Intertextos entre a história e a literatura: a (re)invenção do passado em Memorial do Convento, de José Saramago

Rodrigo Corrêa Martins Machado

RESUMO: O presente artigo investiga os elos de intersecção presentes entre a Literatura e a História na tendência do romance português contemporâneo, principalmente no que concerne ao romance Memorial do Convento (1982) de José Saramago. Este autor é considerado um dos mais significativos escritores das literaturas de língua portuguesa. Em seus romances, reflete sobre os problemas sociais, e dentre outras coisas, revisita criticamente a História de Portugal. Na obra em questão, encontramos uma releitura do processo histórico, mediante a qual a experiência do ser humano com a temporalidade é recriada/ reinventada a partir de aparatos documentais.

PALAVRAS–CHAVE: História. Literatura. Romance português contemporâneo. Memorial do Convento. José Saramago.

ABSTRACT: The present article investigates the existent links of intersection between literature and history and between the historiographic and fictional in the tendency of contemporaneous Portuguese novel, mainly in what concerns the novel Memorial do Convento by José Saramago. This author is considered one of the most meaningful writers of the literature of Portuguese language. In his novels, he reflects about social problems, and among other things, critically revisits the history of Portugal. In Memorial do Convento (1982), we find a rereading of historical procedure, in which the experience of the human being with temporality is recreated/reinvented from documents.

KEYWORDS: History. Literature. Contemporaneous Portuguese novel. Memorial do Convento. José Saramago.

 

INTRODUÇÃO

No contexto atual das literaturas da Língua Portuguesa, José Saramago é um dos autores de maior destaque, não só por ter sido o primeiro escritor proveniente de um país lusófono a ganhar o Prêmio Nobel de literatura, mas também pela alta qualidade de seus textos. No romance português contemporâneo, Saramago se destaca também pela construção de romances em que (re) lê a História de Portugal, das suas raízes medievais à atualidade. Com engenhosidade e criatividade incomuns, a História se torna um elemento estruturante das produções artísticas do criador de Memorial do Convento e a manipulação literária redimensiona os diferentes dados e elementos históricos em um conjunto ficcional, diferente do universo de onde foram tirados.

A constituição de seus romances se aproxima dos preceitos da Nova História, uma corrente historiográfica surgida na segunda década do século XX, problematizadora dos fatos sociais, do papel desempenhado pelo povo, dos movimentos das grandes massas anônimas, seus modos de viver, pensar, agir e sentir. Como concepção histórica, a Nova História, ao contrário de outras, não se preocupava em escrever a História privilegiando os detentores do poder (Realeza, Clero, Aristocracia), mas a classe social oprimida, os que não tinham História e que ficaram relegados por vários séculos a não serem reconhecidos como agentes impulsionadores das transformações sociais no tempo.

O que o autor português em questão fez ao elaborar seus romances foi transportar essa convicção epistemológica da Nova História para dentro de seu universo ficcional. Desta forma, o romancista pôde, a partir da sua afeição pelo que é excluído pelo discurso do poder e, consequentemente, da sociedade, apresentar uma nova História de Portugal, na qual os marginalizados foram os grandes protagonistas e responsáveis pela construção do país, da identidade nacional/ cultural e das transformações sociais.

Em Memorial do convento, observamos a forte ligação entre a História e a Literatura, em que aquela deixa de ser vista como algo exato e absoluto, no que confere a pretensão ao campo cientifico, para se tornar matéria passível de ser (re) criada pela ficção romanesca, em uma ordem discursiva na qual prevaleceu o imaginativo, a partir de dados apresentados em documentos legitimados pela História. Saramago (re) inventou a História da construção do convento de Mafra e criou uma nova, na qual o povo passou a ser o grande protagonista da edificação de tal grandiosidade e não mais os executores do poder, identificados no romance com D. João V.

A partir de tais elementos, este artigo investigou os elos de aproximação e afastamento entre a literatura e a História na prosa saramaguiana, mediante a análise teórico-crítica do romance Memorial do Convento (1982). O que propomos sob a forma de artigo é o estudo da natureza da expressão literária do acontecimento histórico, que investiga como as referências históricas foram extraídas dessas fontes medievais portuguesas e reinventadas por Saramago em nosso tempo. No caso de Memorial do Convento, romance escolhido como corpus da pesquisa, vislumbrou-se a utilização da matéria histórica como um procedimento escritural que aprofunda a interlocução entre a literatura e a História. Sob essa ótica, a investigação situou a maneira como a ficção do Nobel português realiza a representação dos acontecimentos e fatos históricos, além da reflexão sobre a dimensão discursiva, portanto narrativa, tanto da literatura, quanto da História.

Para que o proposto se efetivasse, metodologicamente, fizemos dialogar comparativamente o discurso histórico e a ficção romanesca.

A narrativa escolhida como o corpus para a análise crítica das relações entre literatura e história configura-se como uma forma de leitura do processo histórico que vislumbra a experiência do ser humano com a temporalidade como um campo que pode ser objeto de conhecimento, não só da Ciência, mas também da ficção em uma outra ordem, ficcional e imaginativa, mas ancorada em bases documentais conscientes. Dessa forma, pelo discurso literário de José Saramago estaria surgindo uma nova História lida e/ou escrita pela literatura, que visa, principalmente, dar voz aos oprimidos, que antes foram esquecidos pelos historiadores, e mostrar como esses mesmos relegados foram os grandes responsáveis pela construção do convento de Mafra.

A HISTÓRIA E A LITERATURA: Pontos de convergência

Nem sempre a História e a literatura puderam ser encontradas em um trabalho no qual convergisse os dois tipos de discurso: o histórico e o literário. Na verdade, seus estudos eram considerados antagônicos: enquanto a História era essencialmente ponderada como científica, na busca incessante da verdade factual, a literatura era apreciada como uma forma artística baseada na ficção, no fantástico e no maravilhoso. Sendo assim, não haveria como se comparar o discurso histórico e o literário.

A partir de contribuições de pesquisadores que se dedicaram ao estudo das relações entre literatura e História, pode-se afirmar que a idéia primordial de distanciamento entra as duas áreas sofreu grandes modificações. O discurso histórico – juntamente com sua busca pela cientificidade – sofreu um grande abalo quando questionado sobre a possível não-cientificidade através de estudos e indagações de filósofos, sociólogos e críticos literários e também ao ser comparado com o discurso literário. Segundo Stephen Bann (1989), nesse processo de crítica à cientificidade histórica, o marco, e também aquele que conseguiu abalar e definir o fato de que a História não seria uma ciência empírica foi a publicação da Metahistory, de Hyden White em 1973 e diz ainda, que “mesmo um trabalho tão substancial e ambicioso, não poderia ter acarretado uma mudança perceptível  se o terreno já não estivesse revolvendo”, ou seja, as contribuições trazidas por White nada seriam se já não houvesse, anteriormente, um movimento de desmistificação em relação à objetividade histórica.(BANN, 1984, p.88)

A historiografia, aos poucos, foi perdendo sua condição de pensamento autônomo e autolegitimador, as pessoas já não aceitavam passivamente as idéias e problemas trazidos por seus estudiosos. White explicita-nos isso na seguinte passagem: “O que era verdadeiro no século XIX, disse Hitler a Rausching certa ocasião, já não é verdadeiro no século XX”. Nasceu, então, a relatividade da verdade histórica, os estudiosos começaram a perceber o caráter condicional dos fatos – a relatividade é a negação do caráter absoluto das coisas – trazidos pelos historiadores e iniciaram principalmente a criação de um senso crítico, que lhes impedia de aceitar qualquer notícia ou fato histórico como possuidor de uma única verdade. (WHITE, 1994, p. 50)

Os críticos da literatura, os cientistas, sabem e afirmam que a ficcionalidade é um dos elementos mais recorrentes na discursividade histórica, o próprio Hayden White é testemunho de que os historiadores, hoje, aceitam a carga ficcional dos estudos historiográficos:

As narrativas históricas (…) são: ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos, cujas formas têm mais em comum com seus equivalentes na literatura do que com seus correspondentes nas ciências. (WHITE, 1994, p. 98)

Os estudos históricos estão ordenados como pertencentes a uma categoria de escrita classificada por Hayden White (1994) como “escrita discursiva” e é recorrente nela a presença do elemento ficcional. Os historiadores ao fazerem suas pesquisas, não lidam com “fatos completos” e sim com fragmentos, para acoplá-los a fim de formar um todo significativo eles têm de “inventar” parte dos fatos, têm de combinar e criar fontes plausíveis entre eles para que obtenham sentido.

Georges Duby (1994) também assume essa dimensão subjetiva da historiografia em seu discurso investigativo e em sua reflexão sobre a prática do historiador, ao dizer que encontra vestígios ao estudar documentos e que não sabe a extensão desses vestígios, nem onde começam ou terminam e que por isso, há um vazio entre eles, uma intersecção onde a imaginação pode e deve intervir, a partir desse momento ele intervém preenchendo as lacunas que faltam, com o auxílio do conhecimento que já possui – demonstrando uso de uma imaginação criativa e construtiva. Ao admitir que a subjetividade está, também, presente no discurso histórico, Duby nos mostra que tal discurso,  como qualquer outro em que se encontra a ficcionalidade como constituinte, pode utilizar a subjetividade para construir seus textos.

A narrativa histórica é construída a partir de dois elementos importantíssimos: os elementos descritos nas narrativas e o tipo de enredo que o historiador escolheu para conferir sentido a seu texto. Este, na função de contador de história, pode “silenciar, excluir e eliminar os acontecimentos” do passado, exatamente como os escritores. “Um elemento que nunca pode faltar em nenhum texto histórico ou literário é o elemento ficcional”. (HUTCHEON, 1991, p. 143) Vale ressaltar que, segundo Luis Costa Lima (1989), a associação entre a História e a narrativa não pôde acontecer enquanto o modelo de cientificismo fascinou as ciências sociais nascentes e o positivismo, “com sua exaltação do científico, continuou a tranqüilizar as tesas sérias dos historiadores.” (LIMA, 1989, p. 17)

Esse traço da narratividade se faz presente nos discursos historiográfico literário. Sendo assim, na contemporaneidade a Literatura e a História não podem ser julgadas como verdadeira ou falsa, não há como fazer um juízo de valor quanto a elas. Na verdade, as duas não são verdadeiras nem falsas, e é exatamente esse valor que traz o traço ficcional presente em cada uma delas.

O que diferencia um historiador de um autor de romances é a liberdade de criação – a literatura é muito mais livre para inventar –, um estudioso de história quando inventa alguma parte do discurso, é obrigado a insinuar sua criação, o escritor de romances quando escreve pode criar e recriar algum texto sem obrigação de explicar para alguém o que inventou, a essência da sua escrita é realmente a imaginação, a criação de mundos e de histórias diferentes das convencionadas por historiadores ou quaisquer outras pessoas.

Pode-se aproximar o discurso do historiador, com o do escritor do romance de temática histórica, pois da mesma forma que aquele utiliza vestígios de documentos e os organiza a partir de seu ponto de vista para formar seu discurso histórico, o escritor também vai em busca de documentos, para criar a sua versão dessa História, ele pode também reescrever um discurso histórico, para mostrar o seu ponto de vista divergente em relação a esse discurso “histórico-documental”, em relação a História dita como oficial.

Não há como negar que, tanto nos textos dos historiadores quanto no dos escritores, observa-se a intertextualidade como produtividade constante para a confecção discursiva. O estudioso da História se baseia em fatos, documentos, em discursos de outros historiadores para construir seu texto. Já o escritor se baseia em vários textos que já leu, no discurso histórico que pesquisou; o texto literário não segue nenhum modelo. Ambas as escritas estão repletas de “textos onde se lê, pelo menos”, um outro texto. (KRISTEVA, 1974, p. 62)

O romance de temática histórica é citado por Duby, que o classificou como um romance repleto de atributos da história, no qual ele viu o seu ofício travestido, juntamente com uma liberdade maior de criação, ou seja, ao ler um romance de feição histórica e ver que ele utilizava fatos/ eventos reais do passado para se basear, mas, ao longo de sua história, misturava esses fatos reais a fatos fantásticos e a própria História em que ele se baseou, houve liberdade para modificá-la.

O escritor tem a liberdade de “colocar o seu ponto de vista” na história, naquele fato que está tratando e de inventar o que ele supõe que falta, sem ter responsabilidade alguma com a verdade dos fatos. O autor reconhece que a História só existe através do discurso, e por esse motivo, ela é arte e uma arte literária, mas uma arte literária em que o historiador deve criar sua história, através de bases que não sejam oscilantes, ou seja, o discurso histórico exige uma objetividade mínima: aconteceu! É uma tentaiva presente de leitura do passado.

Júlia Kristeva (1974) fala em seu texto sobre a maneira como o escritor pode se inserir em um discurso histórico, como ele pode se valer de fatos históricos para construir sua obra, e para ela:

A única maneira que tem o escritor de participar da história vem a ser, então, a transgressão dessa abstração através do fato de que lemos algo, o relemos e o reinventamos, isto é, através de uma prática de uma estrutura significante em função de, ou em oposição a uma outra estrutura. (KRISTEVA, 1974, p. 63)

Kristeva marca bem a idéia de reconstrução do texto histórico por parte dos romancistas, há uma (re) leitura e (re) interpretação deste, ou até mesmo utilização de tal texto na forma mais íntegra possível só acrescentando mais elementos ficcionais que, na visão do escritor, o complemente. A literatura funciona como um duplo, ela dialoga com o texto histórico, para fazer dele uma produção totalmente nova.

No romance de caráter histórico, há um discurso carnavalesco, na medida em que se observa a quebra de todas as convenções e o rigor que os historiadores utilizam para produzir seus textos. Nesta forma de escrita, a realidade é apresentada de forma que todos participem dela, todos devem estar no mesmo patamar de importância, por isso, esse tipo de obra é uma forma de contestação social e política – que pode ser feita de maneira irônica, não são aceitas ordens ou convenções, não há alguém mais correto que os outros.

Em contraste com o romance histórico do século XIX, Linda Hutcheon cria uma nova definição para as narrativas de tema histórico, pois para ela o mais apropriado é o termo Metaficção Historiográfica. A metaficcção nasce da junção da literatura e da História, consistindo no ato de repensar o fato histórico e buscar um novo sentido à História anteriormente conhecida.

Linda Hutcheon (1991) afirma que:

A interação do historiográfico com o metaficcional coloca igualmente em evidência a rejeição das pretensões de representação “autêntica” e cópia “inautêntica”, e o próprio sentido da originalidade artística é contestado com tanto vigor quanto a transparência da referencialidade histórica. (HUTCHEON, 1991, p. 144)

A metaficção historiográfica nada mais é que a junção destes três elementos: História, ficção e intertextualidade, a fim de criar uma nova forma de narrativa literária que questione valores, pense por si própria e não busque uma verdade, mas mostre todas as outras como possibilidade de existir.

A metaficção historiográfica tem hoje muitos adeptos no terreno da prosa literária e é muito valorizada principalmente por questionar idéias e valores nunca antes contestados, citarei dois tipos de metaficções historiográficas modernas que já se tornaram clássicas: Memorial do convento de José Saramago e As Naus de António Lobo Antunes. Hoje, as pessoas notam que os fatos e a História não foram exatamente como antes nos haviam contado, pode-se vislumbrar a história pelo nosso próprio ponto-de-vista, estabelecer nossos próprios juízos de valor e ver que cada obra histórica, de modo semelhante à metaficção historiográfica, “apenas se soma ao número de textos possíveis que têm de ser interpretados se quiser traçar fielmente um retrato completo (…) de um determinado meio histórico”. (WHITE, 1994, p. 106)

Os textos da metaficção historiográfica recorrem em suas construções às metáforas e, ao utilizá-las, a intenção dos autores é nos fazer ver e repensar os fatos de forma crítica, de maneira a fazer que o leitor vislumbre através das entrelinhas do texto e use o elemento crítico que lhe é inerente para poder julgar os fatos.

A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS, O ROMANCE PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO E JOSÉ SARAMAGO

A Revolução dos Cravos foi um grande momento histórico-cultural para Portugal, na medida em que este se libertou de um regime opressor – o salazarista –, que obrigava todos a se submeterem a uma política subversiva, principalmente, porque neste regime ditatorial o Estado e a Igreja – duas entidades caracteristicamente dominadoras – se uniram para controlar todas as esferas da vida portuguesa.

Este período em que se identifica o salazarismo português foi altamente marcado pela repressão e pela censura. Em relação aos pensadores, filósofos e escritores, não era tolerado nenhum tipo de oposição ao regime estabelecido no poder. Isso alimentou, década após década, o descontentamento de grande parte da população portuguesa com o governo, descontentamento esse que desencadeou um movimento rebelde e contrário ao salazarismo, que alcançou seu clímax no dia 25 de Abril de 1974.

Dia esse no qual houve uma Revolução, que nasceu inicialmente entre os militares, descontentes com o regime em vigor. Nesta revolução, buscava-se a libertação do antigo regime com a possibilidade de mudança político-econômica e em relação à censura que era o principal órgão a impedir a livre circulação de idéias pelo país. Dentro deste contexto, a literatura, altamente reprimida durante todo o período salazarista, luta para ter liberdade, mesmo considerando que, antes mesmo da Revolução, os autores lusitanos já escreviam contra o regime de forma metafórica para obterem a concessão de circulação de seus livros. A liberdade buscada pela Revolução dos cravos é aquela em que os escritores pudessem se expressar sob seu ponto de vista, sem ter medo da censura ou de qualquer mecanismo de repressão ao qual poderiam ser submetidos. Por causa da censura, os textos eram muito mais plurissignificativos e sugestivos, para que os leitores conseguissem construir a sua própria interpretação das obras.

Após a Revolução dos Cravos e a queda das amarras antes impostas pelo sistema opressor, os escritores portugueses se empenharam em busca de uma revolução na escrita, que proporcionasse aos artistas demonstrar e discutir todos os erros e acertos da sociedade portuguesa pós-revolução.

Em relação à importância da Revolução dos Cravos de 1974 para a população portuguesa e, principalmente, para as produções artísticas de Portugal, Gerson Roani (2006) postula:

O 25 de abril transformou a vida de todos os portugueses, modificando as instituições sociais e, sobretudo, influenciando o âmbito artístico lusitano. A abordagem da produção literária portuguesa desses últimos 25 anos não pode prescindir de sondar o modo como esse acontecimento histórico influenciou a atividade escritural dos autores de Portugal contemporâneo. Essa sondagem mostra-se instigante, no caso da ficção portuguesa contemporânea, pois pode ser demonstrada uma estreita vinculação das alterações sociais com a renovação do próprio percurso artístico dos escritores portugueses anteriores e subseqüentes a 1974. (ROANI, 2006, p. 23 – 24)

Após o 25 de Abril, houve uma reflexão mais ampla em relação à identidade portuguesa e sobre o que os portugueses viveram sob os 50 anos de salazarismo. Isso, obviamente, se refletiu na literatura, nestes “espíritos” privilegiados, criativos em processo de amadurecimento das idéias, que são os escritores.

As grandes obras literárias de Portugal surgiram certo tempo depois da Revolução, elas nasceram com um olhar mais distanciado, crítico e amadurecido em relação às transformações ocorridas após tal acontecimento, não há um olhar exaltador e sim um olhar crítico, impiedoso (às vezes) em relação às lacunas e vazios trazidos pela Revolução. Não são os acontecimentos pós 74 e pós ditadura suficientes para mudar a trajetória de alguns autores, na verdade muitos deles já antecediam a Revolução.

A nova escrita que surgiu na seqüência a esse acontecimento, não é mais velada, nem com a carga metafórica e temática anterior, – já que não havia mais nenhum mecanismo repressor das idéias – o que surgiu foi uma literatura libertadora, com a possibilidade de questionar as coisas. Encontraremos obras marcadas pelas discussões acerca da identidade portuguesa, o que fez surgir um novo foco de discussões.

A literatura constatou certa falência em relação à História O percurso trilhado pela ficção portuguesa posterior a 1974, é também, nem sempre isento de indecisões, das tentativas de instaurar estratégias de representação literária adequadas a certa e inevitável confrontação com a História, isso fez com que houvesse um constante diálogo entre elas.

A narrativa buscou se opor aos fatos históricos, aos acontecimentos e fez isso na medida em que desmentia o que a História antes havia postulado como o correto e definitivo. E nos perguntamos por que é que a ficção buscou desmentir a História? Uma resposta plausível e aceitável, a qual António Apolinário Lourenço (1991) se refere, consiste no fato de que as pessoas começaram a perceber que a História oficial disseminada pela ditadura era passível de uma dura desconstrução.  O fato histórico passa por meio de mãos e interpretações humanas, que por si só já se caracterizam por serem subjetivas, “aquilo que hoje é interpretado de uma determinada maneira, pode amanhã ser entendido de forma radicalmente distinta.” Então, a História portuguesa também sofreu esse processo ficcionalizador por parte de seus historiadores, era hora de se buscar uma verdade mais condizente com a realidade daquele país e que explicasse, de certa forma, todo aquele tempo ao qual os portugueses se subordinaram ao regime salazarista. (LOURENÇO, 1991, p. 71)

No caso de Saramago, sua ficção impregnou as obras de uma recriação social dos costumes, figuras, eventos, acontecimentos e principalmente as mentalidades – maneira de pensar e agir do ser humano. Com a retomada da História surgiram romances que fingiam o real da experiência passada, para discutí-la dentro da sociedade numa perspectiva contemporânea. A narrativa de Saramago chama para si os estudos históricos, só que por um ângulo ficcional e questionador. O que foi feito foi a partir das possibilidades que o texto de ficção tem de fingir ou de criar uma maneira de lidar com o tempo. Há uma discussão e questionamentos acerca de determinado período histórico e suas reflexões na época presente. E em relação a esse fato, Álvaro Cardoso Gomes (1993) postula:

Saramago é o que abraça de maneira mais evidente uma arte compromissada, ou ainda, um romancista que acredita que o romance seja um instrumento de resgate das classes desfavorecidas e um instrumento de denúncia dos desmandos dos poderosos. Por isso, sua escrita é peculiar, por inventar um narrador fortemente comprometido com uma ideologia, que, na maioria das vezes, mais do que apresentar os fatos, procura comentá-los, de modo a investir criticamente na realidade. (GOMES, 1993,p. 34)

As obras saramaguianas pós-74 passaram a ser particularmente “significativas enquanto veiculadoras de sentidos ideológicos”. Ideológicos na medida em que o discurso é portador de sentidos que podem ser lidos histórica e socialmente. (REIS, 2005, p. 93)

Nas obras de José Saramago, a presença de cenários bem caracterizados, expressa “eventos, personagens e lugares históricos que sobem à superfície do universo da ficção com inesperada naturalidade”, postulando a necessidade de repensar esses eventos, personagens e lugares “à luz de uma nova realidade histórica”. Não se pode esquecer uma característica que está presente em suas ficções que é o fato de ele focalizar os fenômenos sociais, observando e mostrando, principalmente, os oprimidos, reiterando-os como agentes da História e, muitas vezes, criticando esses fenômenos sociais de cada época. Isso se comprova pelo fato de que em suas obras observa-se uma apurada reflexão sobre as “questões cruciais” do povo e da sociedade por ele retratados. (REIS, 2005, p. 93)

No romance saramaguiano, “História e ficção acabam por se situar num mesmo plano, já que a verdade daquela pode ser tão ilusória quanto verdadeira poderá ser a ilusão desta.” (REBELO, 1993, p. 33).

De acordo com Carlos Reis (2005), Saramago vale-se de elementos como a ironia, a paródia e o sarcasmo para reinterpretar as figuras e os episódios de um passado nunca antes questionado e de realidades e situações também nunca antes mostradas, talvez por causa da repressão ou ainda porque as pessoas já se acostumaram com certas situações que até hoje são vistas como normais, como a exploração dos mais pobres. Ele mostra a sua versão da História, critica as repressões, explorações, e questiona o autoritarismo de instituições como a Igreja, o Estado, a Nobreza e, além disso, reescreve sobre o ponto de vista daqueles que nunca tiveram o direito de questioná-la, de que nunca figuraram nela, os pobres.

De acordo com Tereza Cristina Cerdeira da Silva (1989): “O caminho (…) de José Saramago é exactamente esse: o de duvidar dos monumentos tradicionalmente aceitos e de ir buscar outras marcas deixadas pelo homem na sua caminhada.”  (SILVA, 1989, p. 32)

O MEMORIAL DO CONVENTO

Quando digo corrigir, corrigir a história, não é no sentido de corrigir os fatos da história,
pois essa nunca poderia ser a tarefa do romancista, mas sim de introduzir nela pequenos cartuchos
que façam explodir o que até então parecia indiscutível: por outras palavras,
substituir o que foi pelo que poderia ter sido.
(José Saramago, História e ficção)

Para a construção de Memorial do convento, foi necessário que Saramago estudasse as bases históricas e a partir das lacunas deixadas por elas, as preenchesse com a sua versão dessa História. Podemos notar o romance deste autor como questionador, na medida em que não aceita as imposições feitas pelos historiadores em relação a uma verdade una na História oficial portuguesa. Ele vislumbra que, até mesmo, o discurso histórico tem sua parcela de subjetividade e busca (re) criar o passado a partir de sua própria visão acerca da História.Dessa maneira, “entra aí o novo olhar do ficcionista que se quer historiador de uma nova História, pois o Memorial do Convento rebela-se contra a visão de uma história que coloca o rei como sujeito da acção de << erguer >> o convento de Mafra.” (SILVA, 1989, p. 33)

Todo o discurso histórico feito durante o reinado de D. João V visou às camadas mais favorecidas da sociedade – Clero e a Nobreza – na medida em que detinham todas as formas de controle social, de manutenção e manipulação das idéias da época. Assim sendo, quem escreveu essa história a escreveu sobre o ponto de vista dos poderosos e atribuiu a eles todo o mérito da construção do convento de Mafra. José Saramago lançou um olhar questionador sobre essa versão da história, na medida em que acreditou que D. João V não foi capaz de levantar sequer uma pedra para ajudar na construção dessa obra.

O discurso metaficcional do romance, empreende uma discussão sobre a verdadeira importância deste Rei, dos nobres e do clero que o acompanhavam em relação a toda a edificação do convento. O romance privilegiou o processo de construção, valorizando aqueles que estavam realmente trabalhando para satisfazer os desejos do rei: os trabalhadores do povo. O autor contrapõe e se opõe à menção feita pela historiografia oficial portuguesa, segundo a qual D. João V foi o grande construtor do Convento de Mafra.

Em Memorial do Convento a família real e seu drama deixarão de ser o foco privilegiado da narrativa e mesmo da História. Até mesmo a forma como o narrador se refere a estes não nos passa toda a grandeza que possuíam. A família real é apenas figurante de uma História, na qual o povo é o verdadeiro protagonista.

Alguém trabalhou para que o convento surgisse, alguém sofreu, deixou para traz seus familiares, morreu, viveu em péssimas condições de higiene, de alimentação para a construção desse projeto de um Rei extravagante e “megalomaníaco”. Mas quem? Não poderiam ser outros senão os pobres, os oprimidos, as pessoas que perante a alta sociedade não tinham nenhuma função a não ser obedecê-los, trabalhar duramente e não questionar nunca as suas ordens, nota-se tal descaso com estes nas seguintes passagens:

“Nestas grandes barracas de madeira dormem os homens, não comporta cada uma menos de duzentos.” (SARAMAGO, 2007, p. 206)

Fatigosos dias, mal dormidas noites. Por estes barracões repousam os operários, passam de vinte mil, acomodados em beliches toscos, para muitos, em todo caso, melhor cama que nenhuma das suas casas, só a esteira do chão, o dormir vestido, a capa por inteiro agasalho, ao menos, em tempo de frio, se aquecem aqui os corpos uns aos outros. (SARAMAGO, 2007, p. 264)

Homens eram obrigados a dar a vida pela vontade do rei, isso é exemplificado com o que acontece com um operário durante o episódio do carregamento de uma imensa pedra, em que foi necessário que os homens fizessem um esforço “superior ao que promete a força humana para transportar a pedra de mármore até Mafra.” (ORNELAS, 1996, p. 121)

A edificação do convento de Mafra apresenta-se como um modelo de repressão, o qual nada mais é, que a representação da vontade de um rei megalomaníaco, desmedido, que não se importa com nada, nem ninguém para ter o que deseja e para ter a sua vaidade colocada nas pedras do convento. Obviamente, o que lhe coube na construção – além do imenso esforço que fez para construir a maquete da basílica de São Pedro, que se localizava em seus aposentos – foi somente ordená-la, enquanto muitas pessoas trabalharam, perderam a vida para poder satisfazer este seu capricho.

José Saramago se mostra como um autor altamente preocupado com as questões políticas e sociais, mostrando-se simpático às dores e ao sofrimento da humanidade. Sua escrita é marcada pelo fato de que nela as classes sociais oprimidas ganham voz no contexto histórico-social e tem a possibilidade de participar, de forma revisionista, da História da qual foram excluídas, “a inserção das figuras populares no devir da História surge com a dimensão de uma reparação tardia mas ainda necessária.”(REIS, 1986, p. 194)

Memorial do Convento é uma obra, caracteristicamente dialógica, em que ficção e História se entrelaçam a fim de, entre outras coisas, repensar o passado. “O destino das personagens é, então, indissociavel do devir de uma História que a ficção repensa, tanto em função do passado propriamente histórico, como até em função do futuro.” (REIS, 1986, p. 308)

Para Silva (1989), “o fundamento desse << memorial >>: rever o passado para questionar Conceitos de essencial e acessório, de dominante e dominado, que se crêem por vezes absolutos, por força da engrenagem ideológica que os impõem como tais”.( SILVA, 1989, p. 31 – 32)

Na História do Convento, o povo é o grande protagonista, são as pessoas das camadas populares as responsáveis pelo trabalho bruto, muitas vezes forçado, que gerou este edifício; “pelo menos o povo é o mesmo de sempre: trabalhando incansavelmente para sustentar as ordens privilegiadas, pagando com pesadas lágrimas ao mais pequeno sinal de rebeldia, morrendo à míngua um pouco a cada dia.” (LOURENÇO, 1991, p. 74)

Ao chegar para trabalhar na imensa obra, esses trabalhadores foram tratados como servos, vivendo em um tipo de submissão escrava, na qual o Rei “não mede esforços”, para ver sua vontade cumprida, já que para ele esta só não é maior que a do próprio Deus.

Ordeno que a todos os corregedores do reino se mande que reúnam e enviem para Mafra quantos operários se encontrem nas suas jurisdições, (…), retirando-os, ainda que por violência, dos seus mestres, e que sob nenhum pretexto os deixem ficar. (…) “Foram as ordens, vieram os homens. De sua própria vontade alguns.(…) Deitava-se o pregão nas praças, e, sendo escasso o número de voluntários, ia o corregedor pelas ruas, acompanhado dos quadrilheiros, entrava nas casas, empurrava os cancelos dos quintais, saía ao campo a ver onde se escondiam os relapsos, ao fim do dia juntava dez, vinte, trinta homens, e quando eram mais que os carcereiros atavam-nos com cordas, variando o modo, ora presos pela cintura uns dos outros, ora com improvisada pescoceira. (SARAMAGO, 2007,p. 283)

Memorial do Convento é um romance, no qual o autor buscou e conseguiu recriar uma história a partir de seu próprio ponto de vista sobre ela, ele consegue trazer à tona problemas e personagens que haviam sido excluídos da História, através de uma narrativa onde o passado/ presente o Histórico/ ficcional se intersectam para questionar e, de certa forma, modificar a visão do português em geral, sobre o processo de formação da História de seu país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O romance e o romancista lusitano, enfocados neste artigo, representam em sua essência a tendência do romance português contemporâneo, caracterizada por uma ficção lúcida, amparada em bases Histórico-documentais, que se vê, por motivos de força do destino nacional, obrigada a se empenhar em uma (re) visitação de um passado, altamente mitificado, que sufocou a dinâmica do processo histórico do país.

Memorial do Convento é uma obra, na qual o autor conseguiu mostrar seu ponto de vista acerca dessa parte da História portuguesa, de maneira que reabilitou para a História deste país todos os que, realmente, haviam lutado e sofrido para construir o Convento e, consequentemente, a identidade portuguesa. O autor não contemplou nenhum personagem como um único responsável por tal feito, mas pelo contrário, ele fez com que todo o povo, que na trabalhou, fosse tido como o grande construtor do Convento de Mafra.

De acordo com os dados expostos acima, pode-se, então, afirmar que José Saramago acredita que as lacunas que são preenchidas para a construção de um discurso Histórico, podem não só retratar o rico, o belo, mas podem também ser preenchidas de modo com que se chegue o mais perto de uma verdade na qual pobres, feios, sofridos, enfim, os marginalizados pela sociedade possam também ter participado da História de uma nação. Além disso, o escritor tem plena noção de que o historiador escreve a História a partir de documentos, os quais propagam sempre os ideais de uma determinada classe social, o que faz com que tenhamos certa relatividade acerca do passado.

A obra em questão, além de ser instigante dentro da ficção portuguesa contemporânea, também quebra convenções sociais – artísticas – em relação à História de um país e esse fato é que torna este romance ainda mais relevante para a História da literatura contemporânea portuguesa.

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* Este texto é parte do resultado final do projeto de Iniciação Científica intitulado: “De fato, Ficção: História e Intertexto em Memorial do Convento de José Saramago”, orientado pelo Professor Doutor Gerson Luiz Roani.

 

Artigo submetido em 05/08/2009 e aprovado em 24/09/09.