O taciturno e o epistolar: estudo do Silêncio no conto de Raduan Nassar

Mauro Marcelo Berté

RESUMO: Algumas propriedades do silêncio são verificadas em dois contos de Raduan Nassar, “Hoje de Madrugada” e “O Ventre Seco”. As análises propostas exploram os significados desse silêncio em questões estéticas, ideológicas e filosóficas. Há várias formas dessa manifestação na obra de Raduan, desde a brevidade de sua atividade literária, precocemente silenciada, até o período histórico brasileiro do qual seus textos carregam traços de uma censura e a expressão de uma revolta. O efeito disso sobre suas narrativas expõe proximidades no padrão formal e temático e possibilita entender os valores literários do autor que constituem e fortalecem seu estilo pessoal.

Palavras-chave: Conto; Silêncio; Raduan Nassar.

ABSTRACT: Some silence’s properties can be sorted out in two Raduan Nassar’s short stories, “Hoje de Madrugada” and “O Ventre Seco”. This paper aims to analyse this silence in the esthetical, ideological and philosophical forms. There are many ways in which the silence is expressed in the Raduan’s texts, since the brevity of his literary activity, early silenced, up to the Brazilian historic period where his texts presents aspects expressing censure and revolt. The effect of these styles in his narratives shows interesting interfaces in the formal and thematic forms, and makes possible for one to understand the author’s literary values.

Key-words: Short stories; Silence; Raduan Nassar.

 

INTRODUÇÃO

Escrever sobre o silêncio significa, nesse trabalho, examinar seus matizes por pressupô-los, além de variados, profundos. Mas, precisamente, o que se quer é explorar as dimensões do silêncio dentro do contexto literário, privilegiando, especificadamente, dois dos contos de Raduan Nassar.

A escolha pelo autor se deu em razão do desafio que o estilo de Raduan representa na análise literária. Do contato com a obra, detectou-se uma constante, a exploração do silêncio em variadas acepções, como se essa manifestação fosse a meta imaginária e secreta da palavra escrita. Por se apresentar aparentemente hermética essa meta, o estudo proposto se dispõe a decifrá-la. Parte-se, então, da definição do escritor Raduan Nassar, por ele mesmo:

Eu sou mais como a galinha caipira. Não boto um ovo de dia e outro a noite, sob luz artificial. Não entro muito nessa história de que o escritor precisa se profissionalizar. […] Ás vezes em 50 páginas você pode dizer muito mais que em dez livros. Depois, há tantos autores de um único livro que dizem tanta coisa! (CICCACIO, 1981)

Raduan profetizava o que viria acontecer em 1984, ano em que anunciava seu afastamento definitivo da literatura, trocando a criação estética pela dedicação exclusiva à produção rural.

O paulista de Pindorama, filho de imigrantes libaneses, permanece indiferente ao sucesso e reconhecimento que sua breve, porém densa, obra alcançou, cultivando seu auto-exílio literário, pois “a literatura, na ordem geral das coisas, não passa de uma coisinha.” (SILÊNCIO…, 1989).

Resulta dessa concisa produção uma crítica relativamente recente e também restrita, em grande parte, ao romance de estréia, Lavoura Arcaica. O sucesso do texto rendeu um considerável número de produções acadêmicas, na forma de teses e dissertações. Coadjuvantes dessa produção, restam artigos de jornais que dão conta de comentar sua segunda publicação de igual repercussão, a novela Um copo de cólera, e muito raros são os artigos encontrados que se debruçam sobre os quase desconhecidos contos do autor.

Por isso, nesse trabalho de pesquisa a cerca da obra de Raduan, será comum encontrar citações de trechos de artigos da imprensa para confirmar ou mesmo orientar as análises das narrativas selecionadas.

Em 1997, Raduan, mais de uma década após declarado o fim de sua carreira na literatura, renovou antigas esperanças dos leitores ao ser publicada a primeira edição comercial de Menina a Caminho – primeiro conto do autor escrito no início dos anos 60. Esse primeiro trabalho de ficção deu título a uma coletânea de mais quatro contos. Vinha a público a desconhecida “safrinha[1] de Raduan. A edição saiu um ano após o autor ter sido tema do segundo número dos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles.

Desse modo, dentro da contemporaneidade da obra de Raduan, e da relevância do autor para os estudos literários, justifica-se uma discussão a cerca dessa “nova”[2] parcela pouco estudada de sua obra. Os dois contos selecionados, ambos escritos no ano de 1970, e reunidos pela primeira vez em edição comercial na coletânea Menina a caminho (1997), já foram dados a público em outro momento. A publicação anterior à edição comercial de 1997 do conto “Hoje de madrugada” se deu nos Cadernos de Literatura Brasileira, n° 2, IMS (1996). O conto “O ventre seco” saiu no Folhetim, suplemento da Folha de S. Paulo (1984), depois em El Paseante, revista espanhola (1985), e ainda em Idéias, suplemento do Jornal do Brasil (1989).

Identifica-se a ausência de respostas do taciturno narrador de “Hoje de Madrugada” e uma fuga do diálogo, na discussão unilateral do epistolar “O ventre Seco”. Nos dois textos transcorre um mesmo conflito – cada qual a seu modo, um embate entre o narrador-personagem masculino e a figura feminina, esposa, amante, namorada – adensado por um recurso estético de efeito tencional, o silêncio, verificado em diferentes registros, do tratamento dado à linguagem à proximidade temporal dessas produções.

Portanto, não se trata apenas de mostrar ou ilustrar o silêncio através dos textos de Raduan, mas de correlacioná-lo de forma acessível a questões estéticas, ideológicas e à situação histórica, em menor grau. O propósito, em suma, é verificar essa pluralidade de manifestações do silêncio, esse “[…] solo indelegável da experiência pessoal. Experiência que, diga-se de passagem, não é pessoal porque pertença ao homem, mas sim porque o homem, quando a vive, pertence por inteiro a ela.” (KOVADLOFF, 2003, p. 173).

SILÊNCIO E EFEITO

O que quer dizer o silêncio? Dentro da linguagem, pode-se considerá-lo um signo ambíguo, polifônico[3]. Quando eloqüente, o silêncio vira discurso, por isso, uma leitura possível do silêncio seria a maneira singular de exprimir certas tensões que não são susceptíveis de serem reveladas por meio de palavras, pois o silêncio pode ter mais sentido que todas elas.

Portanto, se é verdade que o silêncio expressa, também é verdade que aquilo que expressa nem sempre é igual, nem vale a mesma coisa. O silêncio pode ser, então, tanto o corolário excelso da lucidez, como a bruma irremediável na qual se dilui a aptidão – e às vezes a necessidade – de articular um idéia ou uma emoção com a qual deixar para trás o mundo do previsível e do codificado. (KOVADLOFF, 2003, p. 23)

O filósofo argentino Santiago Kovadloff (2003) afirma que há duas modalidades de silêncio. O que ele chama de silêncio da oclusão seria o da palavra encoberta ou rejeitada, da enunciação possível, mas evitada por uma questão de medo, hábito ou preconceito, enquanto que o silêncio da significação excedida, algo extraordinário, que não se limita à lógica usual, é nomeado de silêncio da epifania. Para Kovadloff, ambos compõem o silêncio primordial – uma função encobridora e uma manifestação divina reveladora – presente na poesia, na música, na matemática, na pintura, no amor.

O silêncio pode adquirir força de verbo, de ação, é um ato de reflexão, por exemplo. Ele tem a capacidade de revelar um estado de alma, ou escondê-lo. Pode significar cumplicidade, e pode ser um forte instrumento de resistência. O silêncio, semelhante ao primordial de Kovadloff, concentra opostos: na cumplicidade, é forma de comunicação, na ausência daquela, pode revelar distanciamento. O silêncio, diziam os gregos, pode ser uma recusa tácita, mas pode significar adesão a uma idéia ou proposição: “O silêncio é uma forma de fala que se faz pelo assentimento ou pela refutação. Os gregos chamam isso antilogia: à existência de todo objeto se pode opor dois logoi.”(HOLANDA, 1992, p. 48).

Nesse jogo de antíteses, interpretar o silêncio pode ser uma tarefa árdua, de busca de sentidos velados, que pode conduzir, vez ou outra, a um hermetismo intransponível. Mas também pode ser reveladora, quando escavado (o silêncio) e interpretado enquanto recurso estético no contexto da literatura.

EFEITO NA LITERATURA

Literariamente, pode-se utilizar o silêncio para condicionar o ritmo de uma narração – basta observar como em determinadas narrativas o silêncio torna-se instrumento de tensão – ou simplesmente para condicionar nossa leitura – as pausas que reforçam a importância de uma frase. Ou ainda, na “construção do texto como a construção de um certo silêncio. Silêncio já em liberar o texto dos falsos adornos e expô-lo enquanto espaço de operações possíveis (ao leitor) pedindo leitura valendo por si, se impedindo de ser mandatário falaz de mensagens.”(HOLANDA, 1992, p. 22).

Essa escolha vocabular, decisão pela presença ou ausência de classes gramaticais e a procura pela construção sintática comedida e pela forma sucinta de narração também ficam por conta da “exploração de um silêncio” (HOLANDA, 1992, p. 23), como atesta Lourival Holanda, ao comparar as narrativas de Albert Camus e Graciliano Ramos.

Semelhante exploração ocorre na poesia também, nas pausas entre versos e estrofes, versos brancos e cortes bruscos no ritmo (o silêncio na música), e linguagem de cada poeta que “[…] não é outra coisa que a versão pessoal dos conteúdos impostos pelo criador a essa imponderabilidade intensamente ouvida. A obra de cada poeta remete ao destino confundido pela presença do que é essencialmente indiscernível – o silêncio extremo do real – nas mãos laboriosas de seu intérprete.” (KOVADLOFF, 2003, p. 30-31).

Há determinados momentos em que a poética[4] almeja apreender a realidade e não consegue, momentos da tensão entre a linguagem e a realidade que não dá conta de ser verbalizada, por isso, reconhece-se:

“[…] que costuma ser escassa a nossa aptidão para suportar o silêncio proposto pelo poema – quer dizer, o silêncio gerado pelo contato com o real incógnito. Nossa tolerância nesse sentido é pouca. E é por isso que o silêncio a que se chega através do poema costuma ser rapidamente transfigurado – o correto seria dizer reduzido – nesse outro silêncio, o da oclusão, no qual a sensibilidade habitava antes que a inspiração fizesse sua erupção.” (KOVADLOFF, 2003, p. 34)

Nos textos literários, em contextos em que anos passam em poucos minutos, um instante de silêncio pode realmente equivaler a uma eternidade, perturbando o leitor, trazendo ansiedade, formando um ambiente de expectativa, de tensão a ser quebrada. O silêncio de uma obra, segundo Blanchot, nas palavras de Lourival Holanda “é convite à lucidez: uma obra literária para quem sabe penetrá-la é uma rica estação de silêncio, uma defesa firme e uma alta muralha contra essa imensidade falante que se dirige a nós desviando-nos de nós.” (HOLANDA, 1992, p. 82).

Ao se debruçar sobre a obra O estrangeiro, de Camus, Holanda põe lado a lado elipse e silêncio, concedendo o status de figura de linguagem a ambos. O autor afirma que toda ausência é sinal de uma intensa presença, logo, “[..] a elipse é sinal de coincidência. Cria uma conivência entre o texto e nós. Porque a forma elíptica, pelo que traz implícito, pelo sentido excedente que fica no não dito, estimula em nosso intelecto o prazer.” (HOLANDA, 1992, p. 82). Esse estímulo de que o autor fala é o resultado esperado do efeito estético.

Portanto, na literatura, ao menos, o silêncio significa dizer mais, logo, trabalhar o silêncio é uma arte, e por isso ele se mostrará um grande instrumento da narração. Holanda engloba o silêncio ao conceito de escrita e o define como pausa que potencia esse dizer mais:

Escrever: estar atento a essa tensão, o fluxo da linguagem e a atração (tentação?) do silêncio – coisa que a desagregação crescente da linguagem atesta. Bastaria ver as tantas experiências poéticas modernas. Nelas, desde Mallarmé, passando por Flaubert sonhando o texto como um muro branco, e Blanchot, caminhando para uma aventura que é impasse: nelas, o persistente apelo ao silêncio – pausa que potencia o dizer mais. (HOLANDA, 1992, p. 60)

RADUAN EM SILÊNCIO

Há várias formas de se falar do silêncio em Raduan Nassar, desde a brevidade de sua atividade literária, silenciada precocemente, até o período histórico brasileiro de que suas narrativas breves carregam o silêncio de uma censura e a expressão de uma estética.

Quanto a essa expressão, Alfredo Bosi, ao entrevistar Raduan para o Cadernos de Literatura Brasileira, perguntou sobre a proximidade do padrão formal do escritor com alguns autores como Graciliano Ramos[5], acrescentando se essas comparações fazem sentido para se entender os valores literários do autor. A resposta:

São Bernardo, do Graciliano, o Amanuense Belmiro, do Cyro dos Anjos, e Uma vida em segredo, do Autran Dourado, são lembranças que fazem parte do meu afeto. (…) Nunca me detive na aproximação de valores literários, mas a qualidade dessas lembranças talvez revele algum parentesco. (CADERNOS…, 2001, p. 30).

Ainda sobre as lembranças e/ou influências literárias de Raduan, Milton Hatoum, escritor e professor de literatura, lembra de outras leituras aproximadas do estilo (poético) do amigo Raduan:

Mas quando penso nas afinidades literárias com a obra de Raduan, logo me vêm à mente alguns narradores que foram também poetas. Penso sobretudo em Virginia Woolf e Willian Faulkner, dois grandes romancista que admiro muito, e que certamente Raduan leu com entusiasmo. Poderia acrescentar outros grandes autores que, com traços estilísticos próprios, tematizaram em suas obras a sondagem introspectiva, a experiência interior e o labirinto da memória: Proust, Graciliano e os não por acaso mencionados Clarice Lispector e Osman Lins. (CADERNOS…, 2001, p. 20).

Uma estética do silêncio, se assim pode ser chamada uma das facetas do estilo de Raduan, era identificado por mais um companheiro, o jornalista e escritor José Carlos Abbate, com quem Raduan dividiu a chefia da redação do Jornal do Bairro:

Alguma coisa nos dizia que o grande escritor daquele grupo era Raduan, o mais taciturno de todos, cujos silêncios prolongados nos pareciam opressivos. (…) Apenas o Modesto Carone, cuja acuidade crítica já era então notável, e o Raduan pareciam possuir consciência da noção de escritura e do texto como problema estético na ficção. (CADERNOS…, 2001, p. 16).

Nos textos de Raduan, encontram-se a brevidade da forma narrativa, explicada no capítulo anterior, a concisão nas escolhas vocabular e semântica, e a tensão dos conflitos na temática e na revolta das personagens, corroborando a afirmação de Beatriz Perrone-Moisés:

Na verdade, toda literatura de revolta é necessariamente breve, e desemboca no silêncio ou no escárnio (Rimbaud, Lautréamont). Não se pode levar a sério alguém que continue indefinidamente a bradar contra tudo e todos. No silêncio dos revoltados, continua entretanto a ressoar sua alta exigência de justiça e de contento. Outro especialista da revolta, Albert Camus, escreveu: “A revolta é uma ascese, embora cega. Se o revoltado blasfema, é na esperança de um novo Deus” (L´Eté, 1954). (CADERNOS…, 2001, p. 77).

Raduan não bradou indefinidamente e não declarou sua revolta em narrativas panfletárias. De imediato, localiza-se a produção do autor num período político conturbado da história nacional, década de 1970, regime militar, época de imposições e tirania, de liberdade controlada e luta por direitos roubados. Um exemplo disso:

Um copo de cólera reflete bem a situação vivida pelos brasileiros sob a ditadura militar. Aí também, longe dos estereótipos da literatura engajada, o que se vê é a insidiosa contaminação das relações individuais pelo discurso do poder, o discurso fascista. Mas a nostalgia do mundo ordenado dos valores, o sufoco imposto pelo presente e os estouro da cólera contra os discursos inaceitáveis não são exclusivos de um país ou de uma situação histórica. (CADERNOS…, 2001, p. 69).

Na recorrente temática das rupturas, em que, fora a reconciliação firmada em Um copo de cólera, se mantém a crise nas demais narrativas como “Hoje de Madrugada”, “O ventre seco” e Lavoura Arcaica, percebe-se uma oscilação da linguagem, que flutua entre o sofisticado e o coloquial, configurando uma representação fiel da classe média, mas nem por isso deixando de universalizar a crise exposta. O comentário de Milton Hatoum, a seguir, sobre Um copo de cólera e a experiência dos narradores-personagens da novela encaixa-se também nas duas narrativas que se pretende estudar:

[…] a guerra conjugal é um pretexto para que o narrador comente o mandonismo, o autoritarismo, os laços que o unem a uma família patriarcal. O tempo da narrativa é o tempo do regime autoritário, mas este é visto através de uma experiência vital dos narradores-personagens, de modo que o regime militar a que aludem pode situar-se no Brasil ou em outras latitudes. (CADERNOS…, 2001, p. 21).

Apesar da obra de Raduan estar inserida num período tão ímpar de nossa história, o autor conseguiu fugir do estereótipo de uma literatura panfletária e ir além. Leyla Perrone-Moisés afirma que

A originalidade de Raduan Nassar, com relação a outros escritores de sua geração, consiste justamente nessa opção por um engajamento político mais amplo do que o recurso direto aos temas de um momento histórico preciso. Um engajamento no combate aos abusos do poder, em defesa da liberdade individual, numa forma de linguagem em que a arte não faz concessões à ‘mensagem’. Um engajamento radicalmente literário, e por isso mais eficaz e perene. (CADERNOS…, 2001, p. 69).

Desse engajamento literário, nasceu os textos de reflexos amplos. Raduan foi capaz de

Pensar a sensualidade, a afetividade, a liberdade, o poder, mas sem desvinculá-los das contradições políticas, sociais e econômicas em que o homem mergulha cotidianamente, revolvendo-se em angústias, até chegar ao limite de expor a mais profunda ferida: a solidão. Aquela de não encontrar o eco dos próprios pensamentos nem sequer no “amigo” que se diz mais próximo. (CICCACIO, 1981).

Uma solidão que também remete ao silêncio.

O último grande silêncio que Raduan nos legou foi quando em 1984 decidiu pelo abandono da atividade de escritor: “Vale aqui lamentar, mais uma vez, que Raduan Nassar, depois de duas ficções de densidade incomum como Lavoura Arcaica e Um copo de Cólera, tenha dado sua carreira por encerrada e nos deixado apenas o enigma de seu silêncio.”(CASTELLO, 1994).

O autor se calou na arte e para a arte, provou que é capaz de viver sem literatura, recusa-se a dar entrevistas para falar desse tema e sobre sua obra. É como se Raduan tivesse dito tudo em seus textos, e provavelmente o fez. “Nassar, que prefere o silêncio – e, em um erro de cálculo imperdoável, até o silêncio absoluto – não precisa discorrer sobre o que faz para fazer o que faz.” (CASTELLO, 1994). Consciente do seu papel, Raduan, mesmo em atividade, não arriscava teorizar acerca da sua produção: “Nunca pensei em expor qualquer teoria a respeito do meu minguado trabalho, nem vejo sentido nisso. Ou esse trabalho fala por ele mesmo, sem o socorro de qualquer suporte teórico expositivo, ou deve ser descartado.” (CADERNOS…, 2001, p. 31).

Nota-se que, diferentemente de outros autores que elaboraram uma teoria mais ou menos sistematizada a partir de suas experiências práticas, Raduan nunca escreveu artigos sobre a sua poética ou sobre a literatura em geral. Seus pontos de vista literários encontram-se apenas em raras entrevistas ou declarações, ou nas reminiscências de Milton Hatoum, Modesto Carone, José Carlos Abbate e Augusto Nunes, contemporâneos e companheiros de Raduan.

SILÊNCIO EM HOJE DE MADRUGADA[6]

“Hoje de madrugada” é um retrato silencioso de uma recusa de afeto, é registro que foca o colapso sentimental de um casal, encenado no ambiente taciturno de um escritório imerso na madrugada – único indício de marca temporal.

Enquanto conveniente, o narrador-protagonista expõe apenas seu ponto de vista, fazendo um relato em que detalhes sobre aquela relação são omitidos. Desse modo, o contista, na busca de brevidade e densidade, converte o tema da crise amorosa em quadro inexorável da indiferença, condição humana que leva ao “gelo de uma relação (…) presenciada só pelas paredes” (VINAS, 2005).

A impressão que se tem é de que o texto foi escrito logo após o desenlace daquele acontecimento, pois o tempo da narrativa, apesar de o texto se apresentar como um resgate da memória a ser registrado, é o mesmo da ação. Essa impressão se acentua devido às frases curtas e ao efeito desconcertante de uma sintaxe econômica, que suprime descrições de antemão ou considerações a posteriori, confluindo apenas para o acontecimento, o que ocorre agora, sem alegorias. Como a lente de um fotógrafo[7], o contista, nas palavras de Leyla Perrone-Moisés, “[…] capta um momento dramático de uma relação de casal. Nada nos é informado da história dessa relação, e apenas nos é mostrada a negação do homem oposta à demanda de amor, pateticamente explicitada pela mulher.” (CADERNOS…, 2001, p. 76).

Do espaço, apreende-se apenas o quarto de trabalho, em cujo interior de penumbra visualizam-se a mesa e os papéis, as cadeiras, a janela de veneziana fechada – uma “bolha de sabão”, a forma fechada e tensa do conto, segundo Cortázar (GOTLIB, 2004) – a configuração perfeita de um cenário suficientemente tenso e, portanto, possível de ser enquadrado. O resultado é um retrato da desilusão, silenciosa como uma imagem fotográfica: “Ela não dizia nada, eu não dizia nada” (HM, p. 54).

Dessa imagem, obtém-se um desabafo que ganha caráter de testemunho “O que registro agora” (HM, p. 53) de um narrador-protagonista em tempo passado, contudo, recente, pois “aconteceu hoje de madrugada” (HM, p. 53). Lembranças incertas de um narrador casmurro se misturam às pretensas previsões que tece a respeito da personagem feminina  “[…] ela pensando inclusive que me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava” (HM, p. 54). Isso também se evidencia nas suposições quanto ao que ela refletia na súbita parada segundos antes de deixar o quarto: “Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória.” (HM, p. 58).

Na confortável posição de acusador, ele procura convencer o leitor quanto ao desequilíbrio da esposa em cuja memória uma “escuridão se instalava” (HM, p. 58). Defende-se ao relatar outra impressão incerta: “[…] e eu não minto quando digo que  não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.” (HM, p. 57). Cruel e sensível, paradoxalmente, ele continuava em seu estado de apatia “[…] mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto” (HM, p. 55). O narrador está ausente porém não é alheio ao conturbado estado pelo qual a mulher passa, o que se constata por ele não se surpreender “com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos” (HM, p. 56). Ele afirma com desdém de quem já conhecia “o traço de demência” (HM, p. 56) pervertendo o rosto da esposa.

Ao passo que o narrador insiste em apontar traços de insanidade na mulher, a suspeita sobre sua personalidade conturbada se intensifica, logo, essa aparente insanidade torna-se uma possível característica desse narrador – semelhança constatada também nos narradores-protagonistas das narrativas breves analisadas na seqüência – e a comprovação de um desequilíbrio que tende à desumanização desse personagem. Possivelmente, não era a primeira vez que aquela mulher tentava uma aproximação débil, respondida de antemão por uma depreciação contumaz: “olhos perdidos”, “corpo obsceno”, “lábios descorados”, “moleza daqueles seus braços”, “seios flácidos”, “traço de demência”, “ombros caídos”, “sonâmbula.”. A negação do homem às súplicas da esposa é evidente na medida em que seus gestos vão se tornando mais evasivos.

Nesse drama conjugal em que o desejo se renega, suas vozes mais contundentes e reveladoras são expressas em gestos arredios e em movimentos receosos, “ela acuada ali no canto” (HM, p. 54),  expressos em “teatralidade” (HM, p. 56), como no instante em que a mulher fingia contemplar a madrugada encoberta na veneziana cerrada, enquanto mordia os dedos. Todos os gestos evasivos dele, todas as tentativas de aproximação dela são sutilezas de uma atmosfera densa e escura como a madrugada, uma cena que se pode espiar pelas frinchas daquela veneziana.

Essa cena que se lê/vê é o registro de um silêncio imperioso, oculto, na medida em que não se localiza no texto, por mais taciturno que seja, o termo “silêncio”. No bloco de rascunho sobre a mesa também é registrada a tensão do casal, o desencanto da relação que, como aquele ambiente taciturno, está em suspensão, corporificado na mão dela, “aquele objeto corrompido” (HM, p. 56), abandonado no ar. Aquelas mensagens curtas revelam o desejo, em caligrafia nervosa “vim em busca de amor” (HM, p. 55), a súplica, em caligrafia desesperada, “responda” (HM, p. 55) e a impossibilidade no contundente e desiludido “não tenho afeto para dar” (HM, p. 55). Nessa troca de palavras, tem-se configurado também o silêncio no sentido estritamente denotativo  de interrupção de correspondência epistolar, registrado no desesperado “responda”.

Nesse singular diálogo “Seria preferível o silêncio efetivo? Nem sempre, nem um silêncio qualquer. Escreve-se porque não se pode calar-se, ou porque não se quer. O silêncio também é um inimigo, também uma prisão, quando fecha, quando esmaga, quando mata, e às vezes mata.” (COMTE-SPONVILLE, 1997, p. 38). E é a morte da relação que a mulher quer evitar, é do silêncio de clausura que ela tenta se libertar. Mas a comunicação e a cumplicidade são vencidos pelo silêncio da apatia.

Esse silêncio angustiante para ela, e também para o leitor, apenas é interrompido com “um e outro estalido na madeira do assoalho” (HM, p. 54). Esse ruído é o único som que ela, contida, se atreve a produzir, porém, no papel, apesar de palavras inaudíveis, o grito de socorro, o gemido, enquanto ele, cúmplice desse silêncio, sabe como cessá-lo, mas não o faz: “[…] continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranqüilizá-la.” (HM, p. 54). Além da insistência da não verbalização, havia a imobilidade, demonstração física dessa apatia, situação em que nem as pálpebras acompanham os gestos doentios da esposa – “não fiz um movimento”, “não me mexi na cadeira”, “não ergui os olhos”, “olhos sempre baixos”, “olhos em cima do papel”, “olhos pregados na mesa.”

Em “Hoje de madrugada”, como já mencionado, há poucos elementos que historiam a relação do casal. É nítido o recorte estabelecido em uma vida cotidiana ficcional, ou de reflexos autobiográficos, e nem se pretende discutir esse aspecto. O fato é que a narrativa é enxuta, sem ápices narrativos, as personagens nem nome possuem, o tempo e o espaço são estabelecidos de modo vago. Ainda assim, tem-se um conto no melhor do seu gênero, sendo essa a percepção da crítica:

[…] Raduan é daqueles escritores que tornam inquestionável a afirmativa de que a literatura não é o que se conta, mas o modo como se conta. E dessa forma, em muitos momentos importa menos o que dizem (na verdade, o que escrevem) de si para si as personagens, a faca afiada que esgrimam e com que se desfiam (sic) mutuamente. Vale muito mais o jogo entre silêncio e suspensão, a fenda insondável do não-dito em que o leitor se insere e pensa meu Deus, como ele concebeu isso? (VINAS, 2005).

“Hoje de madrugada” é concebido sobre registros do silêncio, e, novamente enfatiza-se,  nem ao menos o vocábulo é citado no texto. Sinal de que o silêncio não precisa ser anunciado para se manifestar. O registro do narrador, a imobilidade, o espaço fechado, cercando um ambiente taciturno, compõem uma imagem que promove essa percepção fotográfica, a impressão de recorte de uma determinada realidade. Nesse conto/retrato, o contista utiliza esteticamente a delimitação desse gênero e, ao ser incisivo na sua intenção, alcança o knock-out[8].

SILÊNCIO EM O VENTRE SECO[9]

“Por que se escreve uma carta? Para habitar juntos a essencial solidão, a essencial separação, a essencial e comum fragilidade. […] Para exprimir a distância sem a suprimir. O silêncio, sem o corromper.” (COMTE-SPONVILLE, 1997, p. 43). “O ventre seco” é um conto epistolar cujo motivo de escritura, o que leva o narrador a se expressar, se identifica nessas manifestações essenciais, a separação, a fragilidade, o silêncio.

“O que se espera enquanto se escreve? Que, expondo nossa solidão (senão, o que cremos ser nossa singularidade), ela diminua (nos aproximando dos outros?)” (HOLANDA, 1992, p. 87) – o conteúdo da carta/conto contraria esse motivo primeiro da escrita, pelo menos no que diz respeito à busca de aproximação, pois a carta junto dos pertences da destinatária, aparentemente, sela o fim de uma relação e marca definitivamente a separação do casal. Porém, quanto ao fato de expor a solidão do indivíduo, o conto cumpre esse papel ao revelar a singular personalidade de um narrador que apenas não quer tomar partido das novas ou antigas idéias: “E quando digo que não tenho nada contra, entenda bem, Paula, quero dizer simplesmente que não tenho nada a ver com tudo isso.” (VS, p. 63).

[…] há certas coisas que não podem ser ditas, ou mal, que apenas a escrita pode levar. A escrita nasce da impossibilidade da fala, de sua dificuldade, de seus limites, de seu fracasso. Disso não se pode dizer, ou que não se ousa, ou que não se sabe. Esse impossível que trazemos em nós. Esse impossível que é nós. Há as cartas que substituem a fala, como um ersatz, um substituto. Depois aquelas que a ultrapassam, que com isso tocam no silêncio. Estas nada substituem e são insubstituíveis. O que não se pode falar, há que escrevê-lo. (COMTE-SPONVILLE, 1997, p.38).

As palavras do filósofo André Conte-Sponville definem, de certo modo, a intenção de um narrador epistolar fragmentado que expõe ao leitor também fragmentos de sua vida, de uma relação conturbada.

Escrito em 1970, período de ditadura militar no Brasil, o conto apresenta um narrador com voz ativa, mesmo que expressa em carta, representação de um dos poucos meios que a censura do regime, talvez, não alcançava. Raduan Nassar, independente de postura, fazia parte de uma época de literatura engajada, um período de contracultura e aversão à imposição de leis.

Nesse contexto, uma designação como “conte-lettre-manifeste”[10] faz sentido quando avaliada a intensidade com que o texto é exposto e com a qual o narrador busca uma terceira via para os problemas, uma alternativa a mais para aquele mundo maniqueísta, já que se pretende fugir do senso comum. O texto se mostra provocativo, de idéias que incomodam, que rompem e subvertem as tradicionais posições dominantes da relação homem e mulher. Pode-se assim, portanto, definir esse conto:

Une écriture féminine,  dans ce que l’écriture féminine a du sens minoritaire;  l’homme face à la femme ; inventer un autre homme qui, abdiquant de l’acte de puissance, devient pure puissance,  ainsi l’épistolier fait vœu de chasteté, vœu d’ignorance, vœu de pauvretré. (LEMOS, 2007).[11],[12]

Extrai-se uma imagem forte do título do conto, dessa união de opostos, tem-se o símbolo de fertilidade bruscamente desprovido de sua maior propriedade. Um ventre seco, silenciado de vida.

Quanto a questão formal, tem-se a carta ficcional endereçada à Paula, namorada do narrador epistolar. Mas não se configura uma carta de amor, pelo contrário, seus 15 parágrafos são termos de um desquite não amigável, um acordo que o narrador trava não apenas com ela, mas com o mundo: “já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio” (VS, p. 66). A carta é o meio silencioso de expor, sem chance de contra argumentação, ao menos imediata, os termos desse pacto. É um monólogo velado.

Quanto às pretensões da carta, ela parece confrontar a lei natural, ou a lei do senso comum, e possibilita a criação de uma nova, uma lei que refuta a original. A carta anuncia a ruptura de um pacto amoroso e as novas condições para preservar essa ruptura. A argumentação ganha pela intensidade com que é exposta, pois a lógica é discutível e o senso é subvertido. Maria José Cardoso Lemos corrobora essa idéia de lei. Para ela, a carta se apresenta como uma petição dividida em 15 itens, contendo, inclusive, a base do contrato: “Les trois élèmentes de base du contrat y sont: sa motivation, ses conditions d´étabilissement, la situation postcontrat.” (LEMOS, 2007)[13]. Desse ponto de vista, pode-se encarar enquanto parcela de uma motivação as evidências mencionadas, ofensivamente lembradas e elencadas, “a velha aí do lado”, “a carcaça ressabiada”, “o pacote de ossos”, “a semente senil”, “aquele ventre seco”, “bruxa velha” (VS, p. 67), todas atitudes e insultos que a denunciam, que revelam a insensibilidade juvenil de Paula, colhidas com o tempo, suportadas até o limite.

Segundo Lemos, esse contrato epistolar provém de uma lei de características metafísicas, uma vez que possibilita a cada indivíduo determinar seus interesses, suas delimitações e liberdades. Essa metafísica ou filosofia primeira ou princípio de lei natural, se assim é possível chamar, é o conhecimento que o narrador possui pela razão, sempre visando compreender o cerne das situações. Cético, ele propõe transcender às aparências, ou seja, obter o conhecimento real e verdadeiro das coisas em oposição à aparência das mesmas, condição que tanto o desagrada e o faz indiferente ao mundo: “Não tente mais me contaminar com a tua febre, me inserir no teu contexto, me pregar tuas certezas, tuas convicções e outros remoinhos virulentos que te agitam a cabeça.” (VS, p. 66).

Como num processo metafísico, ele vai elencando os fatos, os valores e os ideais, e os sublima, convertendo-os em verdades, e, ao mesmo tempo, os nega, pois descobre um princípio de causa enraizado no senso comum. Então o que lhe resta é recusar as promessas do “[…] pardieiro que é esse mundo, onde a sensibilidade, como de resto a consciência, não passa de uma insuspeitada degenerescência […]” (VC, p.66), desse “chão movediço” (VS, p. 65) e ir contra todas as leis, tradicionais e novas, que regem as idéias, os hábitos e os costumes: “[…] tenho todas as medidas cheias do teus frívolos elogios do amor. Farto também estou eu das tuas idéias claras e distintas a respeito de muitas outras coisas […]” (VS, p. 64).

Lemos conclui que a carta funciona como uma “mise en scène” de uma disputa amorosa que, segundo Roland Barthes, em citação, “est une sorte de dialogue non dialectique, un échange ordonné de répliques dont chacun veut garder le dernier mot.”[14]

Por trás da carta, há um homem cansado, enfaticamente, de ser atacado pelo mundo das idéias da jovem amante: “Entenda, Paula: estou cansado, estou muito cansado, Paula, estou muito, mas muito, mas muito cansado, Paula.” (VS, p. 67); Resta um escritor que procura silenciar qualquer possibilidade de argumentação do seu destinatário, ao mesmo tempo que peca, na covardia de permanecer nesse silêncio, da não resposta, da não discussão, unilateral no confrontamento de idéias, fugindo da divergência:

C’est ce que prétend l’épistolier: garder pour soi la dernière réplique tout en se rétirant de la scène. Ne pas vouloir posséder, « não quero te governar »,  ne rien attendre, ne pas juger, ne rien conclure, laissant  écouler le bruissement infini de la parole; le silence. (LEMOS, 2007).[15]

Um dos heterônimos de Fernando Pessoa afirmava que “Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”[16]. Tem-se em “O ventre seco” o extremo oposto disso, o narrador não se contenta, contesta o espetáculo e a ilusão que ele representa. Nesse sentido, a carta de “O ventre seco” rebate o mundo ideal das cartas de amor, confronta o senso comum. Parece, portanto, coerente apontar, numa espécie de literatura comparada ou, nesse contexto, “cartas ficcionais comparadas”, a diferença crucial entre a carta destinada à Paula, uma carta de desavenças, e uma carta “tradicional”, que tenta uma aproximação, pois “[…] a correspondência é também um gênero literário, claro que o mais difundido e um daqueles, note-se de passagem, que melhor sobrevive às modas e aos séculos.” (COMTE-SPONVILLE, 1997, p. 40-41).

O heterônimo pessoano Ricardo Reis, quando personagem de José Saramago, em O ano da morte de Ricardo Reis, hesitava em escrever, hesitava até mesmo quanto ao vocativo que deveria empregar a sua destinatária, Marcenda, pois para ele, uma carta era um “acto melindrosíssimo”. Na situação do conto, esse ato delicado ou escrupuloso se inverte, não se hesita em escrever, em reclamar, em nomear secamente a destinatária, Paula, apenas, sem epítetos e menções carinhosas, pelo contrário, o nome é citado repetidas vezes, enfático, acusativo, como se o relacionasse à origem dos seus problemas.

O narrador epistolar de Marcenda definia a escrita como a fórmula que

[…] não admite médios termos, distância ou proximidade afectivas tendem para uma determinação radical que, num caso e no outro, vai acentuar o carácter, cerimonioso ou cúmplice, da relação que a dita carta estabelecerá e que acaba por ser, sempre, de certa decisiva maneira, um modo de relação paralelo à real, incoincidentes. (SARAMAGO, 2003, p. 197).

Paradoxalmente, a carta que constitui “O ventre seco” promove a distância, clama pelo afastamento, mas provém da relação, da proximidade do casal. Uma carta como a do conto, ao mesmo tempo que é cerimoniosa nos seus apontamentos e justificativas, tem o tom cúmplice pela liberdade de se afirmar certas verdades, sem restrições ou convenções. Tudo isso conflui naquele momento de solidão e reflexão pelo qual passa o escritor/emissor no momento da escrita, pois afinal “A escrita é mais próxima do silêncio, mais próxima da solidão, mais próxima da verdade. Ao menos pode sê-lo, e é isso que a justifica. Que adianta escrever, se é para fingir?” (COMTE-SPONVILLE, 1997, p. 38).

Desse paralelo epistolar, extrai-se ainda da elocução de Ricardo Reis, personagem, a relação entre as realidades incoincidentes de uma carta e a realidade vivida: dessa carta-manifesto, o que se concretiza na vida do narrador; até que ponto é possível negar o mundo por completo; decretar a morte da relação; e impedir qualquer chance de reconciliação, pois a carta representa um fragmento de uma determinada realidade, talvez a realidade momentânea singular do narrador, uma cólera que pode ser aplacada se seu manifesto for aceito, ou do contrário, contestado, portanto, de qualquer modo, respondido, e o silêncio quebrado.

Nesse jogo de sentidos, vale ressaltar que em “O ventre seco”, assim como em “Hoje de madrugada”, com a troca de bilhetes e pedidos de afeto, em que se nega também o retorno escrito, lida-se com o silêncio também no sentido denotativo de interrupção de correspondência epistolar, pois ao passo que o conto é o registro de uma só carta, a do narrador, configura-se, para o leitor do conto, o silêncio da resposta.

CONCLUSÃO

Abordar o silêncio significou investigar, na medida do possível, as múltiplas acepções dessa manifestação, que se mostrou e se comprovou também literária. O resgate dos contos de Raduan demonstra que sua obra “[…] continua, apesar do voto de silêncio do seu autor, a provocar barulho.” (SILÊNCIO…, 1989) e que, apesar desses textos, por muito tempo, terem sido apenas “safrinha” e não material digno de publicação, “O exílio da literatura tem sido o único fracasso literário de Raduan Nassar.” (SILÊNCIO…, 1989).

Mas também não se pode condenar o autor por sua escolha, esse silêncio a que ele se submeteu, segundo Leyla Perrone-Moisés, tem poder de sugestão tão grande quanto qualquer uma de suas narrativas:

O ‘abandono’ da literatura é, em Raduan Nassar, o desnudamento radical. Esse abandono é o efeito de uma cólera, com tudo o que a cólera implica de expectativas frustradas. O tamanho da cólera e o silêncio casmurro que sucede ao acesso dão a medida exata de tudo o que o escritor esperava do mundo e da literatura […] (CADERNOS…, 2001, p. 76).

Raduan não produziu artificialmente, por estímulos externos, como a comparação que fez com frangos em uma granja, citada na Introdução desse trabalho, pois “O talento não vem de fora: ele é o sintoma de uma vocação, tramada no silêncio da intimidade, que Raduan Nassar tem para esbanjar. Pena que ele nos negue, agora, esse prazer.” (CASTELLO, 1994).

Lamentações a parte, o estudo permitiu verificar a interação de temas e a constância de estilos e técnicas discursivas do autor e, portanto, estabelecer liames de coesão entre o romance, a novela e os contos de Raduan. Essa coesão partiu da intertextualidade entre as narrativas, expressa especialmente nos narradores, personagens compósitos. Maria José Cardoso Lemos defende essa preposição, partindo do estudo de “O ventre seco”:

Le ventre sec est l’annonciation  d’une écriture, d’un pacte d’écriture, d’une œuvre où l’on trouve une intertextualité interne vertigineuse – les personnages réapparaissent, en traversant les âges: dans Menina a caminho [1961], c’est le narrateur-garçon qui décrit ce qu’il voit – il documente cinématographiquement; André, l’adolescent tresmalhado (sic) de Lavoura arcaica [1975] réapparaît adulte dans Um copo de cólera [1978], revient dans le conte O ventre seco [1970], et plus âgé, dans Hoje de madrugada [1970], personnages composites qui ne suivent pas un ordre chronologique, car il n’y a pas de continuation linéaire entre eux, mais qui correspondent chacun à une variation de la vérité telle qu’elle apparaît au sujet. (LEMOS, 2007).[17]

Por sua vez, Leyla Perrone-Moisés afirma que “[…] todos os textos de Raduan Nassar se constróem em torno de uma recusa: recusa de obediência, recusa de cumplicidade, recusa de amor”. (CADERNOS…, 2001, p. 76). São recorrentes também a intolerância, dos sexos, das gerações, e conseqüentemente das idéias, como no comentário que se segue:

Sobretudo, como não sentir que algo se prepara através da alternância dos papéis conferidos à figura feminina na cama e no banho até o momento em que, soada a hora, a mulher ressurge como ameaça de castração, regulando ‘o mercúrio da racionalidade’, prometendo julgamento popular ao parceiro e querendo servi-lo no “pasto das idéias”? (CHAUÍ, 1978).

No campo das idéias, as mulheres são a ameaça, tanto em Um copo de cólera como em “O ventre seco”, e esse último, quando localizado ao lado de “Hoje de Madrugada”, ambos de 1970, “[…] são radiografias cruéis de relações amorosas agonizantes. Sua virulência é tal que acaba sobrando para os relacionamentos afetivos em geral”. (COUTO, 1997).

Estende-se, portanto, essa virulência para as relações familiares, entre irmãos, em entre pai e filho, como em Lavoura arcaica.

Se admitíssemos o romance como uma árvore frondosa e larga, da qual a novela fosse uma espécie de ramo isolado, admitiríamos com mais facilidade a idéia de que Um Copo de Cólera é um prolongamento de Lavoura Arcaica. Com efeito, o segundo livro de Raduan Nassar não pode ser explicado sem a leitura do primeiro, pois o narrador de Um Copo de Cólera é um redimensionamento da personagem André, o filho rebelde de Lavoura Arcaica, se não for o próprio André em idade madura. (TEIXEIRA, 1992).

O grande conflito explorado pelo romance de Raduan Nassar é o choque entre gerações, envolto num mundo sócio-histórico em crise, e exemplificado na tentativa insana de um jovem de estabelecer uma nova ordem em meio à falácia moral e religiosa impregnada na ideologia e nas crenças arcaicas do Pai. Quanto a uma possível aproximação dos narradores de Lavoura Arcaica e Um copo de cólera, Raduan confessa:

Ora, numa relação amorosa também se estabelece uma relação de poder. O texto se constrói a partir disso. De alguma forma, também o personagem masculino de “Um Copo de Cólera” tem muito a ver com o de “Lavoura Arcaica”. São situações diferentes, mas eu quase que arriscaria dizer que o tema é o mesmo. (CICCACIO, 1981).

Em Lavoura Arcaica, Iohana, o patriarca cumprindo culturalmente seu papel de opressor, não pode se negar às transformações que a transgressão do filho, André, provoca. Uma nova geração vem se sobrepor ou compartilhar espaço com outra. O conflito se acirra  porque a geração, antes dominante, agora se vê desmantelada, não preparada para as mudanças inevitáveis, e, portanto, optando pelo extremismo.

É essa geração nova que, representada na juventude da mulher (Paula), incomoda o narrador de “O ventre seco”: “Está muito certa aquela tua amiga frenética quando te diz que sou ‘incapaz de curtir gentes maravilhosas’. Sou incapaz mesmo, não gosto de ‘gentes maravilhosas’, Paula, não gosto de gentes, para abreviar minhas preferências.” (VS, p. 63). Quando se trata de negar o mundo e qualquer tentativa de comunicação, “O ventre seco” e Um copo de cólera apresentam semelhanças. Essa tentação de voltar as costas para o mundo expressa no conto é a mesma atitude exibida na novela, agora como provocação política: “[…] que tudo venha a baixo, eu estarei de costas. […] não amo o próximo, nem sei o que é isso, não gosto de gente, para abreviar minhas preferências.” (CC, p. 60-63).

É, portanto, partindo dessas relações parciais de proximidade e linearidade entre os textos de Raduan, expressas principalmente na manutenção da personalidade do narrador-protagonista, que se verifica a obra enquanto unidade e extraem-se valores constitutivos de uma particular visão do mundo, reconhecidos em meio aos recursos de linguagem, às escolhas temáticas e formais, ao estético, como a brevidade, a tensão e o silêncio, que constróem e fortalecem o estilo do autor.

REFERÊNCIAS

CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRARaduan Nassar. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2001.

CASTELLO, J. Raduan Nassar fascina e faz sonhar. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 30 ago. 1994.

CHAUÍ, M. S. O banho das idéias: num copo de cólera. Movimento, São Paulo, 17 dez. 1978.

CICCACIO, A. M. Dúvida, a matéria-prima de Raduan Nassar. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 27 fev. 1981.

COMTE-SPONVILLE, A. Bom dia, Angústia! Trad. de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

CORTÁZAR, J. Valise de cronópio. Trad. de Davi Arrigucci Júnior. São Paulo: Perspectiva, 1974.

COUTO, J. G. Textos são obras-primas da narrativa. Folha de S. Paulo, São Paulo, 16 jun. 1997.

GOTLIB, N. B. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2004.

HOLANDA, L. Sob o signo do silêncio. São Paulo: Edusp, 1992.

KOVADLOFF, S. O silêncio primordial. Trad. de Eric Nepomuceno e Luís Carlos Cabral. Rio de Janeiro: José Olympio, 2003.

LEMOS, M. J. C. Le ventre sec ou la mise en scène amoureux. Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/convidado26.htm> Acesso em 02 mai. 2007.

NASSAR, R. Menina a caminho. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

_____. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

_____. Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

SANCHES NETO, M. Escritor de mãos ásperas. Gazeta do Povo, Curitiba, 14 jul. 1997.

SARAMAGO, J. O ano da morte de Ricardo Reis. São Paulo: Planeta De Agostini, 2003.

SILÊNCIO ruidoso. Veja, São Paulo, 29 mar. 1989.

TEIXEIRA, I. P. Um fluxo de fúria. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 13 jun. 1992.

VINAS, R. Sem remédio – Raduan Nassar. Disponível em <http://www.artelivre.net/html/literatura/al_literatura_ruduan_nassar.htm> Acesso em 02 mai. 2007.

 

[1] Modo particular pelo qual Raduan Nassar apelida seus contos. Extraído de: CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRARaduan Nassar. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2001. p. 55.

[2] Entenda-se por “nova”, e não inédita, o fato de os textos terem ganhado edição comercial.

[3] Relativo à simultaneidade de vozes e sentidos.

[4] Sobre poética do silêncio, ver CARONE (1979, p. 81-110).

[5] Importante lembrar que Graciliano Ramos é objeto dos estudos comparativos do professor Lourival Holanda em sua publicação Sob o signo do silêncio, assim como Albert Camus, por sua vez, também citado por Beatriz Perrone-Moisés, na seqüência, ao comentar sobre literatura de revolta.

[6] Todas as citações extraídas do conto serão sinalizadas com a sigla HM, referente à edição de Menina a caminho mencionada nas Referências.

[7] Faz-se menção às teorias do conto de Júlio Cortázar, trabalhadas em Gotlib (2004), quanto à analogia entre conto e fotografia, romance e cinema.

[8] “[…] o romance ganha sempre por pontos, enquanto que o conto deve ganhar por knock-out. É verdade, na medida em que o romance acumula progressivamente seus efeitos no leitor, enquanto que o bom conto é incisivo, mordente, sem trégua desde as primeiras frases.” (CORTÁZAR, 1993. p. 152).

[9] Todas as citações extraídas do conto serão sinalizadas com a sigla VS, referente à edição de Menina a caminho mencionada nas Referências.

[10] “conto-carta-manifesto” é termo usado em Lemos, 2007.

[11] Uma escrita feminina, no que a escrita feminina tem de minoria; o homem face à mulher; inventar um outro homem que, abdicando do ato de poder, torna-se puro poder, assim como o escritor de cartas faz voto de castidade, voto de ignorância, voto de pobreza. (tradução livre).

[12] Artigo publicado no Cahier n.° 10 du Centre de Recherche sur les Pays Lusophones – CREPAL, Paris: Presses de La Sorbonne Nouvelle, 2003, org. Anne-Marie Quint.

[13] Os três elementos de base do contrato estão aí: sua motivação, suas condições de estabelecimento, a situação pós-contrato. (livre tradução)

[14] …é um tipo de diálogo não dialético, uma troca ordenada de réplicas em que cada um quer ficar com a última palavra. (tradução livre)

[15] É o que pretende o escritor de cartas: guardar para si a última réplica enquanto se retira da cena. Não querer possuir, “não quero te governar”, não esperar nada, não julgar, não concluir nada, deixando escoar o rumor infinito da palavra; o silêncio. (tradução livre)

[16] Extraído da epígrafe de O Ano de Morte de Ricardo Reis, de José Saramago.

[17] O ventre seco é a anunciação de uma escritura, de um pacto de escritura, de uma obra onde é encontrada uma intertextualidade interna vertiginosa – os personagens reaparecem, atravessando as épocas: em Menina a caminho [1961], é o narrador-menino que descreve o que vê – ele documenta cinematograficamente; André, o adolescente tresmalhado de Lavoura arcaica [1975] reaparece adulto em Um copo de cólera [1978], volta no conto O ventre seco [1970], e mais velho em Hoje de madrugada [1970], personagens compósitos que não seguem uma ordem cronológica, pois não há continuação linear entre eles, mas que correspondem cada um a uma variação da verdade tal qual ela aparece ao sujeito. (tradução livre).