A ideologia da higiene e as doenças nos romances “O cortiço” e “Casa de pensão”

Raquel Lima Silva

RESUMO: A partir da análise de duas das mais importantes obras do naturalismo brasileiro – O Cortiço e Casa de Pensão-, buscamos observar como se dão as impressões características da Ideologia de Higiene, que se difundiu no cenário urbano do Rio de Janeiro no século XIX e que foi responsável por inúmeras transformações cariocas, dentre elas, a demolição de várias habitações coletivas, a fim de que, a cidade, uma vez reorganizada, ostentasse sua modernidade e desenvolvimento. Mais especificamente, temos por objetivo averiguar como o escritor brasileiro torna os problemas sociais do período matéria de reflexão literária, numa tentativa de defender uma das metas propostas pela estética naturalista: aproximar a literatura da ciência e da realidade social.

PALAVRAS-CHAVE: Aluísio Azevedo, Ideologia de Higiene, Naturalismo.

ABSTRACT: By means of analyzing two of the most important Brazilian Naturalist novels – O Cortiço and Casa de Pensão – this article aims to investigate how the characteristic impressions of the Ideology of hygiene are to be found in those texts, an ideology that was disseminated across the urban Rio de Janeiro during the XIX century, being responsible for myriads of transformations in that city, among which are the demolition of many a tenement-like houses, so that the city, once reorganized, could exhibit both its modernity and development. Precisely, this work aims at analyzing the way the Brazilian writer turns social problems concerning that period into literary subject matter, in an attempt to defend one of the objectives proposed by the Naturalist aesthetics: bring literature closer to science and social reality.

KWEYWORDS: Aluísio Azevedo, Ideology of hygiene, Naturalism

 

Introdução

O presente trabalho observa como a ideologia de higiene apareceu na segunda metade do século XIX e como começou a ser desenvolvida, bem como averigua as doenças mais significativas da época que, segundo Sidney Chalhoub (1999), no Brasil, foram: a febre amarela e a tuberculose. Mais especificamente, tem-se o intuito de refletir sobre a composição literária de dois dos romances mais famosos de Aluísio Azevedo, O Cortiço e Casa de Pensão, tendo em vista que os escritores naturalistas tornaram alguns problemas da sociedade matéria de reflexão literária, na tentativa de conferir certo cientificismo à Literatura, conforme sua crença ideológica e estética lhes permitia fazer.

Como herdeiro das idéias de Émile Zola, Aluísio Azevedo tenta aproximar a literatura da ciência, uma vez que o naturalista francês e seus seguidores buscavam descrever com exatidão os fatos analisados e não se restringiam somente à observação, mas também à experimentação, procedimento do qual resulta o romance experimental, o qual, segundo a própria definição de Émile Zola:

O romance experimental nada mais é do que a forma ideal da literatura destes novos tempos científicos. Observador-experimentador, o romancista redige a ata, ou relatório (le procés-verbal), de uma experiência; ele concebe uma intriga na qual as personagens provam, pelo seu comportamento, que a sucessão dos fatos é conforme ao determinismo dos fenômenos estudados. (…) (1979, p. 18).

Voltando, assim, a Aluísio Azevedo, gostaríamos de avaliar de que maneira o nosso maior representante naturalista, mediante os problemas oriundos do povo – o qual, nas palavras de Erich Auerbach trata-se do “quarto estado” (1971, p. 434) – incorporou artisticamente a discussão dos problemas aqui referidos aos seus romances naturalistas ambientados no Rio de Janeiro .

O quarto estado, como dissemos, refere-se, na escala social, à camada que apresenta os maiores índices de pobreza. Erich Auerbach (1971), quando escreve sobre os irmãos Edmond e Jules de Gouncourt (representantes do naturalismo francês), menciona que “encontrá-los como paladinos do quarto estado, ainda que somente do quarto estado como campo temático literário, é surpreendente” (p. 435). Temos aqui, portanto, um exemplo em que se nota a relação intertextual entre a literatura européia e a literatura brasileira, a qual foi, em algumas situações do XIX brasileiro, uma relação de influência de um modelo para uma obra por ele inspirada.

Como se pode perceber, Aluísio Azevedo tentará fazer aqui no Brasil o que Émile Zola e os irmãos Gouncourt fizeram na França. O romancista brasileiro, no entanto, assemelha-se ao estrangeiro ao mesmo tempo em que se diferencia, uma vez que o contexto histórico europeu não corresponde ao brasileiro e, como relata Antonio Candido, “(…). A consciência das condições próprias do meio brasileiro interferiu na influência literária, tornando o exemplo francês uma fórmula capaz de funcionar com liberdade e força criadora em circunstâncias diferentes (1991, p. 114).”

Tentar-se-á mostrar quão forte era a ideologia de higiene, a qual foi responsável pela destruição de vários cortiços, dentre eles, o “Cabeça de Porco”, o mais célebre cortiço carioca do período, demolido em 26 de janeiro de 1893, três anos depois da publicação de O Cortiço. Tal ideologia estava associada ao projeto de urbanização do centro da cidade do Rio de Janeiro e, para ser concretizada, tinha-se que fazer uma “limpeza generalizada”, visto que, segundo determinados setores da sociedade da época, os cortiços, casas de pensão e habitações coletivas em geral eram tidos como locais nocivos à saúde da população e deveriam ser exterminados.

Aluísio Azevedo escreve dois romances com títulos muito sugestivos, pois fazem referência explícita à polêmica higienista da época. Isso posto, este trabalho busca aprofundar as relações existentes entre a obra literária de Aluísio Azevedo e a realidade histórica do final do século XIX, no que se refere à ideologia de higiene e às doenças da época.

Análise

Influenciado, principalmente, pelo naturalismo francês, cujo maior representante foi Émile Zola, Aluísio Azevedo escreveu O Cortiço, em 1890, ano em que, segundo alguns historiadores da Literatura (Sodré, 1965, p. 187),  o naturalismo brasileiro atinge o seu apogeu e O Cortiço constituir-se-á um dos maiores livros da literatura nacional (Ibidem, p. 188). Trata-se de um romance que se aproxima da realidade, ao passo que revela os costumes e a sensualidade da gente do povo, mostrando a superlotação das habitações coletivas, os riscos aos quais essa gente está submetida e evidenciando, também, os perigos que tais habitações (e “tal gente”) oferecem à sociedade. Nesse sentido, em princípio, percebemos que as idéias do romance têm similaridade com as idéias dominantes no período e notamos a evolução literária, a qual, movida por uma nova tendência, buscará no povo, a matéria para a sua formação.

O naturalismo surge no Brasil em uma fase de acontecimentos marcantes que alteram a vida de todo o país. Ao começar no penúltimo decênio do século XIX, século da Abolição da Escravatura e da Proclamação da República, essa nova tendência literária desponta em uma época de revoluções sociais, de que é um primeiro exemplo o deslocamento do pólo econômico brasileiro da região nordeste para o centro-sul.

Serão a abolição da escravatura e a chegada de uma grande escala de imigrantes os fatores responsáveis pelas mudanças nos debates referentes ao projetos de nacionalidade. Deslocados para as metrópoles brasileiras, principalmente para o Rio de Janeiro, serão os escravos e a população imigratória os principais habitantes dos cortiços e das casas de pensão: os primeiros porque começam a “viver sobre si” e, passando a uma condição de “livres”, passam também à condição de “trabalhadores” desprovidos de qualquer forma de bem aquisitivo; já os imigrantes, por fugirem das mazelas e das perseguições dos países europeus, atravessam o Atlântico em busca da sobrevivência.

É importante salientar que a condição de “livres” para os escravos está passível de questionamento, visto que, por passarem a viver em condições de miséria, os indivíduos dessa camada não têm condições de se manter em sociedade. Portanto, para conseguirem meios de subsistência, passarão a viver sob a condição de “dependentes”. Esse termo “dependentes” é utilizado por Roberto Schwarz (1977), o qual menciona que, com base no monopólio da terra, a colonização gerou três classes sociais representadas pelo latifundiário (grande proprietário), o escravo (explorado para mão de obra) e o chamado “homem livre” que, segundo o crítico literário, na verdade, trata-se de “dependente”, ou seja, aquele que não é escravo, mas que tem uma relação de dependência com a classe dominante, expressa, principalmente, pela relação do favor. Como o próprio Schwarz ressalta:

[Sobre os homens “livres”] Nem proprietários nem proletariados, seu acesso à vida social e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, de um grande. O agregado é sua caricatura. O favor é, portanto, o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm. Note-se ainda que entre estas duas classes é que irá acontecer a vida ideológica, regida, em conseqüência, por este mesmo mecanismo (1977, p.16).

Como podemos notar, essa relação de dependência, como movimento ideológico da sociedade, é representada, no cortiço – cujo enredo desenvolve-se por volta de 1871 -, por João Romão e Bertoleza, sendo o primeiro responsável por falsificar a carta de alforria da última, tornando-se, além de seu amante, seu próprio senhor, já que Bertoleza está sempre a depender de suas ordens para tudo que faz. Outro personagem que reflete essa relação de dependência é o velho Botelho, o qual, tratando-se de um agregado do Miranda, necessita da aceitação do capitalista para sobreviver.

Isso posto, notamos que Botelho vivia como um parasita na casa do comerciante português, tratando-se, portanto, de uma figura representativa da hipocrisia das relações sociais, às quais os homens se submetem para manter a aparência por meio de vínculos, os quais, como podemos perceber, são responsáveis pela movimentação hierárquica das escalas da sociedade, em que entre um manipulador e um manipulado existe aquele que, não sendo nem um, nem outro, torna-se dependente.

Como forma de exemplificar as relações que existiam entre Miranda e Botelho, tem-se a seguinte passagem de O Cortiço:

Havia ainda, sob as telhas do negociante, um outro hóspede além do Henrique, o velho Botelho. Este, porém, na qualidade de parasita.

(…)

(…). Fora em seu tempo empregado do comércio, depois corretor de escravos; contava mesmo que estivera mais de uma vez na África negociando negros por sua conta. Atirou-se muito às especulações; durante a guerra do Paraguai ainda ganhara forte, chegando a ser bem rico; mas a roda desandou e, de malogro, foi-lhe escapando tudo por entre as suas garras de ave de rapina. E agora, coitado, já velho, comido de desilusões, cheiro de hemorróidas, via-se totalmente sem recursos e vegetava à sombra do Miranda, com quem por muitos anos trabalhou em rapaz, sob as ordens do mesmo patrão, e de quem se conservara amigo, a princípio por acaso e mais tarde por necessidade. (Azevedo, 1997, p. 30-31).

Existem outras relações sócio-econômicas contempladas no livro, o que aponta, mais uma vez, para uma sociedade em transformação. A mais evidente delas vem configurada na própria relação capitalista de exploração. João Romão, imigrante que veio fazer fortuna e ascender socialmente, é tanto explorador da relação do favor, quanto da relação capitalista: explora os trabalhadores com salários baixos e ainda aluga as casas de seu cortiço aos mesmos, fornecendo-lhes, também, a preços nada módicos, artigos de sua venda, o que faz com que o capital que sai de suas mãos retorne a elas em grande parte.

Antonio Candido, ao analisar a obra de Aluísio Azevedo afirma que “No seu romance [O Cortiço] o enriquecimento é feito à custa da exploração brutal do trabalho servil, da renda imobiliária arrancada do pobre, da usura e até do roubo puro e simples, constituindo o que se poderia qualificar de primitivismo econômico” (1991, p. 113).

Movido pela grande ambição de riqueza, em O Cortiço, João Romão chega a roubar materiais de construção para aumentar as casinhas da estalagem, vale salientar que Bertoleza é induzida pelo vendeiro a fazer o mesmo. Aluísio Azevedo denuncia, assim, o caráter de esperteza e promiscuidade por parte do dono da estalagem, o qual baseia suas conquistas na “ lei do menor esforço”, sempre visando lucrar em qualquer situação. É o que se pode notar na passagem que se segue:

Que milagres de esperteza e de economia não realizou ele [João Romão] nessa construção! Servia de pedreiro, amassava e carregava o barro, quebrava pedra; pedra, que o velhaco, fora de horas, junto com a amiga, furtavam à pedreira do fundo, da mesma forma que subtraíam o material das casas em obra que havia por ali perto.

Esses furtos eram feitos com toas as cautelas e sempre coroados do melhor sucesso (…).

Nada lhes escapava, nem mesmo as escadas dos pedreiros, os cavalos de pau, o banco ou a ferramenta dos marceneiros (Azevedo, 1997, p. 17-18).

Contudo, Aluísio Azevedo, além de descrever toda essa cena de furto a que se submetem João Romão e sua fiel companheira Bertoleza, não esquece, porém, de mencionar que ambos não deixavam de trabalhar um dia sequer, “sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo” (p.18). No entanto, reforça, mais adiante, o teor libertino que prevalece sobre o vendeiro; o qual “não perdendo a ocasião de assenhorear-se do alheio, deixando de receber, enganando os fregueses, roubando nos pesos e nas medidas (…)” (p.18). O que temos, portanto, dessa síntese dialética (observada em João Romão, personagem que furta para sobreviver, mas que trabalha incansavelmente) é a configuração do homem capitalista, o qual, mesmo roubando, reconhece o valor do trabalho, até porque é o trabalho, a mola propulsora das relações materiais e sociais.

Dentre os cortiços da época, o mais célebre foi o “Cabeça de Porco” que, assim como todos os cortiços do centro do Rio de Janeiro, em geral, era visto pelas autoridades, segundo Sidney Chalhoub como um “vacalhouto de desordeiros” (1999, p. 16) e “um mundo de imundície”. (1999, p. 19). Esse autor analisa, com fortes argumentos históricos, a destruição do “Cabeça de Porco” e relata, com detalhes, o episódio dessa destruição. Em seu texto, Sidney Chalhoub (1999) relata a ocasião em que a polícia vai até a estalagem e mais de cem trabalhadores da Intendência Municipal surgem armados para efetuar a demolição. Na ocasião em que os trabalhadores da Intendência começam a destelhar as casas, saem delas crianças e mulheres carregando móveis, colchões e tudo que, na sorte, conseguem salvar. A destruição do “Cabeça de Porco”, segundo Sidney Chalhoub (1999) marcou “o início do fim de uma era” (1999, p.17), ao dramatizar o procedimento de erradicação dos cortiços cariocas. Para ele, “o mais surpreendente nesse episódio é sua torturante contemporaneidade” (1999, p. 19).

Esse incidente do “Cabeça de Porco” se transformou  em um dos marcos fundamentais para se perceber a força que era imposta, na época, pelas autoridades locais, cuja base estava assentada na ideologia da higiene. O próprio Aluísio Azevedo faz menção ao acontecimento, ao inserir em seu romance O Cortiço, uma estalagem nomeada “Cabeça de Gato”, habitação coletiva rival ao cortiço de João Romão.

A idéia de que os cortiços ameaçavam a salubridade pública era tão forte que, para os mecanismos do poder, a única solução seria a demolição desse tipo de habitação coletiva, um local repleto de gente que, segundo a concepção ideológica do período, espremia-se em qualquer canto e espalhava-se rapidamente como raízes de uma erva danosa ao se alastrar por toda parte, “numa exuberância brutal de vida” (Azevedo,1997, p. 26). Em O Cortiço, Aluísio Azevedo alude a essas características dos habitantes da estalagem quando descreve a sensação que o Miranda tem ao recolher-se, fatigado do serviço, e passa a ouvir as exaltações da gente do João Romão:

À noite e aos domingos ainda mais recrudescia o seu azedume, quando ele [Miranda], recolhendo-se fatigado do serviço, deixava-se ficar estendido numa preguiçosa, junto à mesa da sala de jantar, e ouvia, a contragosto, o grosseiro rumor que vinha da estalagem numa exalação forte de animais cansados. Não podia chegar à janela sem receber aquele bafo, quente e sensual, que o embebedava com o seu fartum de bestas no coito. (Azevedo, 1997, p. 27, grifo nosso).

Essas designações de “animais”, de “bestas no coito” são muito expressivas, pois indicam um preconceito do personagem Miranda, fortemente confirmado pelo narrador frente às habitações coletivas, que apareciam no imaginário coletivo como responsáveis pela desordem pública, e, nesse caso, pela imoralidade ligada à luxúria.

Sobre essas denominações podemos notar, também, uma redução biológica do homem como uma das características do naturalismo, característica que, como observado por Antonio Candido “vê todos, brancos e negros, como animais” (1991, p. 117). Sobre esse processo de animalização, o crítico literário afirma que:

(…) a descrição das relações de trabalho revela um nível mais grave de animalização, que transcende essa redução naturalista, pois é a própria redução do homem à condição de besta de carga, explorada para formar o capital dos outros. (Candido, 1991, p. 117).

Relacionado à característica de desordeiros, a que a ideologia de higiene propagava sobre os moradores dos cortiços, temos a seguir um fragmento do jornal O Cruzeiro, no qual podemos observar a evidente discriminação que era destinada a esses locais de habitação coletiva e aos seus moradores, presente até mesmo no tom irônico que é dada à notícia, a qual consta do noticiário do jornal:

Quase um bouquet – Não será por falta de flores que o xadrez deixa de ser agradável: anteontem à noite para lá foram Manuel Gonçalves Craveiro e Felicidade Perpetua, que se engalfinharam na estalagem nº 202 da rua da princesa, por causa (dizem) de uma margarida. (23-24-25 de agosto de 1878, citado diretamente do jornal).

Com base nessas idéias que eram difundidas pelos jornais e assentadas na ideologia de higiene, surge uma verdadeira “operação de guerra” contra os “vadios”, uma idéia associada a uma questão de salvação nacional numa luta contra a transgressão da moralidade e dos costumes. Era preciso, de acordo com as idéias hegemônicas, realizar uma reurbanização civilizada da cidade do Rio de Janeiro, e, assim sendo, os cortiços precisavam ser exterminados.

Figura política importante, nessa época, foi a do prefeito Barata Ribeiro, que prometia pôr fim ao “Cabeça de Porco”, promovendo, assim, um verdadeiro combate, visto que os proprietários do cortiço não responderam à decisão da Intendência Municipal para  o despejo dos moradores, a fim de que pudesse ser feita a demolição da habitação coletiva (Chalhoub, p. 15). Com essa desobediência, Barata Ribeiro decidiu que, mesmo à força, o cortiço seria destruído, assumindo ele próprio e o chefe de polícia de Capital Federal o comando da operação, o que resultou na cena descrita anteriormente, em que os moradores saem desesperados de suas casas tentando salvar tudo o que podem e salvar-se a si mesmos.

Vale salientar que o acontecimento da demolição, segundo Sidney Chalhoub, “foi saudado com um humor asqueroso” (1999, p. 18), mas que “em geral as notícias sobre o episódio louvavam a decisão e a coragem do prefeito (…)” (1999, p. 18).

Como já mencionado, a destruição do “Cabeça de Porco” se transformou, como diz Sidney Chalhoub “num dos mitos de origem mesmo, de toda uma forma de conceber a gestão das diferenças sociais na cidade” (1999, p.19). Dessa forma de lidar com essa grande heterogeneidade dos habitantes, à qual estava submetida a cidade do Rio de Janeiro, incorporam-se dois conceitos principais que vão “contaminar” toda a sociedade, que são os conceitos de “classes pobres” e “classes perigosas” que denunciam praticamente a mesma realidade e que surgiram na França, na primeira metade do século XIX. No Brasil, a associação desses conceitos vai ser usada para definir a condição dos pobres em geral e, especialmente, dos moradores dos cortiços, um lugar que reunia desordeiros, vagabundos, viciados, entre outros indivíduos que ameaçavam a estrutura social, além de se tratar de um local visto como difusor das mais terríveis doenças epidêmicas.

Como eram grandes as difusões das mais variadas doenças pela cidade do Rio de Janeiro, naquela época, muitos também são os relatos encontrados nos jornais do período sobre assuntos ligados à questão da salubridade pública, dentre os quais O Cruzeiro, no qual contém informações sobre a ação da Junta de Higiene ou da Comissão Sanitária. Essas notícias, sobre a atuação dessas comissões, mostrando o quanto esse assunto era importante, eram dadas diariamente pelos jornais difundidos naquele tempo, como podemos observar neste trecho que se segue, também extraído de O Cruzeiro:

Comissão Sanitária – A do 3º distrito da freguesia de Sant’Anna, continuou nas últimas semanas seus trabalhos pelas ruas de D. Josephina, América e Providência, praça do Santo Cristo, largo da Providência, praça do saco de Alferes e travessas do Bomjardim e S. Diogo, e visitou 34 estalagens, 1 farmácia, 1 fábrica de sabão, 2 fábricas de moer café, 28 vendas, 7 quitandas, 8 armazéns de cereais, 3 açougues, 2 colégios de instrução primária, 1 casa de pasto, 1 botequim, 1 padaria, 1 depósito de madeiras velhas, 1 fábrica de mel de fumo, 1 depósito de carvão de pedra e 1 depósito de material de construção.

Excetuando-se 4 vendas, 8 estalagens e 1 padaria, cuja falta de conveniente asseio motivou serem dadas serias providências, todos os outros estabelecimentos se achavam em boas condições higiênicas.

Propagou-se vacina a 27 pessoas adultas e 91 crianças. (O Cruzeiro, “Boletim”, 27 de agosto de 1878, citado diretamente do jornal).

O cortiço era tido, como podemos notar, como um local onde se desenvolviam todos os tipos mais terríveis de desordem pública e visto, também, como um ponto das piores infecções. Com essa atitude – a de trazer para o seu romance aspectos repugnantes em termos morais, de organização social e relativos a questões de saúde pública – que passam a ser abordados de forma “crua” e realista, Aluísio Azevedo apresenta aos leitores um romance que se destina a explorar o que existe de “verdadeiro” e, para isso, teria que partir dos aspectos do cotidiano ou, seguindo as palavras de Erich Auerbach (1974) “(…) procuraria o seu tema na rua, um romance cujo conteúdo sério e puro (…) encomendaria os hábitos do público e seria nocivo para a sua higiene” (p. 437). Já pelas palavras do crítico literário, percebemos, mesmo que, implicitamente, que há uma grande força ideológica na qual o escritor naturalista se apóia para “efetuar sua tese”, uma dessas ideologias, no caso do naturalista brasileiro, refere-se à ideologia de higiene, a qual estava associada ao aperfeiçoamento e progresso da organização social em geral, simbolizando, segundo alguns intelectuais da época, o avanço social, pois passava a refletir as conquistas que levam uma  sociedade ao caminho da civilização. Em Sidney Chalhoub (1999), explicam-se duas idéias que levariam a este caminho. A primeira delas seria o modelo de aperfeiçoamento moral e material que teria validade para qualquer povo e a segunda seria a afirmação de que um dos requisitos básicos para que uma nação atinja a sua grandeza e prosperidade, – como nos “países mais cultos”, o caminho para a civilização –, estaria na solução dos problemas de higiene pública.

É a junção dessas duas concepções fundamentais que resulta nos pressupostos para o que viria a se chamar Ideologia da Higiene e que impregnaria o âmbito intelectual do país nas décadas posteriores e, enfim, daria suporte ideológico para uma ação saneadora que seria responsável por uma verdadeira operação de guerra.

O conceito de “classes perigosas” se dirigia aos indivíduos que viviam de forma ilegal e que adotavam as práticas do furto ao invés do trabalho. Essa idéia, portanto – mesmo em uma sociedade onde o trabalho não tinha lugar formal para o homem livre, uma vez que a escravidão acabava-se por aquela época, mas organizara toda as relações de trabalho durante vários séculos -, associava-se à noção de ociosidade, visto que aquele que não trabalha é considerado um vadio e está propenso a viver à margem da lei, ou seja, pode cometer atos que desrespeitam a ordem geral.

Logo, a noção de classes pobres estava diretamente relacionada com a de classes perigosas, como se um indivíduo, simplesmente por ser rico, estivesse isento de cometer qualquer crime, sendo tais crimes sempre cometidos pelos pobres. É assim que somente a pobreza de um indivíduo seria assaz para classificá-lo como um marginal irremediável.

É com esse raciocínio que a polícia começa a atuar a partir do pressuposto da “suspeição generalizada” (Chalhoub, 1999, p. 23), ou seja, todo e qualquer cidadão torna-se suspeito. O que ocorrerá, no entanto, é que alguns serão tidos como mais suspeitos do que outros, sendo os negros os principais deles, principalmente por trazerem nas veias e na pele o sinal intrínseco da escravidão, e por serem recentes egressos do cativeiro, não possuindo conhecimento da vida em sociedade. Assim sendo, estes indivíduos, não conhecedores de uma vida social, por terem vivido muito tempo em regime escravocrata, têm menos chances ainda de obterem empregos formais ou de acumularem qualquer tipo de bens, mal subsistindo e sendo excluídos das relações públicas, por fazerem parte da população de pobres, negros e suspeitos preferenciais. Sobre essa situação, podemos notar o alto grau de distanciamento entre as classes, o que faz com que o pobre não tenha lugar na sociedade brasileira. Para contrastar com tal fato, faz-se importante relatar o que diz Luiz Antonio Ferreira, segundo o qual, no século XIX, motivado principalmente pela exportação cafeeira, “o país valia-se do esforço de dois milhões e quinhentos mil escravos e esse número representava metade da população. (1997, p. 18).”

Em se tratando da suspeição generalizada, encontram-se em O Cortiço alguns personagens-tipo, que revelam a idéia que associa o negro com a “vadiagem” e que ameaçam o bem comum. Adaptando essa lógica à sociedade brasileira, Aluísio Azevedo dotou Firmo e Porfiro de características típicas de um malandro, como descreve o próprio autor em uma passagem do romance:

Era [Firmo] oficial de torneiro, oficial perito e vadio, ganhava uma semana para gastar num dia; às vezes, porém, os dados ou a roleta multiplicavam-lhe o dinheiro, e então ele fazia como naqueles últimos três meses: afogava-se numa boa pândega com a Rita Baiana. (Azevedo, 1997, p.62).

Para tentar relacionar as características dos dois personagens de O Cortiço com os “protagonistas” das notícias que podem ser encontradas no jornal, temos duas passagens que se seguem, extraídas de O Cruzeiro que se referem ao negro africano e ao imigrante italiano, respectivamente:

Termo do bem viver – Na subdelegacia da Glória assinou termo de bem viver por ser vagabundo e ratoneiro, o africano Cosme Pedro Martins (O Cruzeiro, “Boletim”, 27de agosto de 1878, citado diretamente do jornal).

Que perigo! – O cidadão italiano Francisco Cecilio tendo-se anteontem à noite embriagado muniu-se depois de uma machadinha e um canivete e foi para o largo da Providência provocar os transeuntes.

Felizmente apareceu logo um rondante que providenciou levando o turbulento para o xadrez. (O Cruzeiro, “Boletim”, 20 de agosto de 1878, citado diretamente do jornal).

Além da situação irregular em relação ao trabalho, Aluísio Azevedo também faz referência ao vício, dois elementos que estavam sempre juntos, sendo conseqüência um do outro, já que o vício do alcoolismo, por exemplo, é na época considerado capaz de tornar o indivíduo mais propenso à vadiagem. Nesta passagem que se segue, Aluísio Azevedo faz menção ao parati (popularmente, cachaça), bebida que é mencionada várias vezes no romance:

Desde a entrada dos dois [Firmo e Porfiro], a casa da Rita esquentou. Ambos tiraram os paletós e mandaram vir o parati, a “abrideira para a muqueca baiana”. E não tardou que se ouvissem gemer o cavaquinho e o violão. (Azevedo, 1997, p. 63).

Na seqüência do livro, de forma muito semelhante ao encerramento do segundo capítulo da terceira parte de Germinal, de Émile Zola, – também mencionada por Erich Auerbach (1974) -, Aluísio Azevedo descreve a algazarra que se forma no cortiço, ocasionada, especialmente, pela volta de Rita Baiana, que havia regressado à estalagem depois da ausência de meses, na pândega, com o Firmo. Assim, com o retorno de ambos, era somente questão de tempo para que a algazarra se apossasse de todo o cortiço. Bebida e comida à farta, associadas ao violão e ao cavaquinho, eram responsáveis por fazer ferver a estalagem de João Romão e todos os indivíduos “se ajuntavam” para festejar, provocando um barulho medonho, que atrapalhava, principalmente, o Miranda, dono do sobrado ao lado. Nas palavras do próprio autor:

Meia hora depois vinha das duas casas uma algazarra infernal. Falavam e riam todos ao mesmo tempo; tilintavam os talheres e os copos. Cá de fora sentia-se perfeitamente o prazer que aquela gente punha em comer e beber à farta, com a boca cheia, os beiços envernizados de molho gordo (Azevedo, 1997, p. 64).

Era essa tendência ao lascivo, ao licencioso que predominava na grande maioria das vezes e dominava o julgamento daqueles que não acreditavam que alguém que morasse num cortiço tivesse um mínimo de dignidade.

Ao descrever as alegrias grosseiras de uma camada da população, em que muitos vivem abaixo da linha da pobreza, Aluísio Azevedo reforça a tese da inevitável corrupção da matéria humana que padece frente à opulência e desperdício das classes elevadas. Com isso, o autor explora a relação das condições de vida, como por exemplo o alto índice de natalidade, cuja causa pode estar associada ao baixo nível de instrução dos moradores e, principalmente, relacionada à cópula, por ser, como observado por Erich Auerbach “o único deleite gratuito” (p. 447) daqueles habitantes, movidos, como descreve Aluísio,  por uma brutal sensualidade.

A personagem que melhor expressa essas características de lascívia (na estalagem de João Romão) é, naturalmente, Rita Baiana, a qual está associada aos aspectos da luxúria, da sensualidade brasileira e do caráter libertino, características que serão responsáveis por um dos maiores conflitos do romance, desencadeado por Firmo e Jerônimo, cuja conseqüência será a morte do primeiro, motivo que provocará o embate entre os dois cortiços (o de João Romão – Carapicus) e o cortiço rival (Cabeça-de-Gato), do qual o capoeira fazia parte.

São essas as impressões que a mulata provoca em Jerônimo, nas palavras do narrador do romance de Aluísio Azevedo:

Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele [Jerônimo] recebeu chegando ali: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abe feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e espelhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca. (Azevedo, 1997, p. 73).

Como podemos notar no trecho citado, o narrador de O Cortiço faz uso de descrições metafóricas, por exemplo, quando diz que Rita Baiana “era a luz ardente do meio-dia” e usa também de afirmações que estão envolvidas por uma certa plasticidade, uma vez que ele demonstra modelar a personagem Rita Baiana, para que essa configure o objetivo estético dele, ou seja, a mulata, ao possuir todas as características ressaltadas pelo narrador, é representada como o modelo de mulher brasileira.

Dessa forma, as personagens femininas da obra são dotadas de um vigor instintivo e, com isso, a mulata brasileira é  consciente do poder que exerce sobre os homens. Tais fatos podem ser observados na descrição que o autor faz sobre as impressões causadas por Rita Baiana, as quais são constituídas por cores fortes e estão relacionadas, entre outras, às comparações estabelecidas entre a mulata e alguns animais como a “cobra verde e traiçoeira”, “a lagarta viscosa” e “a muriçoca doida”. Como podemos notar na passagem acima citada, a sensualidade de Rita Baiana também está ligada ao inebriar-se dos sentidos pelos aromas com os quais a mulher se prepara para a sedução.

Assim como Firmo e Porfiro, Rita Baiana também carrega consigo a sina da vadiagem, que pode ser observada nesse trecho da obra:

– É doida mesmo!… censurava Augusta. Meter-se na pândega sem dar conta da roupa que lhe entregaram… Assim há de ficar sem um freguês…

– Aquela não endireita mais!… Cada vez fica até mais assanhada!… Parece que tem fogo no rabo! Pode haver o serviço, aparecendo pagode, vai tudo pro lado! (…) (Azevedo, 1997, p. 42).

Essas atitudes da mulata (compartilhadas por Firmo e Porfiro) contrariam um dos axiomas da lógica do Capitalismo, segundo a qual, a virtude de um bom cidadão seria sua predisposição para o trabalho, tendo ele, por ideal, o acúmulo de uma certa quantia voltada ao conforto, como a fim de garantir ao trabalhador um pouco de estabilidade financeira, da qual depende o sistema na medida em que o trabalhador transforma-se em pequeno investidor ou consumidor .

Vale, contudo, ressaltar que faz parte da mesma lógica capitalista que uns acumulem mais e outros menos, visto que existe uma grande concentração de renda restrita a uma gama infinitamente pequena da sociedade brasileira, que faz com que existam uma minoria rica e uma grande maioria em condições miseráveis de vida.

Por outro lado, mesmo aquele que trabalhasse, mas não conseguisse economizar, imediatamente seria associado a um indivíduo preguiçoso e, que, por talvez, não trabalhar o suficiente, ficaria mais propenso ao vício e à ociosidade, características estas, muito facilmente dirigidas aos pobres, os quais não conseguiam ascender socialmente, mas não por culpa individual, e sim por culpa do próprio sistema.

Eram esses os traços pejorativos dirigidos aos pobres e negros, como se eles fossem uma espécie maligna que ameaçava constantemente a classe rica da sociedade. Frisamos, contudo, que há personagens, no cortiço, nessas condições de pobreza, mas que nem por isso são perigosos. Oponde-se, portanto, à concepção do período, encontram-se em O Cortiço personagens que se solidarizam, que se ajudam, que compartilham do que possuem, principalmente ao que se refere à alimentação.

O que podemos  perceber, portanto, é que por ser excluída pela burguesia, a classe baixa, com seu vínculo interno, produzia (e ainda produz) uma espécie de sociedade paralela, a qual existia (e existe) dentro de uma outra sociedade elitista. Era, contudo, a  realidade social do cortiço, repleto de diversos tipos, que representava a verdadeira heterogeneidade brasileira.

Desenvolvida, então, pela classe burguesa e motivada pelas condições higiênicas e pela suspeição generalizada, a ideologia higienista  recaía, portanto, na seguinte hipótese mencionada por Sidney Chalhoub:

(…) os pobres carregavam vícios, os vícios produzem os malfeitores, os malfeitores são perigosos à sociedade; juntando os extremos da cadeia, temos a noção de que os pobres são, por definição, perigosos. Por conseguinte, conclui decididamente a comissão, “as classes pobres […] são [as] que designam mais propriamente sob o título de – classes perigosas –” (1999, p.22).

Aluísio Azevedo vivendo nessa época e tendo a oportunidade de observar tudo o que acontecia na Corte (Rio de Janeiro), trouxe para seu romance traços de uma realidade “externa” que passa, com a tendência naturalista a ter forte influência na literatura do século XIX. É essa preocupação com a realidade do período que promove uma maior objetividade e impassibilidade ao que se produz em oposição à idealização e subjetivismo da estética anterior.

É o naturalismo que traz para a obra literária aspectos tristes, amargos, repugnantes e até mesmo patológicos do real e, principalmente, das classes inferiores, é por isso que existe uma maior descrição dos acontecimentos, especialmente ao que se refere aos detalhes, daí a necessidade de um escritor neutro mediante ao que se descreve e se observa. Foi a partir desse objetivo do escritor naturalista, de trazer à cena todas estas mazelas e doenças, oriundas de toda a pobreza social, que, de acordo com Werneck Sodré surgiram “(…) os tipos completamente dominados pelas moléstias predeterminadas de seus nervos e de seu sangue” (Sodré, 1965, p.27).

Tendo em vista esta citação de Werneck Sodré (1965), tomamos conhecimento do Determinismo[1], como uma das teorias fortemente presentes nos escritores naturalistas, a qual pode ser utilizada para explicar o fim trágico de algumas personagens da obra de Aluísio Azevedo, como Pombinha – filha de Dona Isabel e a flor do cortiço; Florinda, filha de Marciana; Juju – protegida de Léonie e filha de Alexandre e Augusta; Senhorinha, filha de Jerônimo e Piedade, e de Zulmira – filha da Dona Estela e do Miranda.

O que existe de comum entre essas personagens citadas é que todas se tornam vítimas do meio e, como se vitimadas por um grande fado, ao qual, quase todas as personagens femininas do romance parecem estar designadas (no caso de algumas delas, transmitido hereditariamente), acabam por seguir o mesmo caminho das mulheres mais velhas, como Léonie, Leocádia e Estela.

Pombinha, depois de ter sido seduzida pela prostituta Léonie e depois de tomar consciência da fragilidade masculina, termina por tornar-se perita no ofício da vida fácil, a mesma sina que parece estar determinada para Juju, a qual evidencia traços de um futuro também leviano e de uma inescapabilidade fatídica do meio, o qual exercerá uma força que lhe será superior.

Senhorinha, uma vez sendo afetada pela desestrutura familiar, provocada pela separação dos pais e perdendo a educação que recebia pelo acúmulo do dinheiro que Jerônimo e Piedade faziam para garantir-lhe a escola, também dá indícios de que se tornará presa fácil em um ambiente que exerce um poder insuperável, do qual ninguém escapa. Algo similar ao que acontece à Florinda, a qual, ainda muito jovem, fica grávida, provocando, assim como Pombinha, uma grande amargura para sua mãe, a qual, depois de saber da situação da filha, começa a maltratá-la, impelindo-a a fugir de casa.

Já Zulmira, totalmente submissa aos pais, representa, no romance, uma figura que está designada a obedecer as leis sociais que zelam pela manutenção dos bens financeiros de uma família, bens estes que, também de acordo com uma máxima capitalista, devem ser multiplicados, cujo dote do casamento, por exemplo, pode ser uma ótima alternativa para ascensão social. É o que pode ser observado nitidamente no fato de o Miranda aceitar o pedido feito por João Romão pela mão de sua filha. Zulmira, portanto, reflete o mesmo que aconteceu com seus pais, os quais vivem juntos para manter as aparências e porque possuem entre si uma relação economicamente estabelecida.

No drama representado pela personagem Pombinha, também podem ser observadas características do Darwinismo Social[2], uma vez que somente aqueles que estão preparados para enfrentar as competições e as provações do meio são capazes de obter alguns êxito em vida. O que notamos, no entanto, é que estas personagens, enquanto vítimas, representam a camada inferior, visto que estão subordinadas às leis do lugar onde vivem, não demonstrando nenhum tipo de alteração. O contrário disso, logo encontramos na figura do vendeiro, o qual, ao vencer as imposições que lhe são oferecidas, torna-se rico, numa terra em que é estrangeiro e a qual teve que se adaptar.

Ao apoiar-se em teses deterministas e darwinistas, Aluísio Azevedo demonstra que não se busca mais observar e descrever o ser humano por meio de aspectos que distorcem o que ele realmente é, ou, de acordo com Werneck Sodré, ao citar algumas confissões de Émile Zola: “Já não se deseja mais observar o homem por meio dos vidros coloridos da metafísica, e sim como um agregado de elementos histológicos de fibras e de células, governado por um poder unificador – o sistema nervoso” (1965, p. 20). Ou seja, objetiva-se retratar o homem enquanto ser fisiológico que vive movido por fenômenos que o predeterminam. Daí a associação do romancista com um fisiologista ou um cientista, dando indícios do romance experimental.

Ao estudar a obra de Aluísio Azevedo, ao que se refere ao objetivo naturalista de representar a realidade, Antonio Candido ressalta que:

Num momento é possível encará-a como duplicação da realidade, de maneira que o trabalho plasmador fique reduzido a um registro sem grandeza, pois se era para fazer igual, porque não deixar a realidade em paz?

É possível noutro extremo, vê-la como objeto manufaturado com arbítrio soberano, que significa na medida em que nada tem a ver com a realidade, cuja presença eventual seria um restolho inevitável ou, de qualquer modo, um traço sem categoria hermenêutica (1991, p. 111).

O que notamos, entretanto, em Aluísio Azevedo, é o que podemos chamar de “Efeito de Realidade”, que não necessariamente se traduz em objetividade. Esse efeito estaria mais voltado, portanto, à impressão que o autor tem frente ao que observa e, por isso, possui marcas do seu ponto de vista. Werneck Sodré, ao escrever sobre a posição de Émile Zola, ressalta aspectos interessantes sobre o objetivo de fidelidade do real. Segundo o crítico literário:

Essa fidelidade, entretanto, correspondia a uma infidelidade total, embora representasse exatamente os quadros vivos, porque as razões daquilo tudo não apareciam, da miséria, da doença, dos vícios, da triste promiscuidade e das lutas terríveis e pessoais. Nesse caso, o naturalismo impassível, de simples observação, se realizava: mostrava o que existia, sem discutir, sem tomar partido, sem analisar, sem combater. Mas isso, precisamente nisso, estava a sua infidelidade, a sua falsidade, a sua deformação (Sodré, 1965, p. 188).

Em se tratando de Aluísio Azevedo, notamos sua preocupação em deixar registrado, em seu romance, aspectos que faziam parte da história de sua época, reunindo fatos da vida pública, dentre os quais as questões de salubridade e os costumes sociais que revelavam a realidade do brasileiro. Como diz Luiz Antônio Ferreira (1997) “O  cortiço é um excelente documentário do Brasil do século passado” (p. 8). Tendo esse objetivo em mente, Aluísio Azevedo faz uma descrição minuciosa dos costumes da gente da estalagem e percebe como aqueles indivíduos carregavam vícios, maus costumes, ou mais objetivamente, “não tinham classe”.

O difícil é dissociar tais hábitos de uma conseqüência da miséria social à qual aquela gente estava sujeitada ou pensar se os indivíduos realmente não tinham noção de higiene, visto que hoje tal associação pode ser recebida como preconceito, ou seja, ser pobre não implica, necessariamente, ser sujo ou não higiênico, conceito diferente, portanto, daquele disseminado no século XIX, de acordo com Sidney Chalhoub (1999).

Existem outras passagens, no romance, que merecem ser consideradas, como a cena em que o velho Libório, desdentado, devora toda a comida e, de repente, começa a comer um pedaço de carne grande demais para ser ingerido de uma só vez. Mediante um feroz ataque de fome, ele engasga-se seriamente ao tentar tal feito, produzindo uma repulsividade generalizada.

(…) Libório começou a tossir, aflito, com os olhos sumidos, a cara tingida de uma vermelhidão apoplética. A Leocádia, que era quem lhe ficava mais perto, soltou-lhe um murro nas costas.

O glutão arremessou sobre a toalha da mesa o bocado de carne já meio triturado.

Foi um nojo geral.

– Porco! gritou Rita, arredando-se.

(…)

– Arre diabo! resmungou Porfiro, cuspindo para o lado. Este é capaz de comer a todos nós sem achar espinhas! (Azevedo, 1997, p. 68).

Com estas descrições, o leitor toma consciência de como era a vida entre os habitantes da estalagem e tem diante dos olhos uma pintura de uma realidade viva, composta por maus hábitos e por uma nítida falta de asseio, em que as personagens estão inseridas num contexto de algazarra que reúne uma heterogeneidade de tipos desordenados. Para reforçar ainda mais essa idéia de desordem e de costumes irregulares, responsáveis por reproduzir à classe elitista a imagem dos cortiços como focos de ameaça à ordem e a higiene social, temos as seguintes passagens do romance, que se referem aos hábitos dos inquilinos e ao aspecto sempre “sujo” da personagem Bertoleza, respectivamente:

Do meio para o fim do jantar o barulho em ambas as casas era medonho. No número 8 barravam-se brindes e cantos desafinados. O português amigo da das Dores, já desengravatado e com os braços à mostra, vermelho, lustrosos de suor, intumescido de vinho virgem e leitão de forno, repotreava-se na sua cadeira a rir forte, sem calar a boca, com a camisa a espipar-lhe pela braguilha aberta. (…).

Em casa de Rita Baiana a animação era ainda maior. Firmo e Porfiro faziam o diabo, cantando bestialógicos, arremedando a fala dos pretos cassanges. Aquele não largava a cintura da mulata e só bebia no mesmo copo com ela; o outro divertia-se a perseguir o Albino, galanteando-o afetadamente, para fazer rir a sociedade. (Azevedo, 1997, p. 64).

Bertoleza, com uma grande colher de zinco gotejante de gordura, apareceu à porta, muito ensebada e suja de tisna (…) (Azevedo, 1997, p. 64-65).

Ao descrever tais atitudes, o narrador naturalista revela a estalagem – numa referência com os cortiços da época –, como sendo um ambiente onde se alastra a sujeira e a imundície e que, portanto, era vista como um problema para o controle social dos pobres e também como uma ameaça para as condições higiênicas da cidade, ao passo que, um local em tais condições de maus costumes seria responsável pela transmissão de focos de várias doenças contagiosas.

Tais aspectos também são fortemente explorados em Casa de Pensão, principalmente quando Amâncio, o protagonista do romance, passa a noite na república do Paiva, um companheiro de estudos. Em determinadas partes do livro, é nítida a associação feita entre a falta de higiene, num lugar onde moram vários estudantes, e o risco de se contrair vários tipos de doenças, por causa da falta de asseio. O próprio protagonista do romance, Amâncio, é um jovem muito propenso às enfermidades, muito fraco e sensível. Ao longo do livro, ele adquire vários tipos de doenças, dentre elas, a sífilis, transmitida a ele pelo sangue da ama que o amamentou. Para Werneck Sodré “O naturalismo está plenamente representado em Casa de Pensão, na forma e no conteúdo, na estrutura e nas partes e tipos, a começar pelo principal, Amâncio, um vilãozinho, fruto do meio e de suas mazelas, fatais, que lhe moldam o destino” (1965, p. 181).

Sobre a Sífilis adquirida pelo sangue, também encontramos no jornal O Cruzeiro, um trecho que faz referência a esta enfermidade que Amâncio adquiriu da ama que o amamentou:

Interesse de todos

Impureza do sangue

Nunca é permitido o tempo que se emprega em adquirir esclarecimentos sobre os males que nos afligem, e menos em relação aos meios de debelai-os.

Supondo que os nossos leitores se não recusarão a prestar-nos alguns minutos de atenção, externamos aqui os resultados de nossas observações e estudos sobre as causas da impureza do sangue e dos meios de sanificá-las.

Quando, por efeito de má e viciada amamentação, hereditariedade ou sífilis adquirida, o sangue se altera, uma série de moléstias se manifesta com maior ou menor intensidade, neste ou naquele órgão, desde o berço até a idade decrépita.

A absorção por contato impuro produz a sífilis primitiva, de caráter e natureza do vírus absorvido, o qual, entrando na circulação, manifesta depois os efeitos da sífilis  secundária e terciária, em épocas mais ou menos remotas.

É por isso que pessoas há que, poucos dias depois de uma infecção, começam a manifestar sintomas de sífilis, enquanto que outras, que haviam deixado a convivência suspeita, pela honestidade doméstica, só muito tempo depois sentem-se afetadas do escrofolides, bobas, feridas nas pernas e nariz, que tornam-se crônicas, escamas por todo o corpo, cravos secos nos pés e mãos, dores estescópas e reumáticas, e tantas moléstias de pele que são conhecidas sob diferentes denominações. Estas, recusando a verdadeira origem dos seus padecimentos, atribuem-nos a causas de naturezas diversas, resultando de semelhante ilusão prolongarem-se os sofrimentos, pela inércia do tratamento. (O Cruzeiro, “Anúncios”, 25 de agosto de 1878, citado diretamente do jornal).

Amâncio, além de enfermiço, também tem um caráter sensível que lhe é próprio, denotando, assim, que ele, enquanto maranhense, não havia se adaptado às características climáticas e ambientais do Rio de Janeiro. No trecho que se segue, destaca-se o excesso descritivo da realidade, evidenciando, principalmente, a direta relação de que falta de higiene entre estudantes era motivo inconteste para o desenvolvimento de doenças contagiosas.

Do lado oposto, no chão, sobre um lençol encardido e cheio de nódoas, a cabeça pousada num jogo de dicionários latinos, jazia o Paiva, a sono solto, apenas resguardado por um colete de flanela.

(…)

O quarto respirava todo um ar triste de desmazelo e boêmia. Fazia má impressão estar ali: o vômito de Amâncio secava-se no chão, azedando o ambiente: a louça, que servira ao último jantar, ainda coberta de gordura coalhada, aparecia dentro de uma lata abominável, cheia de contusões e comida de ferrugem. (Azevedo, 1981, p. 41).

É relevante ressaltar no romance, além do efeito de realidade, as várias passagens em que Amâncio encontra-se adoentado, uma vez que o personagem mal sai do estado de convalescença e já adquire uma nova enfermidade, denotando, assim, seu aspecto altamente débil frente ao clima da capital carioca, a qual enfrentava, no período, uma profusão de epidemias e endemias, como a febre amarela e a tuberculose, sendo estas doenças um dos maiores perigos fluminenses da época, ao serem responsáveis pelo registro de um número elevadíssimo de vítimas fatais.

O jornal também traz dados estatísticos sobre as vítimas de doenças contagiosas, como podemos observar no trecho que se segue, retirado, também, de O Cruzeiro:

Mortalidade da cidade do Rio de Janeiro – a mortalidade da cidade do Rio de Janeiro, durante a quinzena de 1 15 do corrente, segundo o boletim da Junta Central de Higiene pública, foi a seguinte:

Causas de morte – Febre amarela 3, ditas remitentes e intermitentes 50, varíola 120, sarampo 4, linfatites 3, erisipelas 2, diarréias 10, disenterias 5, congestão pulmonar 3, bronquites e pneumonias 67 (O Cruzeiro, “Boletim”, 28 de agosto de 1878, citado diretamente do jornal).

Podemos ratificar a pouca resistência de Amâncio e sua predisposição às doenças, nos seguintes trechos citados, bem como o preconceito e o medo que surgia, por parte das demais personagens ao saber que existia um doente entre eles:

A noite apresentou-se o Campos, a quem o Coqueiro, de passagem, prevenira dos incômodos de Amâncio; trazia consigo um médico.

Este declarou incontinenti que o rapaz tinha bexigas; mas, antes que fizessem espalhafato, afiançou que eram benignas. “Bexigas doídas, cataporas, como vulgarmente chamavam por aí. Ficassem tranqüilos, que o caso não era grave; convinha, porém, ter algum cuidado com o doente: – evitar a ação do vento e muita limpeza com a roupa de cama.”

(…)

A mulher do Paula Mendes, que abrira a porta do quarto para escutar o que dizia o médico, rompeu logo a falar sobre o abuso de consentirem ali “um bexigoso!”

Daquela forma, em breve a casa se transformava num hospital! Já lá tinham um tísico, que à noite não a deixava dormir com o gogo; agora era um bexiguento; amanhã seria a febre amarela e depois a lepra! – Arre! (Azevedo, 1981, p. 105).

Nessa outra passagem extraída do romance, o leitor fica a par da precisão que tem Amâncio de se mudar  para um arrabalde[3]  para que possa se restabelecer de novos incômodos que estava demonstrando, tendo em vista que uma nova doença lhe dava sinais de ameaça, desta vez, tratava-se, porém, de suspeitas da febre amarela, daí a urgente e imprescindível necessidade de mudança:

Enfim, disse o marido de Hortênsia, despedindo-se – acho que o senhor [destinando-se a Amâncio] deve fazer o presente e tratar logo de sair daqui; já não digo pela questão da despesa, mas porque lhe convém à saúde. Escolha um arrabalde de bons ares ou então dê um passeio a Petrópolis; o médico afiançou-me que o senhor tem ameaços de uma febre padulosa, e isso é o diabo na época que atravessamos: a febre amarela grassa por aí que não é brinquedo. (Azevedo, 1981, p. 127).

Outro personagem que pode ainda mais corroborar a associação do jovem com as doenças epidêmicas do período é o tuberculoso que vive na casa de pensão em estágio terminal da moléstia, visto que, sempre quando descrito, o autor faz menção em ressaltar suas características físicas e o ambiente degradante no qual vive. As cenas que Aluísio Azevedo destina ao tísico do quarto número 7, onde está alojado na casa de Madame Brizard são minuciosas e abrangem desde o aspecto sombrio do local até os pormenores do sofrimento daquela pobre alma jovem que agoniava, ao esperar o momento da sua morte, num estado mórbido de um corpo que vai aos poucos se deteriorando, como se passasse por um processo de putrefação.

Não tossia; apenas, de quando em quando, o esforço convulsivo para arrevessar os pulmões desfeitos sacudia-lhe todo o corpo e arrancava-lhe da garganta uma ronqueira lúgubre, que lembrava o arrulhar ominoso dos pombos.

(…).

Não podia sossegar. O seu corpo, chupado lentamente pela tísica, nu e esquelético, virava-se de uma para oura banda, entre manchas excrementícias, a porejar um suor gorduroso e frio, que umedecia as roupas da cama e dava-lhe à pele cor de osso velho, um brilho repugnante. (Azevedo, 1981, p.128).

Na seqüência do romance, o leitor depara-se com o contato que Amâncio tem com o tuberculoso, antes de este último sucumbir. O narrador, no entanto, já havia mencionado a relação que Amâncio tinha com o moribundo, visto que aquele destinara o seu moleque para fazer companhia ao tísico. São estas as palavras do narrador sobre Amâncio em relação ao tísico: “Não é que o espetáculo daquele aniquilamento lhe tocasse o coração, mas porque lhe mordiscava a curiosidade com esse frívolo interesse de pavor, que nos espíritos românticos provocam os loucos e os defuntos” (Azevedo, 1981, p. 128). Uma vez tendo sido estabelecida essa relação entre ambos os personagens, a lembrança daquele vulto esquelético não deixava de perseguir o jovem protagonista, até o momento crucial da morte do moribundo:

Uma agonia violenta tolheu-lhe a fala. Ele [o tuberculoso] ainda tentou dizer alguma coisa, mas o sangue purulento já lhe golfejava da boca e caía-lhe em jorro pelo corpo. Estirou-se todo, dobrou a cabeça para trás e, depois de entesar num estremecimento os membros rechupados, foi pouco a pouco cerrando os lábios e empenando o corpo com um gemido longo e sentidíssimo. (Azevedo, 1981, p. 130).

É por causa desta ausência de asseio, em que não existe a preocupação por parte dos moradores em cuidar do ambiente no qual vivem ou porque tal local já está imerso num meio degradante de enfermidades incuráveis na época, que se reforça ainda mais a tese de que o cortiço e a casa de pensão são locais de disseminação de doenças, aspectos que afetam a salubridade e abrem as portas para os maiores perigos da época: a febre amarela e a tuberculose, além da varíola e do cólera. Toda essa gama de motivos que podiam ser detectados visualmente, eram desencadeadores fortes da ideologia de higiene, a qual visava à demolição desse tipo de habitação coletiva, para que junto a isso, fossem exterminados, também, todos os riscos, que poderiam ser fatais, para uma sociedade em constante transformação, como era o Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX.

Retornando à estalagem, de João Romão, é interessante, contudo, notar, que mesmo sendo moradores de um cortiço, é comum em alguns inquilinos de João Romão a inquietude frente à sujeira da habitação. Várias vezes o dono do cortiço adverte seus inquilinos para que zelem por suas casas e pelo pátio, principalmente quando o vendeiro anda importunado com alguma situação (que na maioria das vezes envolve questões financeiras).

Outra personagem que aparece freqüentemente limpando sua casa é a Marciana, que demonstra ter consciência de que o local precisa ser limpo. Mas, ao passo que ela limpa, varre e lava, não consegue vencer aquela espécie de praga que parece tomar conta daquele estabelecimento, o qual vive com um odor forte e áspero, com um “cheiro acre de sabão ordinário” (Azevedo, 1997, p. 35), nas palavras do narrador do romance. A sujeira é tanta, que parece já estar de todo inserida naquele meio degradante e sebento, impregnado pelo fumo dos cachimbos, pelos restos de comida e pelos maus costumes de seus habitantes. Na cena seguinte, pode-se notar a situação de Marciana, que fica irritadíssima ao saber que sua filha Florinda está grávida. Nervosíssima com a filha e diante da sujeira e do fedor ao redor em que vive, Marciana demonstra estar ciente dos riscos aos quais está submetida.

(…) Marciana vinha tão furiosa que, sem dar palavra à filha e com os braços moídos de esbordoá-la, abriu toda a casa e correu a buscar água para baldear o chão. Estava possessa.

– Vê a vassoura! Anda! Lava! lava, que está isto uma porcaria! Parece que nunca se limpa o diabo desta casa! é deixá-la fechada uma hora e morre-se de fedor! Apre! isto faz peste! (Azevedo, 1997, p.101).

Outra passagem que merece ser tratada é essa em que João Romão, num dia em que estava totalmente frustrado, começa a praguejar os habitantes do cortiço. Nesse episódio ele protestava contra tudo e contra todos, num daqueles seus momentos de possessão:

(…) [João Romão] Mandava, com um berro, saírem as crianças de seu caminho: “Que praga de piolhos! Arre, demônio! Nunca vira gente tão danada para parir! Pareciam ratas!” (…).

– Quero isto limpo! bramava furioso. Está pior que um chiqueiro de porcos! Apre! Tomara que a febre amarela os lamba a todos! maldita raça de carcamanos! Hão de trazer-me isto asseado ou vai tudo para o olho da rua! Aqui mando eu! (Azevedo, 1997, p. 106-107).

Pelos trechos analisados, podemos notar que, nos próprios personagens, a ideologia de que a sujidade estava associada às doenças epidêmicas, responsáveis pelo alto índice de mortalidade, também estava presente, algo que já é explicitado na voz da personagem Marciana, quando ela diz: “isto faz peste!”, ou na fala de João Romão, quando ele vocifera aos moradores do cortiço: “Tomara que a febre amarela os lamba a todos!”.

Com o que dizem, as personagens demonstram que estão cientes de que o local sujo pode causar várias enfermidades, mas no embate que elas têm contra a sujeira, podemos verificar que são vencidas pela imundície, a qual já está incorporada à casa e a todo o cortiço de forma definitiva, reforçando o conceito de que esses lugares são propagadores de doenças, principalmente por se tratar de locais que reúnem uma aglomeração dos mais diversos tipos humanos, com uma variedade de condições de vida que se desenvolvem num meio degradante.

A grande proliferação dos cortiços na cidade do Rio de Janeiro, nas décadas de 1850 e 1860, segundo Sidney Chalhoub (1999) tem como motivos principais o aumento do fluxo imigratório, especialmente de portugueses e italianos; o crescimento do número de alforrias obtidas pelos escravos e os altos preços de aluguéis.

Todos estes motivos foram tratados por Aluísio Azevedo em seu romance, no qual se encontra: a figura do português, fortemente representada por João Romão, Miranda e Jerônimo (passando, este último, por um verdadeiro “abrasileiramento”); a figura do italiano, observada nos personagens de Deoporto, Pompeo, Francesco e Andréa, os quais são sempre tratados como pouco higiênicos, sendo os dois primeiros vítimas fatais da febre amarela; e a figura do escravo, personagem que é apresentado, ou como um  fugitivo – que encontra no cortiço uma forma de refúgio – ou como um alforriado, que passa a “viver sobre si”. Para reforçar o que é dito por Sidney Chalhoub (1999), Luiz Antônio Ferreira (1997) relata que em 1874 no Brasil existiam 20.000 (vinte mil) imigrantes e que em 1888 o registro, só dos italianos, excedia 200.000 (duzentos mil).

A representação mais evidente da figura do escravo está em Bertoleza, a qual, como já mencionado, teve sua carta de alforria forjada por João Romão, passando a viver como companheira fiel do dono do cortiço, mas continuando sempre sob a égide de uma constante exploração. Para completar a situação da época, o alto preço dos aluguéis faz com que qualquer tipo de gente, imigrante, negro ou até mesmo branco passem a viver em habitações coletivas.

Outra questão muito fortemente difundida no período é a de que, além de oferecerem perigo à ordem constitucional, os pobres ofereciam, também, o risco de contágio. Nessa época, os intelectuais médicos difundiam que os hábitos de moradias pobres eram nocivos à população, isto porque, nas palavras de Sidney Chalhoub (1999) “as habitações coletivas seriam focos de irradiação de epidemias, além de naturalmente, terrenos férteis para a propagação de vícios de todos os tipos” (p. 29).

Quanto às condições higiênicas, os estalajadeiros seriam obrigados a preservar suas casas da melhor maneira possível, evitando qualquer indício de risco à salubridade e caberia aos fiscais zelar pelo cumprimento de tais regras. Todos os cortiços necessitariam ter um portão de ferro e haveria toque de recolhimento, existindo, também, um inspetor de quarteirão. No entanto, essas e outras medidas não foram adotadas pela Câmara Municipal. Esses assuntos, que envolviam a demolição e a inspeção dos cortiços, viravam uma polêmica e, além de se tratar de uma questão social, transformava-se, por conseguinte, em disputa política.

Vale salientar, contudo, que muitas das mais importantes propostas solicitadas por alguns parlamentares e até mesmo por alguns fiscais, como o fiscal de Santa Rita, o qual estava “preocupado em garantir a facilidade da existência dos pobres (…) visando a impedir que os cortiços se tornassem ‘focos de vícios’ ou de transgressões ‘da moralidade dos costumes’, assim como asilos permanentes de infecções deletérias da saúde pública” (Chalhoub, 1999, p. 31) eram rejeitadas e pouco se propunha, por exemplo, em relação ao destino dos moradores que ficariam sem moradia após o extermínio das estalagens, questão que era simplesmente ignorada e fazia com que os habitantes das estalagens, sem destino e sem local para onde ir, se munissem dos destroços da demolição e subissem o morro, indo para a região periférica. Notamos, portanto, que o intuito das classes dominantes era o de reurbanizar o centro do Rio de Janeiro, não demonstrando interesse para com as regiões mais afastadas do centro da cidade.

Aluísio Azevedo, ciente deste acontecimento de despejo, revela por meio da personagem Marciana, a difícil situação de quem sai do cortiço e não tem nenhum outro local ao qual recorrer. Marciana, transtornada com a filha que fugira de casa depois de ser maltratada, começa a dar sinais de demência e já não tinha como reagir frente ao pedido de desocupação da casa, feita por João Romão. Sem forças, via suas coisas serem deixadas à rua e, mantendo um único gesto com a cabeça, ficava monologando. Aluísio Azevedo pinta uma triste cena para esse fato, como se pode observar a seguir:

Principiou o despejo.

– Não! aqui dentro não! Tudo lá fora! na rua! gritou ele [João Romão], quando os carregadores quiseram depor no pátio os trens de Marciana. Lá fora do portão! Lá fora do portão!

E a mísera, sem opor uma palavra, assistia ao despejo acocorada na rua, com os joelhos juntos, as mãos cruzadas sobre as canelas, resmungando. Transeuntes paravam para olhá-la. Formavam-se já grupos de curiosos. Mas ninguém entendia o que ela rosnava; era um rabujar confuso, interminável, acompanhado de um único gesto de cabeça, triste e automático. (Azevedo, 1997, p. 107).

Na seqüência do romance se saberá que a personagem é levada ao hospício e que sua filha, Florinda, é encontrada acompanhada por uma velha quase cega e mais um homem, inteiramente calvo que sofre de asma. Notamos, portanto, uma vida sofrida para aqueles moradores do cortiço e um fim ainda mais trágico para aqueles que de lá saíam sem rumo algum.

Esse fato é algo surpreendentemente contemporâneo, quando se pensa nas favelas do Rio de Janeiro, visto que, após serem demolidos os cortiços, seus habitantes apossavam-se da maior quantidade de destroços possíveis para reconstruírem um novo lugar onde se alojarem. Iam, segundo Sidney Chalhoub (1999), geralmente, para os locais periféricos da cidade e ali faziam seus “barracos”, dando, por fim, origem as atuais favelas cariocas. Ao serem demolidos, os cortiços deixavam inúmeros desabrigados, os quais não tinham outro lugar a não ser aquele. Sobre o extermínio das estalagens e a situação dos moradores depois da demolição e sem terem onde ficar, Sidney Chalhoub (1999) menciona que “(…). De posse do material para erguer pelo menos casinhas precárias, alguns moradores devem ter subido o morro que existia lá mesmo por detrás da estalagem” (p. 17).

As taxas de mortalidade elevaram-se expressivamente por causa de uma epidemia de febre amarela em 1850 e outra de cólera, em 1855 e, para enfatizar ainda mais a questão da saúde e higiene pública, existia a tuberculose que, como foi indicado anteriormente, em Casa de Pensão, prenunciava uma verdadeira endemia no país. Logo, as habitações coletivas, além da questão higienista, passavam a ser um problema social que exigia soluções o mais rapidamente possível. Num momento de grande crise social, a ideologia mais fortemente disseminada para finalizar o problema tratava-se do extermínio de todos os cortiços, de forma radical e definitiva.

Considerações Finais

A partir da presente análise de duas das mais importantes obras do naturalismo brasileiro O Cortiço e Casa de Pensão, podemos concluir que estes dois romances de Aluísio Azevedo realmente possuem impressões características da Ideologia de Higiene que se difundia no cenário urbano do Rio de Janeiro no século XIX. Tais características estão presentes desde os títulos sugestivos dessas duas obras até a caracterização dos ambientes e das personagens, os quais possuem traços representativos da degradação do período ao que se refere aos tipos de habitação coletiva e de seus moradores.

Como podemos notar, os cortiços e casas de pensão da época eram vistos pela sociedade elitista fluminense como lugares perniciosos e que ameaçavam toda a população pelos constantes riscos que ofereciam, uma vez que se tratavam de locais que reuniam uma grande heterogeneidade de indivíduos que viviam em situações precárias de vida. Verificamos, também, que essa variedade de tipos, devia-se a uma série de transformações que a sociedade brasileira, de forma geral, vinha enfrentando naquele tempo, tais como a abolição da escravatura e a proclamação da república; a chegada de imigrantes, dentre eles portugueses e italianos, e os altos preços de aluguéis mediante a pobreza dos habitantes do Rio de Janeiro.

Todas essas alterações, em âmbito nacional, fizeram do centro-sul a base econômica do país e foram responsáveis por desenvolver na mentalidade dos que constituíam as classes superiores a idéia de que o centro do Rio de Janeiro precisava passar por uma reurbanização, para assim, poder atender ao ciclo de desenvolvimento por qual a sociedade passava rumo à civilização e à modernidade e, portanto, fazia-se necessário o extermínio das habitações coletivas, locais vistos como nocivos à salubridade pública e como causadores das transgressões da moralidade, dos costumes e da ordem em geral.

Observamos também que as habitações coletivas, além de oferecerem riscos quanto à ordem e à moral, também representavam às elites o perigo de contágio, tendo em vista que as estalagens eram tidas como locais de foco das mais terríveis doenças contagiosas que se proliferavam no Rio de Janeiro do século XIX, vitimando fatalmente um grande número de habitantes, como podemos notar pelas estatísticas dos jornais do período, como em O Cruzeiro, por exemplo.

Fazendo menção a estas doenças, Aluísio nos revela o jovem personagem Amâncio em Casa de Pensão, como um tipo facilmente propenso às enfermidades e que é alvo, ao longo do romance, de inúmeras doenças, dentre elas a sífilis, as bexigas doídas (vulgarmente catapora) e, por fim, suspeitas da febre amarela, o que faz a personagem mudar para um bairro longe do centro do Rio de Janeiro, visto que era no centro onde se davam os maiores índices de afetados (e onde existia a maior concentração de habitações coletivas).

Temos, também em O Cortiço, personagens que são vítimas da febre amarela, como o caso dos italianos Delporto e Pompeo, os quais nas próprias palavras do narrador do romance: “foram varridos pela febre amarela” (Azevedo, 1997, p. 131). Com essa atitude, a de trazer para as suas obras casos que aconteciam no cotidiano da população fluminense, observamos uma das maiores características do naturalismo: a representação da realidade tal como ela é, ou, como nos diz Werneck Sodré sobre a escola naturalista: “(…) é uma escola, entre outras: uma escola que, a pretexto de representar fielmente a realidade, utilizou-se de determinadas fórmulas” (1965, p. 25).

Por fim, concluímos que O Cortiço e Casa de Pensão tratam-se de romances que, uma vez inseridos num contexto de vigência de uma grande força ideológica, realmente demonstram a grande repercussão que a Ideologia de Higiene da época exerceu sobre a cidade do Rio de Janeiro, a qual passou por inúmeras transformações, dentre elas, a demolição de várias habitações coletivas com o intuito de se tornar uma cidade desenvolvida. Os romances denunciam o modo degradante e precário de vida daqueles que eram submetidos pelo sistema capitalista a viver miseravelmente e revela, por meio de personagens que representam a figura do malandro, do burguês, do doente, do português ascendente, das vítimas do meio determinista e capitalista, do escravo, dos imigrantes em geral, a verdadeira identidade, não só fluminense, mas também brasileira, a qual é fundamentada numa verdadeira heterogeneidade de tipos, raças, culturas e realidades. 

Referências Bibliográficas

AUERBACH. E. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 1971.

AZEVEDO, A. Casa de Pensão. 13ª ed.  São Paulo: Editora Ática, 1981.

_________. O Cortiço. 30ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1997.

BARTHES, R. “A escritura e o silêncio”. In: O Grau Zero da Escritura. São Paulo, Cultrix, 1974.

__________. O Rumor da Língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.

CANDIDO, A. “De cortiço a cortiço”. In: Novos Estudos – CEBRAP. SP: n.º 30, junho de 1991.

CHALHOUB, S. Cidade Febril. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

FERREIRA, L. A. Roteiro de leitura: O cortiço de Aluísio Azevedo. São Paulo: Editora Ática, 1997.

SODRE. N. W. O naturalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.

ZOLA, E. Germinal. Trad. de Francisco Bittencourt. São Paulo: Abril Cultural, 1981.

_______. O romance experimental e o naturalismo no teatro. São Paulo: Perspectiva, 1983.

_______. Do romance. São Paulo: Edusp: Imaginário, 1995.

 

Períodos Consultados:

O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 20 a 29 de agosto de 1878.

 

Artigo recebido em 09/04/2007 e aprovado em 27/05/2007.

 


 

Notas:

[1] Doutrina difundida pelo filósofo, crítico e historiador francês Hyppolyte Taine (1828-1893), um realista pessimista conhecido sobretudo por suas leis de sociologia, segundo as quais toda vida humana em sociedade se explica por três fatores: raça, meio e momento histórico. Para Taine, o ato humano não é livre, posto que determinado por esses fatores (FERREIRA, 1997, p.113).

[2] O Darwinismo foi uma doutrina filosófica elaborada por Charles Darwin (1809-1882), que defendia uma origem natural para o homem (evolucionismo). Colocava, ainda, a permanente concorrência – por ele chamada de seleção natural – entre os indivíduos como base da transformação das sociedades. Entretanto, foi Herbert Spencer quem popularizou a idéia de que grupos e sociedades evoluem através do conflito e da competição. O Darwinismo Social foi empregado para tentar explicar a pobreza pós-revolução industrial, sugerindo que os que estavam pobres eram os menos aptos (segundo a teoria de Darwin). Durante o século XIX, as potências européias também se utilizaram do Darwinismo Social como justificativa para o Imperialismo europeu  (Ferreira, 1997, p. 113).

[3] Parte de uma cidade ou povoação que fica fora ou nas adjacências de seus limites; subúrbio.