Recebi Bom dia camaradas na manhã de um dia de sol e não parei a leitura até o escurecer, esquecendo, inclusive, de que precisava elaborar algumas perguntas sobre o livro ao escritor angolano Ondjaki. A voz daquele menino, o miúdo, a voz que narra as estórias do livro, tem um ritmo de contar e uma verdade mesmo nas palavras que arrasta o leitor para suas memórias, as mentiras que inventa. No meio da escuridão de um país ainda constituído pelo medo e pela vigilância, Ondjaki prefere lembrar, através de uma outra voz que é também a sua, da esperança que era possível ver nas coisas, nos afetos que era possível construir. Bom dia camaradas é, antes, uma narrativa de coragem, e de uma poesia difícil de encontrar. Quando fechamos o livro, mesmo em meio às perdas que a história traz, ainda é possível sorrir. Sorrir só.
Nessa conversa com Ondjaki, concedida pelo correio eletrônico quando veio participar da FLIP (Festa Literária de Parati), do Rio de Janeiro, o escritor fala dos motivos pelo qual escreve, de suas experiências com o Brasil e da necessidade sua de contar histórias – “escrevo porque tenho estórias para contar”.
Victor da Rosa: Por que escreve?
Ondjaki: Acho que essa pergunta origina uma resposta que há-de ser sempre dinâmica, se tudo correr bem. Escrevo porque tenho sonhos dentro de mim, porque me é urgente contar coisas, como se um livro fosse uma partilha. E também escrevo porque tenho estórias para contar.
Victor: Mia Couto disse que, em Moçambique, o escritor precisa desaprender a ser escritor e passar a ser também outras coisas para poder dialogar com as pessoas, já que a oralidade é muito forte no país e a leitura não é hábito e, às vezes, nem possibilidade. Você, além de escrever, também se interessa pelo cinema, mais especificamente pelo documentário, e pelas artes visuais, além de ter feito teatro alguns anos. Trata-se da mesma questão em Angola?
Ondjaki: Não sei, pode ser uma opinião pessoal. Acho que os escritores escrevem em torno do que querem, do que sonham, de acordo com aquilo que querem dizer. Entendo que a oralidade é muito forte em ambos os países, mas nem todos os escritores trabalham com materiais da oralidade. Depende da escrita e dos objectivos de cada um.
Victor: Dois homens sentados num bar, tomando muitas cervejas e contando estórias da memória – basicamente é esse o fio que conduz seu livro anterior Quantas madrugadas tem a noite. De onde vêm suas histórias e como se dá essa pesquisa com a construção de uma língua mais oralizada?
Ondjaki: As minhas estórias variam de projecto para projecto. Algumas misturam a realidade com as minhas ideias, com as minhas fantasias, que eu coordeno para obter uma coerência literária. A linguagem mais oralizada advém das minhas observações, e parte dela é também fruto da minha criação.
Victor: Em seus livros, o tema da guerra é recorrente. Quando não há guerra, parece existir uma certa perplexidade de personagens vigiados pelo medo e até por certo caos. Em meio a isso, existe uma possibilidade de sonho, e poesia, principalmente em personagens que dão forma ao imaginário, tanto em histórias que contam da memória como em tentativas de olhar as coisas de uma outra maneira. Gostaria que falasse um pouco sobre isso.
Ondjaki: Em países que viveram submergidos, muitos anos, pelo espectro da guerra, é normal que ela apareça e reapareça recorrentemente. É o nosso caso em Angola. Mais do que falar de guerras, acho que ainda vou abordar, em futuros livros, o modo como as pessoas procuraram lidar com a guerra, isto é, o modo como foram vencendo os fantasmas. A guerra é, sempre foi, um monstro. Cada cultura que se cruza com esse monstro reage de modo distinto, mas todas procuram vencê-lo. Foi o que aconteceu em Angola, com um povo que sempre quis buscar sonhos e poemas num quotidiano que já foi muito difícil.
Victor: Você já conhecia o Brasil, através dos Estado da Bahia e Porto Alegre, em anos recentes. Neste ano, 2006, você veio para o Rio de Janeiro, e depois para o sul do país. Como foram estas experiências com o país?
Ondjaki: É uma oportunidade de conhecer vários pontos, várias gentes, várias culturas brasileiras. Vou vendo, aprendendo e incorporando. Adoro conhecer novas pessoas, novos modos de olhar e interpretar a vida. É isso que estou a fazer. Por outro lado, vou conversando também sobre o meu país, e tentando desmistificar um pouco esse continente africano, sobre o qual se sabe tão pouco. Procuro chamar a atenção para a diversidade étnica e cultural do continente africano, e mesmo desse país chamado Angola que, para muitos, é só um nome vago, repleto de coisas exóticas criadas pela imaginação de quem nos vê de fora. Mas por tudo isso está a ser uma experiência muito enriquecedora.
Victor: Bom dia camaradas é um romance que evidencia seus afetos e sua infância, como você diz mesmo na orelha do livro. Ao mesmo tempo, é uma narrativa escrita com a precisão de um prosador experiente. De que maneira você buscou esse equilíbrio?
Ondjaki: Em cada livro tento melhorar a minha literatura, a minha oficina. Neste livro fui buscar afectos e sensações, cheiros e lembranças, para construir um romance que fosse simultaneamente tratar a minha infância, a dos outros, as relações sociais na Luanda dos anos 80, numa perspectiva aparentemente simples. Porque é isso que as crianças são: aparentemente simples, mas são também atentas, sensíveis, interpretadoras.
Victor: Em nenhum momento do romance aparece o nome do menino que narra a história de Bom dia camaradas. Como ele se chama?
Ondjaki: Há, no texto, uma breve menção ao nome desse rapaz. Cabe ao leitor descobrir onde.