. A peripécia, nesta peça de Sófocles, inicia-se durante um diálogo entre Jocasta e Édipo, quando este começa a se dar conta de que o homem que havia matado podia ser Laio, o rei de Tebas:

ÉDIPO: Se o viajante morto era de fato Laio,
Quem é mais infeliz que eu neste momento?
Que homem poderia ser mais odiado
pelos augustos deuses? Estrangeiro algum,
concidadão algum teria o direito
de receber-me em sua casa, de falar-me;
todos agora deveriam repelir-me.
E o que é pior, fui eu, não foi outro qualquer,
quem pronunciou as maldições contra mim mesmo (SOFOCLES: 1988, 60-1)

Mais adiante, quando o Mensageiro chega para esclarecer toda a história, a peripécia se intensifica e acontece o que Aristóteles chama de a mais bela forma de todos os reconhecimentos, aquela que se dá justamente com a peripécia, forma esta que intensifica os sentimentos de terror e compaixão, sentimentos próprios desta forma dramática:

ÉDIPO: Temo que Febo se revele um deus exato.
MENSAGEIRO: Inda receias a união com tua mãe?
ÉDIPO: Exatamente, ancião; eis meu temor de sempre.
MENSAGEIRO: Sabes que nada justifica os teus receios?
ÉDIPO: Mas, como não temer se nasci deles dois?
MENSAGEIRO: Pois ouve bem: não é de Pôlibo o teu sangue!
ÉDIPO: Que dizes? Pôlibo não é então meu pai?
MENSAGEIRO: Tanto quanto o homem que te fala, e nada mais.
ÉDIPO: Nada és para mim e és igual ao meu pai?
MENSAGEIRO: Ele não te gerou, e muito menos eu.
ÉDIPO: Por que, então, ele chamava-me de filho?
MENSAGEIRO: O rei te recebeu, senhor, recém-nascido
– escuta bem – , de minhas mãos como um presente. (SOFOCLES: 1988, 70-1)

O reconhecimento se dá por completo quando o pastor é chamado a esclarecer sobre a criança que havia levado às mãos daquele mensageiro e posteriormente a Pôlibo, o pai adotivo de Édipo:

PASTOR: (…) Entreguei-lhe o recém-nascido.
ÉDIPO: De quem o recebeste? Ele era teu, ou de outrem?
PASTOR: Não era meu; recebi-o das mãos de alguém…
ÉDIPO: Das mãos de gente desta terra? De que casa?
PASTOR: Não, pelos deuses, rei! Não me interrogues mais!
ÉDIPO: Serás um homem morto se não responderes!
PASTOR: Ele nascera… no palácio do rei Laio!
ÉDIPO: Simples escravo, ou então… filho do próprio rei?
PASTOR: Quanta tristeza! É doloroso de falar!
ÉDIPO: Mais doloroso de escutar, mas não te negues.
PASTOR: Seria filho dele, mas tua mulher que deve estar lá dentro sabe muito bem
a origem da criança e pode esclarecer-nos.
ÉDIPO: Foi ela mesma a portadora da criança?
PASTOR: Sim, meu senhor, foi Jocasta, com as próprias mãos.
ÉDIPO: Por que teria ela agido desse modo?
PASTOR: Mandou-me exterminar a tenra criancinha.
ÉDIPO: Sendo ela a própria mãe? Não te parece incrível?
PASTOR: Tinha receios de uns oráculos funestos.
ÉDIPO: E quais seriam os oráculos? Tu sabes?
PASTOR: Diziam que o menino mataria o pai. (SOFOCLES: 1988, 80-2)

Com o propósito de suscitar sentimentos de terror e compaixão, os tragediógrafos gregos recorreram muitas vezes a estes dois meios descritos por Aristóteles: a peripécia e o reconhecimento. Como a história era conhecida de toda a platéia, que já sabia o fatal destino de cada personagem e os infortúnios do herói trágico, tais estratégias eram utilizadas para despertar um sentimento de angústia junto a um êxtase no espectador. Assim, cada frase reveladora da identidade do herói era precisamente escrita para intensificar este sentimento, aumentando a cumplicidade entre palco e platéia até o final da peça.

Na outra ponta de nosso fio, o melodrama, A filha do mar, de Lucotte, é um exemplo de peça que utilizou as estratégias trágicas para proporcionar a kátharsis. Nele, a protagonista Luiza, uma menina encontrada no mar e criada por marinheiros é acusada injustamente pela Condessa d’Ipsal de ter matado a Marquesa de During, a quem dedicara toda a vida, quase como uma criada. Nesse drama, o reconhecimento também vem junto com a peripécia. No momento em que Luiza, inocentada, estava prestes a sair da prisão, dá-se uma reviravolta também causada por um importante reconhecimento: a verdadeira identidade de Luiza. Na cena VII do terceiro ato, a Condessa, ao tomar conhecimento da inocência de Luiza, vai falar-lhe sobre o fato na prisão. Koppen, o vilão, entra armado e, em seguida, devido a uma terrível explosão, as duas ficam presas no subterrâneo. Luiza começa a orar como quando era criança e a Condessa, lembrando daquela oração que ensinara à filha e da tempestade que se abatera sobre o barco depois de uma viagem à Inglaterra, havia quinze anos, descobre que a filha está ali, a seu lado e pede perdão por todo o mau que lhe havia causado:

CONDESSA: Quem lhe ensinou esses versos? Diga? Não me ouve?
LUIZA: Foi minha mãe.
CONDESSA: Sua mãe?!… É falso! Sua mãe não os podia saber!… Quem era sua mãe?
LUIZA: Não sei, não me recordo…
CONDESSA: Não sabe o nome de sua mãe? Mas… o capitão Gustavo…quem é?
LUIZA: É meu pai adotivo. Salvou-me de um naufrágio há quinze anos, quando eu era criança.
CONDESSA: Salva de um naufrágio… há quinze anos?! Ah! (Cai no banco)
LUIZA: Quem tem, senhora?
CONDESSA: Ah! Luiza… Luiza… Parece-me que o coração me estala no peito! Eu morro de alegria!
LUIZA: Morre de alegria?!
CONDESSA: (Levantando-se): Soou, para mim, a hora milagrosa em que Deus se patenteia em todo o seu majestoso esplendor… Luiza, és minha filha!
LUIZA (afastando-se): Eu?! Sua filha?!

Como observamos, em ambos os gêneros, tragédia e melodrama, o uso da peripécia e do reconhecimento tem um objetivo maior: provocar a kátharsis. A peripécia, ao mudar o rumo da história, colabora para manter a atenção do público presa aos fatos narrados no palco, fatos estes que tratam de sentimentos inerentes à natureza humana: amor, medo, paixão, ódio, e com os quais ele se identifica. Se o melodrama não trabalha com a essência do trágico, que talvez só encontre ambiente na Grécia Antiga, com seus deuses e oráculos, por outro lado proporciona a conquista do público – que novamente procura o teatro para se emocionar e, posteriormente, purificar essas emoções através das mesmas estratégias do gênero que lhe dá origem. Se na tragédia a reconciliação entre o mundo e o homem vem com a afirmação dos valores da pólis, tomando como base as falhas do herói, no melodrama, ela vem com o triunfo do bem sobre o mal, revelam-se as artimanhas do vilão e o público reconhece os verdadeiros princípios da sociedade.

A identificação do público com os fatos narrados no palco é possível, na tragédia, quando o poeta, ao mesmo tempo em que humaniza os heróis, aproximando-os dos cidadãos presentes no teatro, também procura sustentar a distância entre o herói lendário apresentado no palco e o espectador. Este afastamento e aproximação é muito bem explicado por Vernant, no capítulo em que trata sobre o mito na Grécia Antiga:

Entre os personagens que ela faz evoluir no palco e para o público dos espectadores, a tragédia cava, ao contrário (das epopéias), a distância. O herói trágico pertence a um outro mundo e não à cidade, a uma outra época que não o século V ateniense. (…). Mas as mesmas figuras que o jogo cênico, o manto, os coturnos, a máscara, a desmedida enfim de seu caráter realçam ao nível dos heróis de lenda aos quais a cidade presta um culto, acham-se por sua linguagem, familiar e quase prosaica, pelas discussões que os contrapõem ao coro e uns aos outros, aproximados do homem comum e tornados contemporâneos dos cidadãos de Atenas povoando os degraus do teatro. Por essa tensão constantemente mantida, essa confrontação, em cada drama e em cada protagonista, do passado mítico e do presente da cidade, o herói cessa de representar, como em Píndaro, um modelo para tornar-se objeto de contestação. É questionado ante o público; e através do debate aberto pelo drama, é o próprio estatuto do homem que toma forma de problema, é o enigma da condição do homem que é colocado, sem que a investigação trágica, retomada sem cessar, jamais terminada, possa avançar uma resposta definitiva e encerrar a interrogação. (VERNANT: 1991, 180-1)

Também no melodrama podemos perceber o jogo entre distanciamento e aproximação, pois a trama melodramática, na maioria das vezes, passava-se em lugares e tempos distantes, com a presença de condes, duques e marqueses, também distantes do universo dos espectadores. Mesmo assim, porém, conhecendo o típico desenrolar das peças, os espectadores se emocionavam com o enredo rebuscado, cheio de movimento e aparições misteriosas. Ou seja, mesmo com algum distanciamento, o público sempre se identificava com as paixões e os desejos de um dos quatro personagens típicos, principalmente a mocinha e o herói.

Se a identificação com os personagens aproxima espectadores da trama, outro dos recursos utilizados para que haja essa cumplicidade entre palco e platéia é o uso do coro, na tragédia grega, e de apartes, monólogos e confidências, nas peças melodramáticas. Estes, com função semelhante à do coro trágico, favorecem a compreensão por parte da platéia, além de envolvê-la, seduzi-la ao colocá-la a par de todos os meandros da trama:

Ele sabe que sabe mais do que ninguém e isto o faz sentir-se agradavelmente poderoso. Mais facilmente pode controlar a angústia que o assalta ao verificar que o mal prospera e que o herói corre riscos. Ou lhe permite, quando menos, manter a calma suficiente para tolerar o avanço da prepotência, da injustiça, da crueldade, para suportar o medo da desgraça, do abandono e da morte, até que a reação eficaz seja organizada para inverter a roda da fortuna. (HUPPES: 2000, 80)

O exagero na tragédia e no melodrama

Sendo a tragédia uma imitação de realidades dolorosas, ela vem representar a desmedida do homem, algo que ultrapassa os limites do normal, algo que aproxima o espectador dos seus maiores desejos, mesmo que estes acabem numa catástrofe. Não é somente o destino do herói que é trágico e terrível, mas principalmente, a mudança da boa à má fortuna, pois essa mudança é conseqüência de uma falha, de um erro humano que desestrutura toda a pólis. É esta falha que aproxima os heróis dos homens comuns, é uma falha do ser humano, uma falha que não provém do caráter do personagem, mas que por uma ultrapassagem da medida, do limite, coloca o homem em conflito com os deuses e a cidade.

Tereza Virgínia Barbosa, em seu ensaio A consciência trágica do limite, vem nos dizer que em todas as tragédias, o poeta nos leva a contemplar a condição humana, seus limites e seus desejos desmedidos e que

(…) essa vivência estética da hýbris permite ao ser da pólis um acesso à realidade de desejo desmedido e, nesse universo trágico-teatral, tudo é suscetível de revelar-se como realidade potencial absoluta do ser, até mesmo a dor, o horror e a destruição. (BARBOSA: 2000, 30)

Esta autora nos faz pensar, então, que a tragédia, apesar dos seus acontecimentos de horror, leva o espectador a contemplar a sua própria realidade: uma realidade de desejo desmedido que todos nós possuímos e que é certamente representada no teatro, principalmente nas tragédias e, como observaremos, no melodrama.

O exagero, que encontramos na tragédia grega na caracterização de um personagem ou quando este é levado a um destino terrível pelo excesso da hybris, no melodrama é representado, pelos personagens, extremamente bons ou extremamente ruins, pelo intenso movimento da trama, com grandes golpes repentinos, raptos, duelos, combates, incêndios, crimes, revelações imprevistas e também pela moral exagerada, tão repudiada pelos críticos da época; tudo sempre organizado sem contar com a verossimilhança.

O exagero é o ingrediente que mais aproxima o melodrama da tragédia antiga, é ele que proporciona a conquista do público, um público que procura o teatro para se emocionar e, posteriormente, purificar essas emoções através da kátharsis. Este exagero, essa desmedida do homem existe na tragédia e no melodrama e em ambos aparece para educar o público.

O personagem trágico erra e não pode fugir do destino ordenado pelos deuses, o seu delito é proporcional a sua capacidade de hýbris, a sua desmedida e a seu caráter de herói. E é devido a esse caráter de herói, que observamos a necessidade de uma reconciliação entre o mundo e o homem, depois da reviravolta decorrente do erro trágico. É essa reconciliação que conforta o espectador, que reconsidera seus valores e ações por meio do herói, quando assiste o que de terrível pode acontecer se for levado pela desmesura.

Eurípides, ao escrever Medéia, talvez nos tenha apresentado a heroína mais terrível de todas as peças trágicas, uma mulher de tal força que é capaz de matar os próprios filhos para vingar-se do marido. Mas, que personalidade é essa que Eurípides quis mostrar? O que move uma mulher de forma tão forte para um crime tão terrível? Medéia é uma mulher com poderes de feitiçaria e que já havia praticado outros crimes, incluindo a morte do irmão; portanto, uma mulher temida em Corinto, uma mulher que perdeu o leito por abandono, que não é igual às outras mulheres gregas, é impetuosa, misteriosa, capaz da mais terrível desmedida para alcançar seus objetivos. E é com esse espírito que Medéia vai falar às mulheres de Corinto, independente das diferenças convencionais:

“… Dizem que vivemos sem perigo a vida
doméstica, mas eles guerreiam com lança,
não compreendem que eu preferiria lutar
com escudo três vezes a parir uma vez …

…A mulher aliás plena de pavor
é covarde para resistir e ao ver o aço,
mas como na cama calha ser lesada,
não há outro espírito mais sujo de sangue” 
(v. 248-266)

Na passagem acima, Eurípides revela a personalidade de Medéia, a sua hýbris, o seu desejo desmedido, o seu aspecto feminino aflorado, enfim, o seu exagero. O público, no decorrer da peça vai julgando os atos de Medéia, reflete sobre o que se apresenta, aceita, nega, aprende, identifica-se, prova a desmedida da personagem que determinou seu próprio destino e escolheu sua expiação: privar-se dos filhos, destruir-se. É contra essa hýbris de Medéia que os assistentes devem precaver-se; ela teve seu terrível destino, que foi apresentado ao público como purificação, como reconciliação entre valores humanos e os valores do mundo.

Tentando fazer uma comparação entre a tragédia e o melodrama, no que toca ao uso do exagero na representação, vale destacar aqui a peça A dama de Saint Tropez, de Anicet Bourgeois, a história de uma mulher que abriu mão de sua felicidade, casando-se com um homem que não amava, para não deixar o pai na miséria. Aqui percebemos claramente a presença das personagens típicos do melodrama. Hortência, a protagonista, é filha do Conde d’Auberive, um homem que contraiu muitas dívidas para salvar a honra de um filho que acabou suicidando-se. O credor aparece para cobrar a dívida que o Conde só pode pagar se entregar suas terras e seu castelo. Jorge Maurício, o credor, não querendo arruinar o Conde e já apaixonado por Hortência, perdoa a dívida e pede a mão de Hortência em casamento. O conde não quer sacrificar a felicidade da filha, mas ela insiste em se casar para salvar o pai da miséria.

Depois do casamento, o par muda-se para Saint Tropez e, durante a viagem, Hortência encontra-se, por coincidência, com Carlos, seu antigo amor, em uma estalagem e ele fica sabendo de seu casamento. Já em Saint Tropez, quando Jorge já sabe que Hortência não o ama, todos a acusam de envenenar o marido. Ao final, toda a verdade é descoberta, o envenenamento fora feito por um empregado ambicioso que pretendia ficar com a fortuna do patrão que era seu parente. Carlos é chamado como médico para desvendar o motivo da doença e ajuda a inocentar Hortência.

Portanto, a tragédia clássica e o melodrama, além de representarem a desmedida do homem, os erros e incertezas, a inveja, a arrogância, o medo e a piedade, mostram como todos esses sentimentos humanos são vistos e julgados pelas leis que regem a cidade. É a condição do homem que é contestada, que é colocada em julgamento, como observou Jean Pierre Vernant. Mesmo que de forma diferente, melodrama e tragédia caminham para um julgamento do homem, julgamento este que busca uma purificação necessária, uma purificação que o espectador espera ao final do espetáculo.

Podemos afirmar, depois de uma análise das observações de Aristóteles sobre a tragédia grega, além de estudos recentes sobre o melodrama, que em ambos os gêneros dramáticos em questão, o espectador experimenta um prazer que não lhe é oferecido em sua vida cotidiana. É a arte dramática operando com os sentimentos do homem, através da imitação das ações deste mesmo homem. Tanto o espectador da tragédia, quanto o do melodrama é envolvido pela cena a que assiste, identifica-se com as desventuras e paixões das personagens, sente terror e compaixão e, por fim, purga esses sentimentos, garantindo a estabilidade emocional da população.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985.

BENTLEY, Eric. A experiência viva do teatro. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

BOURGEOIS, Anicet. A dama de Saint Tropez. Manuscrito da Biblioteca Nacional digitalizado pelo GETEB – Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro da UFSJ.

DUARTE, REGINA HORTA. Noites circenses : Espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995.

DUARTE, RODRIGO. FIGUEIREDO, VIRGÍNIA (organizadores). Mímesis e expressão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

EURIPEDES; Torrano, Jaa. Medeia. Sao Paulo: Hucitec, 1991.

HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. Trad. Walter H. Geenenl. São Paulo: Mestre Jou, 1980.

HUPPES, Ivete. Melodrama: o gênero e sua permanência. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2000

LUCOTTE. A filha do mar. Manuscrito da Biblioteca Nacional digitalizado pelo GETEB – Grupo de Estudos e Pesquisa em Teatro Brasileiro da UFSJ.

OROZ, Silvia. Melodrama: o cinema de lágrimas da América Latina. Rio de janeiro: Rio Fundo Ed., 1992.

SÓFOCLES. Édipo Rei. São Paulo: Abril, 1976.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e sociedade na Grécia Antiga. São Paulo: Brasiliense, 1991.