A busca de sinais no labirinto do tempo: relações entre literatura e história no romance de Almeida Faria

João Felipe Barbosa Borges

RESUMO: Neste artigo, discute-se as relações entre Literatura e História no âmbito do romance português contemporâneo, focalizando a produção artística de um dos mais significativos ficcionistas da Literatura Portuguesa atual, Almeida Faria. As obras desse escritor revelam um procedimento escritural que rompe com as fronteiras entre o discurso literário e o histórico. Sob essa ótica, este artigo teve como objetivo principal investigar, através do romance Cavaleiro Andante (1983), como a arte literária de Faria se apropria, reescreve e reinventa a matéria oriunda da História, problematizando e questionando a legitimidade de acontecimentos do passado português e desestabilizando a identidade da nação firmada por este passado.

PALAVRAS-CHAVE: Almeida Faria. Literatura. História.

ABSTRACT: The purpose of this article is to discuss the relationship between Literature and History in the frame of the contemporary portuguese novel, focusing the artistic production of one of the most important writers of the current Portuguese Literature, Almeida Faria. The creations of this writer show a procedure book that breaks with the boundaries between the literary and historical discourse. Under this view, the principal objective of this article  is to investigate, by the novel Cavaleiro Andante (1983), as the literary art’s Faria rewrites and reinvents the matter come from History, problematizing and questioning the legitimacy of events of the portuguese past, and destabilizing the identity of the nation established by this past.

KEYWORDS: Almeida Faria. Literature. History.

 

INTRODUÇÃO

É consensual, nos mais recentes estudos, apontar a feição histórica como uma vertente da ficção contemporânea. É curioso indagar, no entanto, de onde provém esse fascínio pela História, que faz com que críticos literários, ficcionistas e historiadores se debrucem sobre essa questão. Não mais nos termos postos por um Herculano, que faz do passado, motivação e exemplo de heroísmo e bravura dum povo que se pretende cavaleiro; mas na busca de um diálogo crítico com o passado, que é tema de reescrita e investigação. É algo como se o texto literário contemporâneo se visse incumbido da tarefa de recolocar uma questão básica: fazemos a História ou é a História que nos faz? É isso que explica a atitude dum Raimundo saramaguiano, que acrescenta um “não” na sua História do Cerco de Lisboa; ou ainda, a imagem duma rosa antiga, que nas páginas de Eco, só pode permanecer no nome; ou mesmo um alcorão reinventado em suas doutrinas e sunas nas mãos de um Salman Rushdie.

O que essas imagens revelam, em um ou outro plano, de forma mais ou menos velada, é a recuperação do ato de narrar como forma de intervenção diferenciada na História, que se mostra impotente na tentativa de reconstituição integral do passado. Assim, ao perceber essa incompletude, o escritor já não se mobiliza na glorificação do passado, mas, antes, na reflexão sobre o que até então parecia indiscutível. E é ao questionar o inquestionável, que o escritor cria uma tensão na qual concorrem os acontecimentos da História oficial e os acontecimentos da História ficcional, de forma que o que poderia ter sido adquire igual – senão superior – valor ao que realmente foi.

Nessa mesma perspectiva, trabalharam vários autores, como Garcia Márquez, Doctorow, Coetzee, Coover, mas é certamente no âmbito da literatura lusitana que essa revisão da História despertou maior interesse, decerto, em razão das circunstâncias histórico-sociais relacionadas ao regime político que Portugal vivenciou até bem pouco tempo se comparado a outros países da Europa: o regime ditatorial do Estado Novo. Durante quase meio século, de 1933 a 1974, os portugueses se viram sob um período de fechamento ao outro, forçados a acreditar orgulhosamente num império português que há muito já havia se transformado em mera ficção. Marcada sob a política implacável de António Salazar, que exerceu como ninguém o papel de “chefe” não só de um Estado, mas de um povo, toda uma geração se viu obrigada a acreditar em meias verdades de uma história, artística ou cientificamente, narrada pela voz de Salazar, que aprimorando o seu arsenal repressivo, neutralizou qualquer atividade escritural que não partilhasse do caráter “corporativo e unificador” do Estado Novo (Roani, 2004).

Mas, se por um lado, o regime ditatorial de Salazar impingiu sobre esse período da História um silêncio brutal, realçando ainda mais a vocação passiva e servil do povo português diante da adversidade; por outro, serviu ao menos para duas coisas, a contento: (i) aguçar os sentidos dos escritores – convidados, muitas vezes, a driblar a repressão e preencher/repensar as páginas em branco desse período negro que Portugal vivenciou; e (ii) promover o encontro do recalcado consigo mesmo, isto é, o encontro da infinita resignação de um povo que se acreditava possuidor de um Santo Graal futuro com sua real e desmitificada imagem no espelho.

Nessas marchas e contramarchas da História, nada mais natural, portanto, que, com a revolução que coloca fim ao governo salazarista a 25 de abril de 1974, simbolicamente alcunhada por Revolução dos Cravos, a ficção portuguesa encontre terreno fértil para a revisitação das páginas que Salazar impediu de preencher, tentando, consciente e reflexivamente, suprir as lacunas e fendas de um passado que se fez e se sabe irrecuperável. É óbvio que não assumindo-se como suscetível de ter a natureza real deste, pois enquanto arte, a ficção romanesca sabe que não pode ser medida pela objetividade e cientificidade do discurso, mas assumindo-se enquanto fingimento voluntário e permanente, para, fingindo, transpor as fronteiriças limitações impostas pelo desejo de realidade.

Ora, e quando este fingimento da História emerge em um espaço e em um tempo como o do Estado Novo e da Revolução dos Cravos, é impossível não questionar não só a veracidade do que foi dito, mas, sobretudo, a necessidade do não-dito, daquilo que o censor imaginário do regime salazarista talhou e cortou talvez para sempre. E não se trata apenas de revisitar os mandos e desmandos do governo, as lacunas e fendas do tempo, mas, principalmente de revisitar a própria identidade, e nela buscar as respostas da passividade diante de mais de quarenta anos de censura em todos os vetores da vida portuguesa, passividade largamente mitificada e difundida em utopia de heroísmos e guerras de cavalaria.

De Vergílio Ferreira a José Cardoso Pires, de Lídia Jorge a José Saramago, de Eduarda Dionísio e Augustina Bessa-Luís a Almeida Faria e Lobo Antunes, esse retorno ao passado como fonte de investigação é colocado a nu, e à semelhança de utopistas iconoclastas, estes autores propõem um porvir diferente para o passado, de modo que este passa a fazer parte do presente sob a forma de uma ruptura expectante, deflagrando a irrupção de novos caminhos para a velha História. O romance Cavaleiro Andante, publicado em 1983, por Almeida Faria, revela-se como significativo exemplo da emergência desse outro lado da História. Nele, percebemos uma crítica ao passado resolvido como imitação projetada da realidade, podendo-se depreender, em sua escritura, desdobramentos ontológicos e éticos que se colocam como tema de primeira importância para o pensamento da História. E justamente porque não se resigna à superficialidade aparente do contar, reivindicando a profundidade que há entre o dia presente e o dia que já se passou, por vestígio textualizado e pela experiência em si, Almeida Faria acopla o passado ao presente e, por certo olhar às avessas, promove uma reflexão do presente iluminado pela História.

CAVALEIRO ANDANTE: Nas brechas do real esfacelado

Intérprete testemunhal que é da história de 25 de abril, Almeida Faria, em Cavaleiro Andante, livro que fecha a saga ficcional da Tetralogia lusitana do clã alentejano iniciada em A paixão (1965), focaliza a história dos cravos de abril pelo lado da subjetividade de suas personagens, e, deslocando o “real” das instituições e crenças da documentação histórica oficial, pela interação entre o texto ficcional e o referente histórico, estabelece tensões entre o que o texto diz e o que se conhece a respeito da História, de modo que se lemo-lo como historiadores ávidos pela constatação e verificação do chato e velho real de um código já conhecido de verossimilhança novelística, todavia, somos chamados, sem qualquer inocência possível, a atentar para o fato de que historiar e efabular, principalmente em um espaço povoado de mitos como a aparição de deuses e virgens a reis e exércitos, como é o caso português, tocam incessantes pontos de intercessão.

Dessa forma, aquilo que Óscar Lopes (1986, p.195) disse a respeito de José Saramago, aplica-se também aqui a Almeida Faria, que

querendo num mesmo livro historiar e efabular, procede assim (digamos) como um músico: permite-nos reconhecer linhas melódicas, ritmos, fundos harmónicos, mas jogando-os a destempo uns dos outros, e de repente chega ao que mais importa, que é o achado de coisas imprevistas para o seu básico tratado de composição.

Assim, por exemplo, vai registrando em Cavaleiro Andante os acontecimentos que marcaram o período pós-revolução, permitindo-nos reconhecer notícias, eventos, evidências e fatos do período, mas jogando-os uns contra os outros para compor a sua anti e pluri melodia de ópera bufa, para compor o seu outro lado da História, que se é condicionado por quaisquer razões que o sejam, são estas, antes, razões do imaginário.

No curso desse raciocínio, o tempo ficcional do romance encerra-se no ano de 1975, momento em que o país encontra-se sob os efeitos da Revolução dos Cravos, que veio alterar-lhes significativamente a vida, representando uma metamorfose radical de todas as instituições portuguesas. Com a queda do governo salazarista, recai sobre Portugal um clima de total instabilidade,

Num ano houve cinco governos, as pessoas passam o dia a ler jornais, ouvir rádio, ver TV para entenderem notícias às vezes verdadeiras, alarmes às vezes falsos, histórias de armas roubadas, golpes militares, cartas abertas e fechadas, prisões, demissões, ameaças várias (FARIA, 1987, p.14).

Acrescenta-se ainda, uma reforma agrária menos reforma que apropriação violenta e desordenada de terras, e crescente miséria e desemprego num país que recebia milhares de portugueses retornados de Angola, em processo tardio de libertação das amarras coloniais. O clima é de anarquia total, e se num primeiro momento, todas as expectativas e esperanças lusitanas foram depositadas no desdobramento libertário de abril, baixados os ânimos, Portugal é levado a constatar que “a revolução foi feita para dar de mamar aos mesmos” (FARIA, 1987, p.102) e que a “vida neste Portugal-dos-Pequeninos” tornou-se-lhes “beco escuro, com sol por cima, é certo, mas sem saída à vista” (FARIA, 1987, p.20).

Quanto às personagens, são as mesmas da saga iniciada em A paixão: a matriarca Marina, os filhos João Carlos, André, Arminda e os pequenos Jó e Tiago, e as respectivas namoradas de João Carlos e André: Marta e Sónia. Dispersas as personagens pelas circunstâncias de um país em frenesi político, o texto desse Cavaleiro Andante é sobretudo epistolar, no qual entre as cartas trocadas entre as personagens do romance e alguns diários e monólogos que as cortam, são sobrepostos sutis e cortantes comentários acerca do cenário português. Ao revisitar este cenário através das várias vozes narrativas que nos vão sendo apresentadas, Almeida Faria recompõe a História desde as perspectivas das margens, em oposição a um centro hegemônico e detentor da História oficial. Nota-se em todas elas, a afirmação de diferenças e de diversas posturas do indivíduo enquanto sujeito, nas quais se reconfigura a construção de um significado periférico sobreposto ao significado instaurado pelo poder autorizado.

Assim é que, neste espaço periférico, emergem, a um só tempo, vozes por vezes dissonantes, é certo, mas ainda assim, todas da periferia do poder, como as de Marina, presa a um passado que julga melhor que o presente, o qual, segundo pensa, não ajudou a construir, “culpado seria o sistema” (FARIA, 1987, p.19); ou ainda a voz dos filhos, medida e contaminada pelo discurso de luta – embora vazio, e, por isso mesmo, tão de vítima quanto o da mãe – nos mais velhos (tão atentos aos acontecimentos políticos, bem como aos mitos e teorias que o fundamentam), ou em sonhos e devaneios misturados a uma realidade de medo e de perda nos menores; ou mesmo a voz de Marta, tão ciente de que é preciso “sair para ser” nesta terra de pequeninos; ou a de Sónia, dissonante de todas talvez, onde o discurso de ação é tão mais presente que o discurso de vítima parturida de uma revolução. E os acontecimentos que emergem são igualmente múltiplos e dissonantes: a situação política portuguesa, a situação angolana na voz de Sónia, as violentas invasões de terras na voz de Marina, o sexo, o desejo, o tesão, reprimidos pela revolução na voz de Arminda, enfim, todos estes acontecimentos e vozes silenciados outrora pela autoridade salazarista, no plano ficcional de Cavaleiro Andante, vêm à tona contra a corrente estagnada do discurso da ordem estabelecida.

E ao dar voz às margens, à mulher, à criança, a este bando de remediados, enfim – e remediados sim, porque embora tivessem lá suas posses, não eram ricos; estes, como diria André, continuavam “com prédios de rendimento nas cidades”, “em casa de perna traçada com reformas ou rendimentos por inteiro” (FARIA, 1987, p.102) –, Almeida Faria rasura a tradição monumentalista e o discurso unívoco e certeiro tão caro àquela História Positivista, instalando no lugar da identidade, a alteridade, numa atitude crítica que dialetiza a tradição, e revelando, ao mesmo tempo, a consciência de que o conhecimento sobre um dado acontecimento só se pode dar na multiplicidade e na alteridade de uma História que, se outrora una, hoje só pode ser múltipla. E a partir disso, Almeida Faria realiza muito mais do que um simples resgate do passado, pois a narrativa não corrobora na visão exclusiva do acesso de um indivíduo à História, mas sim a uma visão privilegiada de convivência – e por que não convergência? – de discursos, de vozes e de referências sobre o passado, os quais deixam entrever a pluralidade discursiva que fundamenta a sua visão da História.

Visão, aliás, estendida a suas personagens, que sabem, melhor que ninguém, que a história contada não é de fato a história vivida, ou em outras palavras, que “a narração de fatos excessivamente fátuos não serve senão para entreter a espera” (FARIA, 1987, p.160). Adentrando mais, são personagens que prezam pelo “lado iluminista estrangeirado de quem considera seu dever entender a infinita variedade do mundo sensível, único dos muitos mundos possíveis que interessa a quem começa pelas falas e termina no falo ou vice-versa” (FARIA, 1987, p.50). É a insatisfação e a inquietude das margens perante a infinita variedade do mundo sensível, que possibilita o resgate de um país dominado pelo falo salazarista mesmo após sua queda, o resgate de um tempo e de um espaço que muito embora, escritural e historicamente, se pretendessem indefinidos, sem sujeito, eram marcados, conscientemente ou não, pelo falo ditador de Salazar.

É no espaço de disjunção e dissonância criado pelas tensões entre o discurso romanesco, marcado pelas margens, e o discurso do poder autorizado da documentação oficial, que Almeida Faria formula, a um só tempo, objetiva e subjetivamente, a sua visão da História, e cria personagens que embora marcadas pela descrença, não o são pela desesperança, e por isso mesmo lá no fundo, embora não acreditem, esperam a ascensão do país e da humanidade, a regeneração dos valores da sociedade, e encontram no interior de si mesmas uma chama positiva da salvação que ainda não se apagou, vista menos em termos materiais que espirituais e humanos. É assim em Arminda, que busca acreditar que

talvez os mestres da Filosofia Portuguesa tenham afinal razão quanto ao advento do reino do E. S., que será chamado Quinto Império e terá sede em Portugal: simbolizado pelas cinco quintas, aliás cinco quinas do nosso escudo cada vez mais desvalorizado, o Quinto Império verá a vitória do E. S. sobre os outros impérios da Terra e o regresso de D. Sebastião ao reino do Quinto Elemento; então a falida pátria voltará ao poder e à glória mas desta vez só espiritual, sem as tentações materialistas que, parece, são a causa actual da miséria finaceiro-moral. (FARIA, 1987, p.136)

É assim também em João Carlos e André, que aguardam ansiosos o dia em que poderão se ver livres do sacrifício a que atiraram a própria vida em defesa da mãe e dos pequenos. É assim em Marta e em Sónia, que, uma em Veneza, outra em Luanda, esperam por seus amores para dar a ansiada propulsão a suas vidas. É assim em todos, cada um a seu modo. Todos esperando ansiosos por alguém ou algo que os reabilite da faculdade de viver, a que a revolução prometeu e negou.

Destarte, em Cavaleiro Andante coexiste um messianismo utópico que já pelo título e pelas epígrafes, a narrativa enseja. E logo aí, pela intertextualidade, esse messianismo se evidencia de forma ambígua: este cavaleiro andante, esperado como um D. Sebastião, para garantir a salvação da viúva e dos órfãos, alude à novela de cavalaria A demanda do Santo Graal (Séc. XVIII), do que se pressupõe que privilegiará o que na memória portuguesa ficou retido da imagem desse herói; mas não será o romance também um memorial contra esta imagem, ou seja, centrado na ruptura com o que se conservou por mitificação e cristalização na memória, uma vez que a primeira epígrafe de Hegel anuncia desde início que “o cavaleiro andante que quer defender a viúva e o órfão não tem hoje lugar” (FARIA, 1987, p.5)? E mais, seria de fato cavaleiro andante aquele que, na segunda epígrafe, na voz de Antero de Quental, “por desertos, por sóis, por noite escura, paladino do amor, busca anelante o palácio encantado da Ventura” (FARIA, 1987, p.5)? Mais do que a resolução da ambigüidade destas questões, o que interessa ter em mente é a sua mesma existência enquanto fator de indecisão semântica instaurada já de início, e acentuada pela profusão de imagens em constantes contrastes entre o que cada um é e pensa ser, entre o que é para si e para o outro, e entre si mesmo e a “variedade do mundo sensível, único dos muitos mundos possíveis” (FARIA, 1987, p.50) que se busca apreender.

Desta indecisão, natural que as imagens de cada personagem sejam, não raro, plurais e contraditórias. Desde o título, a procura do Graal é insinuada e depois vivenciada por cada personagem, que busca anelante o seu próprio caminho, o seu próprio palácio da Ventura, mas como o mito do Graal é retomado, atualizado e redimensionado relativamente à realidade político-social contemporânea, todos, ao mesmo tempo em que desejam ser cavaleiros andantes, se negam a sê-lo. Tomemos, inicialmente, André e João Carlos como exemplos, que são, nas palavras do próprio Almeida Faria (em entrevista concedida a Gomes (1993)), os epítetos dessa anti-epopéia lusitana. André, o primogênito, que assentara no lugar do pai após sua morte na função de gerir o clã, é o único dentre os heterônimos epistolares que se assume como cavaleiro andante, e por conta disso, talvez, errará mais que os outros em sua andança entre Portugal, Brasil e Angola. Parte de Portugal para o Brasil, buscando provar aos outros e a si mesmo que é capaz de defender a viúva e os órfãos, que é “capaz de lutar contra a inércia, senão de vencê-la” (FARIA, 1987, p.72).

Contudo, esta imagem do herói que pretende, com sua ida ao Brasil, adquirir lucros para suster os seus, sacrificando a própria felicidade e a própria saúde, uma vez que sofria de leucemia, é desmentida pelas cartas da amada, que nos revelam a utopia de um heroísmo que ele mesmo acaba por reconhecer como ilusório, “último inútil inventário do quinto império não existido senão no sonho sem sentido” (FARIA, 1987, p.172):

No teu caso, ires para São Paulo é, mascarado do alto sacrifício de ajudar a sustentar a família, escapar às responsabilidades reais: encontrar um futuro mais ou menos livre e seres mais ou menos feliz. Porque pretendes só ser feliz a meu lado, e eu prefiro acreditar, a única atitude seria vires ter comigo, ganhares o necessário sem colaborar com o capitalismo selvagem dessas paragens, trabalhares aqui onde se luta por um projecto concreto, ou em Portugal. Mal por mal, antes Portugal. (FARIA, 1987, p.37)

O que as palavras de Sónia descortinam é que a atitude heróica de André nada tem de heroísmo, porque não é em nome da família que se move, mas de uma salvação individual, e nesse sentido, percebemos que sua partida é menos uma empresa heróica que uma fuga, fuga para tentar escapar do labirinto a que a revolução lançou a todos, labirinto como o seu jogo sonhado onde “tudo era imprevisível excepto a morte contudo certa, contra a qual só resultava adiar pela corrida” (FARIA, 1987, p.55). Seu heroísmo é, assim, convertido na inércia e no medo de mover-se, os quais queria provar a si mesmo ser capaz de vencer. E mesmo que o não fosse desmentido: André, desiludido com um Brasil tão ditadura quanto Portugal o fora, quase vencido por um câncer tão físico quanto moral e espiritual, parte para morrer em Angola – o que atribuiria fim ao último cavaleiro andante português, se André de fato o fosse –; e mesmo esta única atitude heróica, morrer nos braços da amada, envolve apenas sua salvação individual, não a dos seus.

Por sua vez, João Carlos errará por caminhos geograficamente diversos do irmão; seu espaço de errância é entre a Veneza de Marta e o seu Portugal. Contudo, substancialmente, a errância empreendida é a mesma. Mas a inércia se assume em João Carlos muito mais patente que em André, de modo que este nem geograficamente consegue mover-se. Deixando Marta à sua espera em Veneza, para ocupar-se em “ajudar a sustentar os seus, sustendo a queda do clã assustado sob os fogos cruzados” (FARIA, 1987, p.8), poderíamos pensar no nosso JC, como é chamado no romance, como uma espécie de Jesus Cristo do Alentejo, até mesmo pelo que as iniciais ensejam. Deste modo, estaria João Carlos, à semelhança de um Nhô Augusto nas páginas dum Guimarães, buscando através do próprio sacrifício, reintegrar-se a um cariz mítico-religioso de salvação. Contudo, a sua via crucis é considerada pela amada artificial e repugnante, mais covardia que sacrifício: “A tua fuga de Veneza e de mim não foi cobardia? Julgas que as futuras constantes viagens substituem a opção não tomada? Será o receio do fracasso que te impede de arriscar?” (FARIA, 1987, p.50), pergunta Marta. Mas a suas perguntas não carecem respostas, porque ela sabe tanto quanto ele, que no frenesi político português, momento em que a ocasião se lhe apresenta para lutar, para fazer a diferença ou pelo menos para tomar uma posição, não é preocupado a suster os seus que anda, mas com as duas razões que lhe impulsionam(?) o viver: a poesia e o Atlântico, ambas melhores ao lado de Marta, mas que contudo, não é capaz de deixar. Ora, daí vemos que nenhuma atitude heróica reside em JC, reside apenas uma total inabilidade para lutar, decerto, como diz Marta, herança de um

triste povo envergonhado por derrotas inglórias, [que] mesmo depois da vergonha, ficou essa estanqueza de inúteis guerras, humilhações sem grandeza, o complexo de ter deixado escapar um império, de ter largado a carne para ficar com os ossos. (FARIA, 1987, p.50-51)

Marta, todavia, como seria de se supor, também é vítima do auto-engano que fazem os demais personagens de si. Considera-se uma vencedora por ter abatido a inércia e deixado o seu Portugal-dos-Pequeninos. No entanto, o seu discurso de luta e de crítica é tão vazio quanto o dos demais. Não seria ela também antes uma refugiada que uma heroína? Não seriam as águas altas de Veneza um refúgio estetizante, assim como o Atlântico e a poesia de JC? Não seriam os seus Bellini, De Predis, Veronese e Tintoretto, máscaras para tapar de si mesma a sua inabilidade para lutar, para integrar-se a uma causa nobre e buscar sua salvação? E nesse sentido, não seria ela menos uma exilada voluntária que uma fugitiva errante? Talvez a única que seja de fato cavaleira dentre estas personagens marcadas pelo medo e pela inércia seja Sónia, empenhada na luta pela independência angolana, empenhada em uma causa que dê sentido à vida. Largando as Letras e se dedicando à Enfermagem por ver na profissão motivos mais prementes e mais urgentes de transformar seu discurso de luta em um discurso de ação, Sónia é, muito mais que os heróis epítetos do romance, aquela a que, justamente por não portuguesa, por ser angolana por opção e considerar o país “mais teu que se nele nascesse” (FARIA, 1987, p.114), o título de cavaleiro se aplica com maior exatidão.

De resto, são personagens marcadas pela ambigüidade do mito do Graal, que se fundamenta e se desconstrói em cada um. É assim nos pequenos Jó e Tiago, tão valentes em seus sonhos, ao lado de heróis como Rei Arthur, os cavaleiros da Távola Redonda, o professor Lindenbrock, tentando vencer lutas em aldeias aéreas e em viagens ao centro da terra, tentando vencer, na dimensão onírica, às radiações que não sabem eles, se estarão, na dimensão real, menos sujeitos. Mas de que vale ser cavaleiro nos sonhos, se se tem medo de tudo e de todos diante de uma revolução que lhes tirou o sossego e a proteção? É assim também em Arminda, que muito embora se faça moderna, advogue em favor da libertação do sexo, do desejo, da voz da mulher que outrora fora cortada, que muito embora advogue em favor da luta contra a revolução, continua a acreditar em messianismos patéticos para buscar um modo de evadir da realidade e se salvar. Ora, e não é de todo curioso alguém que vê na mãe apenas a sombra de uma servilidade ao marido, e que por ser este morto, é agora incapaz de mover-se, se entregar a um casamento com um namorado preso à militância política e que, por isso mesmo, deixou de ser o seu amado herói? Aliás, ter um herói não seria justamente negar a possibilidade de fazer-se heroína?

A única que parece escapar a esta dialética de cavalaria é Marina. Nela, não encontramos quaisquer traços de coragem, quaisquer traços guerreiros, nem mesmo nos sonhos; encontramos apenas um morto corpo da ação sem vontade, preso a um passado e incapaz de mover dois passos na tentativa de viver. É a inércia por excelência. Mas, ora, não poderia ser diferente, porque se a morte do marido, em Cortes (1978), romance integrante da Tetralogia Lusitana, representou a morte do sistema patriarcalista de Salazar, a vida de Marina, em Cavaleiro Andante, representa o novo Portugal, supostamente matriarcal. Mas sabemos também que a revolução em nada alterou o cenário, apenas mudou o poder de mãos; portanto, nada mais natural que ela se veja como uma “gasta matriarca que depressa desaparecerá inconformada com a própria falta de vitalidade […]. Cansado coração, nenhuma vontade, nenhuma ilusão, corpo usado, farto de si e dos filhos, neste vazio” (FARIA, 1987, p.58). Assim, é levada a concluir: “Não vivo. Existo, esbracejo, náufraga de tão remoto naufrágio, que me escapa até o nome do barco, a data do desastre. Vivi hoje? Não, nem ontem. Há quanto tempo? Imenso.” (FARIA, 1987, p.19)

São essas relações conflituosas que evocam um questionamento constante de cada voz narrativa, promovendo uma espécie de autópsia das imagens que os portugueses têm de si. E porque há aqui a passagem da memória desse pequeno clã, à memória coletiva da nação, e não só no nível que o diálogo intertextual enseja, como também no nível temático através da permanência de imagens por vezes contraditórias, eles são levados a ver que, no fundo, todos são como Marina, náufragos de tão remoto naufrágio, e em tão remoto passado, que são incapazes de mover-se, no presente, na construção de suas histórias.

Este fato de estar ilhado, naufragado no passado, constitui toda uma angústia e uma náusea que se presentificam nas páginas de Cavaleiro Andante. E é justamente esta náusea de estar ilhado em si mesmo, que faz com que se atenue o tom de grito e de negação presente muitas vezes na revisitação que Almeida Faria promove à História Portuguesa, à sua Lisboa e a seu amado Tejo, aqui transcrita na voz de João Carlos:

[…] Tejo em que me revejo e não sem revolta aceito o ter de um dia te deixar, abandonar o gosto de te olhar destas ruas donde brilhas com reflexos de sol e de barcos que passam devagar, Tejo monótono e mutável, trazendo, levando areias e sargaços e mastros e dejectos e desastres; morrer já bateu certo quando era atravessar um rio, talvez o Tejo nascendo dos infernos carregado de memória dos mortos que pesam na cidade de modo exagerado, Lisboa onde vagueio por vielas vazias de feriado, Rua dos remolares, largo de S. Paulo, ruelas ribeirinhas com drogarias tão antiquadas que merecem a falsa eternidade dos catálogos, lojas arcaicas, mercearias sujas […]; eis-me pois entre fastos passados e nefastos futuros aqui esquecido do mundo neste canto onde canto contudo os que se vão afogar e insistem em nadar sem saber para onde, contra tudo e todos, contra as ondas, contra as marés inelutáveis, contra mares há muito navegados. (FARIA, 1987, p.33-34)

O olhar contemplativo lançado por João Carlos sobre a cidade revisitada, nomeando e conjeturando tudo aquilo que a História oficial, por conveniência, preferiu calar, no excerto acima, já não pode ser medido por um grito de negação; é antes, um desabafo de alguém que embora se reveja na cidade, sabe que terá de um dia lhe abandonar se quiser realizar algo de verdadeiramente concreto, um desabafo que faz lembrar os versos de Fernando Pessoa (1993, p.247) em Lisbon Revisited:

“Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta”.

Em ambos, notamos a consciência de que o Tejo, bem como a História que nos é contada, é apenas uma pequena verdade onde o céu se reflete, notamos uma mágoa de se voltar para a memória e o espaço que é Lisboa e não se encontrar na cidade revisitada, que nada lhes deu, nada lhes tirou, nada lhes foi para que nela pudessem se sentir, e que contudo, continuam a cantá-la, nadando sem saber para onde, contra tudo e todos, contra as ondas, contra as marés inelutáveis, contra mares há muito navegados. Em ambos, percebemos um tempo que é bergsoniano, “a correnteza ininterrupta das horas, a duração sem começo, nem meio, nem fim” (MOISÉS, 1998, p.22), em que passado, presente e futuro se entrecruzam num mesmo plano: o do imaginário da Lisboa de outrora de hoje, sublinhando a permanência da emoção de que se compõe a memória, e tornando a mágoa do sujeito sempre viva e presente.

A história de Faria encontra, assim, algo que ultrapassa os limites eventuais do positivismo histórico que ainda vigora no pensamento de muitos historiadores. Isso porque os acontecimentos de ordem política, econômica, social e até mesmo cultural, são facilmente identificáveis; mas não são eles que interessam. Afinal, dos acontecimentos em si, pouco resta de verdadeiramente original. Nada que não se possa encontrar nos livros de História recentes com maior ou menor exatidão. Mas o dispersar de uma família, o medo, as mentalidades fraturadas pela revolução, o sentimento de cada um em relação a si mesmo, ao outro e ao mundo, com essas “besteiras” a História, nem mesmo a recente, se deu ao luxo de investigar. E Faria, nesse sentido, dá mostras de que essa família existiu, mesmo que movida apenas no imaginário. Não importa se nessa mesma cidade, se com esse mesmo nome, se ficcional ou real. A essa história o que importa é que é altamente verossímil e provável; e, ora, não é a História mesma a admitir que trabalha com probabilidades?

E nesta contabilidade saturada pelas contas de multiplicar, a única conta de menos que encontramos é a da subtração de mitos. Sim, porque se histórica e simbolicamente Portugal se encontrava sobre aquela situação, era porque em parte tudo se devia a uma consciência mitificada acerca de si mesmo e de sua própria identidade, e, por isso mesmo, seria preciso levá-lo ao divã, para que retornando às raízes, retornando à sua curta dimensão européia, encontrasse não mais “o lugar onde a terra se acaba e o mar começa” (CAMÕES, 2007, p.86), cantado por Camões, mas o lugar “onde o mar acaba e a terra principia” (SARAMAGO, 1985, p.11), que a inversão saramaguiana sugerira. Assim, não é a semelhança de um Camões que Almeida Faria revisita a sua Lisboa, o seu Tejo, o seu oceano, e a si mesmo enquanto identidade coletiva, mas à semelhança de um Pessoa, porque sabe que a ele cabe “a vez da negativa epopéia” (FARIA, 1987, p.33), porque sabe que no Graal buscado nesse seu Cavaleiro Andante, “não é o sangue de Cristo que goteja para nossa contemplação extática”, mas o sangue português; contudo, “sem cálice santo para o recolher, escoando-se no silêncio de uma indiferença universal” (passim LOURENÇO, 1987, p.12).

Referências

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Martin Claret, 2007.

FARIA, Almeida. Cavaleiro Andante. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

GOMES, Álvaro Cardoso. A voz itinerante: ensaio sobre o romance português contemporâneo. São Paulo: EDUSP, 1993.

LOPES, Oscar. José Saramago: As fronteiras do maravilhoso real. In: ____. Os sinais e os sentidos da Literatura Portuguesa no século XX. Lisboa: Caminho, 1986.

LOURENÇO, Eduardo. Prefácio. In: FARIA, Almeida. Cavaleiro Andante. 3ª ed. Lisboa: Caminho, 1987.

MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix, 1998.

PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos. Lisboa: Ática, 1993

ROANI, Gerson Luiz. Sob o vermelho dos cravos de abril: Literatura e Revolução no Portugal contemporâneo. Revista Letras, Curitiba, n. 64, p. 15-32, set/dez, 2004.

SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. 6ª ed. Lisboa: Caminho, 1985.

 

* João Felipe Barbosa Borges é graduando em Letras – Português e Literaturas de Língua Portuguesa – pela Universidade Federal de Viçosa e bolsista do PIBIC/CNPq. Este artigo foi elaborado sob a orientação do professor Gerson Luiz Roani, que atua na mesma universidade como professor adjunto II de Literatura portuguesa e coordenador do Programa de Pós Graduação em Letras da UFV.

 

Artigo submetido em 04/08/2009 e aprovado em 16/09/09.