Resumo: O presente artigo[1] investiga os elos de aproximação entre a Literatura e a História na obra O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago, mediante a compreensão de estudos críticos acerca da interlocução entre a narrativa literária e a narrativa histórica, e a análise teórica-crítica do romance escolhido como corpus, principalmente no que concerne à inserção do jornal português O Século na malha narrativa.
Palavras-chave: O ano da morte de Ricardo Reis; José Saramago; Jornal O Século.
Abstract: This article examines the approach between Literature and History in the book O ano da morte de Ricardo Reis, by José Saramago, through understanding of critical studies regarding the dialogue between the literary narrative and the historical narrative as well as the theoretical-critical analysis of the novel chosen as corpus, especially what concerns the insertion of the Portuguese newspaper O Século in the narrative.
Keywords: The year of Ricardo Reis’s Death; José Saramago; O Século Newspaper.
Introdução
Os romances produzidos por José Saramago testemunham um sintoma recorrente no âmbito da prosa lusa: o fascínio dos autores contemporâneos pela interlocução entre a história e a arte romanesca. Nessa perspectiva, a matéria basilar das criações do autor consiste na história de Portugal, das suas raízes medievais à atualidade, marcada pelo novo panorama sócio-cultural português, surgido após a Revolução dos Cravos de 1974. Com engenhosidade e criatividade incomuns, a história se torna um elemento estruturante das narrativas do criador de O ano da morte de Ricardo Reis (1984) e a manipulação literária redimensiona os diferentes dados e elementos históricos em um conjunto ficcional, diferente do universo de onde foram tirados.
A presença das notícias jornalísticas em O ano da morte de Ricardo Reis cria uma conformação histórica aceitável, no que concerne à representação da época reinventada pelo romance. O exame dessa obra revela como elemento perceptível na estruturação textual, uma atenta e minuciosa utilização de textos jornalísticos de 1936, os quais foram extraídos, principalmente, do jornal lisboeta O Século, o de maior circulação em Portugal, naquele tempo.
Em O ano da morte de Ricardo Reis a narrativa saramaguiana recupera, de forma dinâmica, textos de jornais de 1936, época histórica focalizada pela ficção literária. As notícias de jornal possibilitaram ao romancista refigurar a história luso-européia da década de trinta, revelando a ascensão dos regimes ditatoriais de índole fascista, a Guerra Civil Espanhola e a manipulação da imprensa pelos regimes totalitários. Não se restringindo às informações veiculadas pelas diferentes notícias, o ficcionista joga também com o aspecto gráfico dos jornais, servindo-se de títulos, de fotografias e de suas legendas para ironizar, criticar e questionar os caminhos trilhados pela história do início do século XX.
Diálogo entre a Literatura e a História
No seu trabalho de refiguração do passado, o historiador utiliza a imaginação para preencher as diversas lacunas que lhe aparecem ao analisar os vestígios do passado. Os documentos que sobrevivem do passado não são o conjunto daquilo que existiu de fato, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à investigação da experiência humana com o tempo – historiadores. A respeito da intervenção do historiador na reinvenção do passado e da importância de se analisar o documento histórico, Jacques Le Goff registra:
A intervenção do historiador que escolhe o documento, extraindo-o do conjunto dos dados do passado, preferindo-o a outros, atribuindo-lhe um valor de testemunho que, pelo menos em parte, depende da sua própria posição na sociedade da sua época e da sua organização mental, insere-se numa situação inicial que é ainda menos “neutra” do que a sua intervenção. O documento não é inócuo. É, antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento (para evocar a etimologia) que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados, desmistificando-lhe o seu significado aparente (LE GOFF, 2003, p. 537-538).
A partir da colocação de Le Goff, observa-se que não existe um documento objetivo, inócuo, primário. Percebe-se, então, que o dever principal do historiador é realizar a crítica do documento, pois cada documento é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que detinham o poder. Só a análise do documento permite ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com pleno conhecimento de causa. Através da interpretação é que as informações sobre as vivências passadas, obtidas por intermédio da crítica às fontes, adquirem uma forma especificamente histórica e são integradas na estrutura lingüística de uma narração, dentro da qual podem exercer seu papel na orientação cultural. Como a interpretação apresenta as relações especificamente históricas entre os fatos em uma forma narrativa, ela, como processo cognitivo, está muito próxima do processo de “ficcionalidade”. O processo criador de sentido da interpretação histórica aparece como um ato essencialmente poético, aproximando-se na sua essência da Literatura.
De acordo com Georges Duby, “a história foi sempre fabricada para reforçar um poder, para uma reivindicação” (DUBY, 1989, p. 73). A partir dessa afirmação, podemos dizer que nenhum discurso histórico é neutro, pois há sempre uma manipulação da memória em função de interesses subjacentes à elaboração da escritura/narração. E este é um dos argumentos que foram utilizados contra o historicismo positivista, em função de não ser possível aceitar a memória como prova cabal do que aconteceu no passado. Para Le Goff “a cultura quer um passado que possa usar” (LE GOFF, 2003, p. 186).
O modo como uma determinada situação histórica deve ser configurada, depende da sutileza com que o historiador harmoniza a estrutura específica de enredo com o conjunto de acontecimentos históricos aos quais deseja conferir um sentido particular. Trata-se essencialmente de uma operação literária, criadora de ficção, assim como José Saramago realiza no romance O ano da morte de Ricardo Reis. Nesse romance, Saramago utiliza a história como matéria essencial para a confecção do discurso literário, visto que a narrativa saramaguiana recupera textos de jornais de 1936. A partir do jornal O Século, o romancista português realiza uma interlocução entre a Literatura e a História, pois ele refigura de maneira problematizadora e irônica a história luso-européia da década de trinta.
Segundo Aristóteles, “não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a obra de Heródoto podia ser metrificada; não seria menos uma história com metro do que sem ele; a diferença está em que um narra os acontecimentos e o outro fatos que podiam acontecer” (ARISTÓTELES, 1995, p. 28). A partir dessa afirmação, observa-se que a diferença entre o poeta e o historiador não está no meio que empregam para escrever (verso ou prosa), mas no conteúdo daquilo que dizem: enquanto o poeta representa o verossímil e o necessário, o historiador narra os acontecimentos que realmente sucederam.
De acordo com Hayden White, “a distinção mais antiga entre ficção e história, na qual a ficção é concebida como a representação do imaginável e a história como a representação do verdadeiro, deve dar lugar ao reconhecimento de que só podemos conhecer o real comparando-o ao imaginável” (WHITE, 1994, p. 115). No romance de Saramago, o real (histórico) é equiparado ao imaginável, resultando numa ficcionalização da história pela arte literária. A partir da utilização do jornal O Século na estruturação do texto literário, Saramago reinventa a história. E não importa se o mundo é concebido como real ou apenas imaginado, pois a maneira de lhe dar um sentido é a mesma.
Embora os historiadores e os romancistas possam se interessar por tipos diferentes de eventos, tanto as formas dos seus respectivos discursos como os seus objetivos na escrita são sempre os mesmos. Os leitores de histórias e de romances dificilmente deixam de se surpreender com as semelhanças entre eles. E a respeito da interlocução entre as narrativas históricas e os romances, White registra:
Vistos apenas como artefatos verbais, as histórias e os romances são indistinguíveis uns dos outros. […] A história não é menos uma forma de ficção do que o romance é uma forma de representação histórica (1994, p. 138).
Ao se ler o excerto acima, percebe-se que o discurso histórico, assim como o texto literário, é pluralista, visto que ambos se constituem não de verdades, mas sim de possibilidades. Saramago, no romance O ano da morte de Ricardo Reis, aproveita-se dessa interlocução para resgatar e questionar a matéria histórica através do universo ficcional.
O jornal O Século e a refiguração do ano de 1936 dentro do romance O ano da morte de Ricardo Reis
Através da inserção do jornal O Século na narrativa, José Saramago promove um diálogo entre a Literatura e a História, pois busca recompor dentro do romance O ano da morte de Ricardo Reis o ano de 1936, um ano conturbado pela ascensão na Europa dos regimes totalitários, como o salazarismo, o nazismo, o fascismo, além da Guerra Civil Espanhola, que culminou na morte de milhares de espanhóis, e na ditadura do general Franco. Saramago utilizou-se de notícias jornalísticas veiculadas pela imprensa portuguesa com o intuito de evidenciar o discurso ditatorial salazarista, o qual manipulou milhares de pessoas em Portugal. O escritor português desconstrói em O ano da morte de Ricardo Reis o discurso pró-Salazar dos jornais portugueses, a partir de comentários e relativizações que o seu narrador faz acerca das notícias que o personagem Ricardo Reis lê do jornal O Século.
Por meio da exploração das notícias do jornal O Século, Saramago conseguiu nos dar um panorama sobre os regimes fascistas, mostrando-nos o que foi aquele mundo do silêncio e do receio, da esperança surda e do gesto cúmplice, da rebelião e da impotência. Mediante a presença das notícias jornalísticas, Saramago consegue reinventar em seu romance o ano de 1936, conforme ilustra o trecho a seguir:
Ricardo Reis recebe no Alto de Santa Catarina as notícias do vasto mundo, acumula conhecimento e ciência, que Mussolini declarou, Não pode tardar o aniquilamento total das forças militares etíopes, que foram enviadas armas soviéticas para os refugiados portugueses em Espanha, além doutros fundos e material destinados a implantar a União das Repúblicas Ibéricas Soviéticas Independentes (SARAMAGO, 1988, p. 264).
A partir da leitura do trecho acima, percebe-se que o personagem Ricardo Reis toma ciência dos acontecimentos do mundo por meio da leitura do jornal lisboeta O Século. Com isso, observa-se que Saramago realiza em sua ficção um resgate da matéria e do discurso histórico, redimensionando os fatos e acontecimentos por meio dos comentários e intervenções irônicas de seu narrador, o qual condena a passividade e a alienação de Ricardo Reis, além de relativizar aquilo que o discurso jornalístico veicula. A presença do jornal O Século é fundamental para a criação do universo ficcional saramaguiano, visto que produz na narrativa uma recomposição histórica aceitável com relação à época focalizada no romance.
De acordo com Maria Carrillo, “os jornais e os outros meios de comunicação não se limitam a relatar e noticiar os acontecimentos” (CARRILLO, 1989, p. 217). A partir disso, pode-se dizer que os jornais “fabricam” as suas notas, o seu discurso sobre as coisas e pessoas, produzindo para o tempo e para a história conhecimento sobre fatos, que não só reproduzem a atualidade de um determinado grupo, mas ajudam a construí-la. E por meio dessa observação, pode-se observar dentro do romance de Saramago que o jornal O Século, talvez por estar inserido em um regime fascista e anti-democrático, adotou uma postura pró-Salazar, apoiando além do ditador português, todos os regimes totalitários em voga na Europa na década de 30. O jornal O Século ajudou a reproduzir e a consolidar o salazarismo em Portugal, pois noticiou somente aquilo que interessava ao regime, adotando uma postura extremamente unilateral com relação aos acontecimentos da época, elogiando ditadores como Hitler, Mussolini e o general Franco, e condenando o governo socialista da Espanha. O jornal lisboeta chamava os socialistas de a “horda vermelha”, conforme se depreende ao ler o fragmento abaixo:
O Exército espanhol contra a horda vermelha
Vão partir de Sevilha sobre Madrid mais colunas de tropas revolucionárias, comandadas, superiormente, pelo general Franco e pelo tenente-coronel Yagne, do “Tercio”, enquanto, em Algeciras, continuam a desembarcar milhares de soldados marroquinos[2].
O jornal O Século durante todo o período da Guerra Civil Espanhola deixou explícito o seu apoio ao Exército nacionalista espanhol, comandado pelo general Franco, noticiando matérias com títulos como “O exército espanhol combate a anarquia”[3], “A Espanha contra os marxistas”[4], “O Exército espanhol varrendo os comunistas”[5]. O jornal lisboeta publicou uma entrevista com o general Franco e noticiou com empenho e empolgação cada derrota dos comunistas espanhóis, enaltecendo os militares comandados pelo general Franco. Os fragmentos a seguir evidenciam isso:
O general Franco fala ao “Século”
[…] – Queremos a ordem dentro da nação! Aí tem a nossa divisa! Queremos o sentido da pátria, acima dos partidos. Queremos a supressão de toda a ingerência moscovita na vida espanhola.
– No que se refere ao movimento, posso garantir que ele se desenrola de conformidade com o plano que tracei. Nenhuma dificuldade especial se levantou na nossa frente. Só a atitude da esquadra constituiu, para mim, uma surpresa. No entanto, a marinhagem compreendeu o seu dever e já começa a cumpri-lo, aderindo, como sabe, em boa parte, ao movimento de salvação nacional da Espanha. Agora, a nossa vitória já não deve oferecer dúvidas a quem quer que seja.[6]
A agonia do comunismo espanhol
A esquadra ao serviço da causa nacionalista está pronta a entrar em ação contra as hordas dos comunistas. […] Foi nomeado diretor geral do Arsenal do Ferrol o contra-almirante Luiz de Castro Arizcun, que se encontrava na situação de reserva. Esta nomeação foi muito bem acolhida, por se tratar de um marinheiro de relevantes dotes e de grande prestígio.[7]
José Saramago explorou em O ano da morte de Ricardo Reis esse discurso pró-Franco adotado pelo jornal O Século, ironizando com extrema argúcia o entusiasmo com que os jornais portugueses noticiaram a sangrenta Guerra Civil Espanhola, conforme se observa no trecho abaixo:
Que a situação em Espanha é grave, até uma criança o sabe. Basta que se diga que em menos de quarenta e oito horas caiu o governo de Casares Quiroga, foi Martinez Barrio encarregado de formar governo, demitiu-se Martinez Barrio, e agora temos um ministério formado por Giral, a ver quanto tempo vai durar. Os militares anunciam que o movimento está triunfante, se tudo continuar como até aqui, o domínio vermelho em Espanha tem as horas contadas. Aquela já mencionada criança, ainda que mal sabendo ler, o confirmaria, só de olhar o tamanho dos títulos e a variedade dos tipos, um entusiasmo gráfico que desdobra em parangonas, e há de transbordar, daqui uns dias, na letra miúda dos artigos de fundo (SARAMAGO, 1988, p. 372).
No fragmento acima, percebe-se a crítica do narrador saramaguiano com relação ao empenho dos jornais portugueses na Guerra Civil Espanhola, pois ele frisa o tamanho dos títulos e a variedade das notícias da guerra. Segundo ele, “até uma criança” sabia que a Espanha estava em guerra civil, devido ao estardalhaço que a imprensa portuguesa provocou. De fato, as notícias acerca da guerra “transbordaram” dos jornais portugueses, pois eram tantas que se espalharam por muitos pequenos artigos. O jornal O Século é um grande exemplo, pois deixou até de publicar notícias a respeito de Portugal para rechear as suas páginas com o que estava acontecendo na Espanha.
Por meio da exploração das notícias jornalísticas, Saramago nos dá um panorama geral daquilo que foi uma guerra sangrenta, hedionda, que destruiu toda a Espanha. Com muito afinco e sensibilidade, a escrita saramaguiana registra essa mácula de fins da década de 30, a partir da inserção do factual na malha narrativa. Para Gerson Luiz Roani,
Saramago nos transmite a visão ou transfiguração desse acontecimento que fez irromper na Espanha uma sanha sanguinária. A caligrafia romanesca exprime a impressão acerca desse momento de destruição, enfatizando o imaginário de destruição de uma Espanha e de um povo com a liberdade estilhaçada. A leitura do romance saramaguiano estimula a consciência de que é impossível não se impressionar pelas descrições da dor, do grito reprimido, da destruição cega e cruel, da explosão, da morte cega, dos pesadelos trazidos pela hedionda guerra civil (ROANI, 2006, p. 268).
A voz do narrador saramaguiano possui um caráter polifônico, visto que, de acordo com a teoria polifônica da Bakhtin, constitui-se como articuladora e harmonizadora de vozes plurais que, num entrecruzamento incessante, promovem a inter-relação de várias ideologias. O narrador de Saramago reúne na malha narrativa diversas vozes, as quais na maioria das vezes são dissonantes. Um exemplo é com relação às vozes de Ricardo Reis, um ser passivo que apenas contenta-se com o espetáculo do mundo e aceita o discurso da imprensa como a verdade absoluta, e a da camareira Lídia, uma personagem que relativiza o discurso jornalístico, pois acredita que tais discursos são parciais. O excerto a seguir evidencia o que foi dito:
Estás tu aí a chorar por Badajoz, e não sabes que os comunistas cortaram uma orelha a cento e dez proprietários e depois sujeitaram a violências as mulheres deles, quer dizer, abusaram das pobres senhoras, Como é que soube, Li no jornal, e também li, escrito por um senhor jornalista chamado Tomé Vieira, autor de livros, que os bolchevistas arrancaram os olhos a um padre já velho e depois regaram-no com gasolina e deitaram-lhe o fogo, Não acredito, Está no jornal, eu li, Não é do senhor doutor que eu duvido, o que meu irmão diz é que não se deve fazer sempre fé no que os jornais escrevem, Eu não posso ir a Espanha ver o que se passa, tenho de acreditar que é verdade o que eles me dizem, um jornal não pode mentir, seria o maior pecado do mundo, O senhor doutor é uma pessoa instruída, eu sou quase uma analfabeta, mas uma coisa eu aprendi, é que as verdades são muitas e estão umas contra as outras […] o senhor doutor fala-me sempre com as palavras dos jornais (SARAMAGO, 1988, p. 387-388).
A partir da leitura do trecho acima, percebe-se que para o personagem Ricardo Reis o discurso jornalístico não mente, pois, segundo ele, só veicula a verdade. No entanto, a personagem Lídia o alerta para o fato de que “as verdades são muitas” e de que é preciso relativizar as notícias dos jornais. A voz de Lídia afirma que “o senhor doutor fala-me sempre com as palavras dos jornais”, trecho que evidencia a crítica saramaguina com relação à alienação e ao conformismo dos vários “Ricardo Reis” espalhados pelo mundo. Segundo Gerson Roani, a voz da personagem Lídia
relativiza o grau de fidedignidade das fontes de informações do Doutor Reis. No universo narrativo, Lídia é uma personagem “ex-cêntrica”, marginalizada e periférica em relação à história. De um lado, ela representa aquelas figuras marginalizadas pela historiografia oficial. Por essa razão, enfatiza a voz dos excluídos e dos silenciados, contribuindo para uma nova visão dos acontecimentos que a ficção resgata e reescreve (ROANI, 2006, p. 286-287).
Saramago nos mostra através da voz de Lídia que seres como Ricardo Reis se limitam a aceitar e a reproduzir o discurso daquilo que lêem, sem se darem conta da ideologia que está por trás de tais discursos. Assim, ele relativiza as notícias publicadas pelo jornal O Século, mostrando aos seus leitores que o discurso jornalístico não pode ser visto como uma verdade única e absoluta.
Por Saramago pertencer ao período atual de (auto)crítica do recente passado lusitano, ele realiza na ficção uma leitura crítica do passado português e europeu, utilizando a ironia como um recurso de combate e de desconstrução. De acordo com Fábio Lucas, o romance O ano da morte de Ricardo Reis “reproduz com discrição os arreganhos da maré autocrática que dominou a Europa na década de 30, mostrando que Portugal e Espanha se deixaram banhar no mesmo imundo lodo ‘patriótico’, em nome da ordem e da disciplina”[8]. Segundo Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago é um escritor consciente da necessidade de se (re)construir a identidade e o passado português. Para ela, o escritor se inscreve
na linhagem dos escritores portugueses contemporâneos que aprenderam a revisitar de maneira crítica os domínios da História oficial, não somente para desvelar, ao nível dos conteúdos, a sua presunção de poder apreender e domesticar o real, de modo a fornecer a fórmula da “verdade” que anula toda possibilidade de releitura: mas, sobretudo, chegou à dúvida fecunda que o lança num terreno onde a sedução da linguagem se faz mais poderosa – o da consciência de uma ruína que é preciso saber reverter em benefício da construção de sua própria ultra-passagem.[9]
Em entrevista concedida ao jornalista Francisco Vale do Jornal de Letras, Artes e Idéias, logo após a publicação da obra O ano da morte de Ricardo Reis em 1984, o próprio José Saramago afirmou que Ricardo Reis, espectador do espetáculo do mundo, “é talvez o mais indicado observador para o ano de 1936”[10], pois quase se identifica com o povo português dessa época, que apesar de alguns vãos sobressaltos, assiste à consolidação do Estado Novo. Para Saramago, o que o intrigava no heterônimo pessoano era, justamente, aquela indiferença em relação ao mundo. Ele afirmou em outra entrevista, dada ao jornalista Augusto Seabra do jornal O Expresso, que “quando ponho como umas das epígrafes deste romance ‘Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo’, isso é qualquer coisa que desde sempre me irritou”[11]. O escritor confirma que em seu romance “o ano de 1936 é dado de um ponto de vista crítico, muitas vezes por oposição dos fatos entre si”[12].
No romance O ano da morte de Ricardo Reis, Saramago imagina os últimos meses da vida do heterônimo pessoano Ricardo Reis, recriando o clima de Portugal e da Europa de 1936, cuidadosamente entrelaçando as malhas de uma ficção de pés fincados na História. O livro se constrói à imagem da percepção do mundo do próprio Reis, o qual apenas assiste à consolidação dos regimes totalitários na Europa. Por meio da leitura dos jornais portugueses, principalmente do jornal O Século, o personagem Ricardo Reis se informa com relação aos fatos e acontecimentos que tumultuaram o ano de 1936:
Minuciosamente, lia os jornais para encontrar guias, fios, traços de um desenho, feições de rosto português, não para delinear um retrato do país, mas para revestir o seu próprio rosto e retrato de uma nova substância, poder levar as mãos à cara e reconhecer-se, pôr uma mão sobre a outra e apertá-las, Sou eu e estou aqui (SARAMAGO, 1988, p. 87-88).
O narrador saramaguiano critica a conformação da realidade portuguesa e européia fornecida pelo jornal O Século, visto que a descrição do quadro social português e europeu era adulterado pelas páginas do jornal lisboeta, o qual publicava as suas notícias de acordo com os anseios do regime político estabelecido no poder. Entretanto, é preciso ressaltar que o jornal O Século, assim com toda a imprensa portuguesa daquela época, estava condicionado por uma censura impiedosa, a qual cuidava dos interesses da ditadura salazarista.
Mesmo adulterando a realidade histórica, veiculando uma postura de apoio ao regime de Salazar e propagando a ideologia fascista, o jornal O Século é um importante e rico documento histórico. De acordo com Gerson Luiz Roani, os textos jornalísticos de 1936 “servem como instrumento de reescrita da história portuguesa e européia para José Saramago, o qual é um escritor que tem a consciência de que a história sempre nos chega como um discurso marcado pelo signo da parcialidade” (ROANI, 2006, p. 290). Saramago compartilha das diretrizes e preceitos da Nova História, pois considera que a visão da historiografia não origina a única história possível. Ele tem a convicção de que a história é sempre narrada por um sujeito (historiador) que está inserido em uma determinada sociedade, compartilhando os seus valores e a sua ideologia. Além disso, o escritor português tem a plena noção de que o historiador escreve a história a partir de documentos, os quais propagam sempre os ideais de uma determinada classe, fazendo com que a visão acerca do passado seja sempre relativa.
Considerações finais
A obra O ano da morte de Ricardo Reis é exemplar para o estudo da interlocução entre a Literatura e a História, pois José Saramago inventa em seu romance um âmbito histórico para a ação e circulação efetiva de suas personagens, movimentando um primoroso conjunto de dados e elementos históricos, os quais foram extraídos dos jornais da época, principalmente do jornal lisboeta O Século.
Além disso, o romance O ano da morte de Ricardo Reis instaura uma questão basilar perseguida pela narrativa portuguesa contemporânea: a busca de uma nova identidade ou de respostas para o perfil identitário de uma nação presa a sonhos grandiosos, que a Literatura e a História instituíram, ajudaram a cristalizar e disseminaram pelos séculos seguintes. Diante desse cenário cultural, a ficção de Saramago empreende uma leitura crítica e relativizadora do passado português, reinventando no romance o ano conturbado de 1936, por meio da inserção do discurso jornalístico da década de 30 na malha narrativa e dos comentários irônicos do narrador saramaguiano acerca desse discurso. Com isso, o escritor português desmascara a ideologia salazarista propagada pela imprensa portuguesa da época e proporciona aos seus leitores uma nova visão a respeito dos fatos históricos.
Referências
ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. Trad. Roberto de Oliveira Brandão. 6ª ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
CARRILO, Maria. Portugal na Segunda Guerra Mundial. Contributos para uma reavaliação. Lisboa: Dom Quixote, 1989.
DUBY, Georges e LARDREAU, Guy. Diálogos sobre a Nova História. Lisboa: Dom Quixote, 1989.
JORNAL O SÉCULO, Lisboa, Grupo Jornalístico O Século. Publicação de janeiro a setembro de 1936.
LE GOFF, Jacques. História e memória. 5ª ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.
LUCAS, Fábio. “Pós-crítica: Poliedro Português”. Colóquio Letras, Lisboa, n. 120.
ROANI, Gerson Luiz. Saramago e a Escrita do Tempo de Ricardo Reis. São Paulo: Scortecci, 2006.
SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
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SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. “José Saramago – A ficção reinventa a história”. Colóquio Letras, Lisboa, n. 120.
VALE, Francisco. José Saramago sobre “O ano da morte de Ricardo Reis”: “Neste livro nada é verdade e nada é mentira”. JL-Jornal de Letras, Artes e Idéias, Lisboa, n. 121.
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso. Ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: EDUSP, 1994.
Artigo recebido em 27/04/2007 e aprovado em 02/06/2007.
[1] Este trabalho foi orientado pelo Prof. Dr. Gerson Luiz Roani.
[2] O Exército espanhol contra a horda vermelha. O Século, Lisboa, 8 de agosto de 1936, p. 6.
[3] O exército espanhol combate a anarquia. O Século, Lisboa, 19 de agosto de 1936, p. 2.
[4] A Espanha contra os marxistas. O Século, Lisboa, 10 de setembro de 1936, p. 5.
[5] O Exército espanhol varrendo os comunistas. O Século, Lisboa, 28 de julho de 1936, p. 2.
[6] O general Franco fala ao “Século”. O Século, Lisboa, 25 de julho de 1936, p. 1.
[7] A agonia do comunismo espanhol. O Século, Lisboa, 16 de agosto de 1936, p. 6.
[8] LUCAS, Fábio. “Pós-crítica: Poliedro Português”. Colóquio Letras, Lisboa, n. 120, p. 171-172.
[9] SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. “José Saramago – A ficção reinventa a história”. Colóquio Letras, Lisboa, n. 120, p. 178.
[10] VALE, Francisco. José Saramago sobre “O ano da morte de Ricardo Reis”: “Neste livro nada é verdade e nada é mentira”. JL – Jornal de Letras, Artes e Idéias, Lisboa, n. 121, 30-10 a 5-11-1984, p. 2 e 3.
[11] SEABRA, Augusto. O ano da morte de Ricardo Reis. O Expresso, Lisboa, 24 de novembro de 1984, p. 31.
[12] Idem, ibidem.