A Ostra e o Vento: o feminino ferido

Maria Cristina de Melo

RESUMO: Nesse artigo, interpretaremos o romance A Ostra e o Vento, de Moacir Lopes, do ponto de vista da psicologia junguiana, enfatizando o processo de individuação da personagem Marcela.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura, Psicologia junguiana, Individuação.

ABSTRACT: In this article, we interpret the novel A Ostra e o Vento, by Moacir Lopes, from the standpoint of Jungian psychology, emphasizing Marcela’s process of individuation.

KEYWORDS: Literature, Jungian Psychology, Individuation.

 

Viver numa ilha é ser uma ilha
…tenho medo de não me alcançar mais.
Moacir Costa Lopes

Propõe-se neste trabalho uma interpretação do romance A Ostra e o Vento, de Moacir Lopes, a partir da perspectiva da psicologia junguiana, a qual oferece conceitos importantes, sobretudo o de individuação, para a compreensão do desenvolvimento psíquico do ser humano. Tal abordagem nos parece oportuna, já que esse romance brasileiro apresenta como tema central o desenvolvimento da personalidade de uma menina que se descobre mulher.

Inicialmente, convém lembrar que Jung considerava a arte, em sua manifestação, uma atividade psicológica, justificando, desse modo, sua relação com a psicologia. No entanto, ele ressaltou que o propósito dessa relação estaria em compreender o sentido suprapessoal da obra de arte, já que a arte elevaria-se, segundo seu pensamento, para além da esfera pessoal do artista.

O psicanalista suíço considerou ainda que há dois tipos de obras de arte: as psicológicas, que tratam de temas cotidianos, paixões e angústias humanas e as visionárias, que nos remetem às imagens primordiais. Além disso, Jung observou que nas obras de arte psicológicas, o autor antecipa a psicologia particular de seus personagens, tornando, portanto, desnecessária uma análise à luz da psicologia. As obras de arte visionárias, ao contrário, escapam à nossa compreensão imediata, já que nos remetem ao inconsciente, sendo, portanto, passíveis de uma análise sob a perspectiva da psicologia. Nesse sentido, nossa leitura de A Ostra e o Vento, de Moacir Costa Lopes, procura demonstrar a relação desse romance com o desenvolvimento psicológico-espiritual do ser humano.

Exporemos, nesse momento, um breve resumo do romance do autor brasileiro, como também alguns conceitos importantes da psicologia junguiana, a fim de tornar clara essa interpretação.

A Ostra e o Vento, considerada a obra-prima de Moacir C. Lopes por muitos críticos literários, leva o leitor ao universo misterioso da psique de Marcela, uma bela menina que vive em uma ilha com o pai, um faroleiro solitário e rancoroso e seu ajudante, não menos solitário, Roberto. A menina crescerá na ilha, tendo como ligação ao continente apenas os marinheiros que, às vezes, aportam por lá. Dentre eles, o sábio Daniel, o qual desempenhará a função de mestre para menina, trazendo-lhe livros e contando a elas todas histórias do continente. A descoberta da sexualidade da menina somadas à sua imaginação e à sua sensibilidade desencadeiam nela a projeção de Saulo. Um misterioso homem que só vive na imaginação de Marcela, por ela e para ela. A partir do aparecimento de Saulo, forças poderosas eclodem em Marcela, culminando na sua total identificação com a ilha.

Nesse romance há, segundo o crítico literário norte-americano Michael Fody, um tanto de panteísmo, já que Marcela integra-se à natureza, criando a partir de seus elementos: Saulo, sua contraparte masculina. Todo o universo da menina restringe-se à ilha, às begônias que planta, ao mar, ao vento, aos pássaros. Marcela projeta-se na ilha, sua eterna prisão: ” A Ilha se chama Marcela, esse mundo encadeado de mar se chama Marcela. Marcela!” (LOPES, 2000, p.60). é, possível, identificar num nível simbólico dessa relação entre Marcela e a natureza, os processos psíquicos pelos quais a jovem passa, culminando na total dissolução de sua individualidade, como veremos adiante.

Cumpre agora explicitar alguns conceitos da psicologia analítica, para posteriormente relacioná-los à história de Marcela. Jung descreveu oprincipius individuationis, como sendo o processo no qual há um desenvolvimento da personalidade, em que a pessoa torna-se inteira, indivisível, mantendo a relação com o coletivo. Essa relação merece atenção particular, já que, segundo Jung, a individuação não se dá em isolamento: “A individuação não exclui o mundo, mas aproxima o mundo para o indivíduo.” (JUNG apud SAMUEL, 2003, s/p)[1]. Ainda de acordo com ele, através desse processo, o indivíduo mantém um diálogo entre o consciente e o inconsciente. Em outras palavras, entre oself, centro da personalidade inconsciente e o ego, centro da personalidade consciente. Apesar desse processo variar de pessoa para pessoa, Jung descreveu algumas de suas etapas: o indivíduo deve despir-se da persona, uma espécie de máscara social e tomar contato com a sombra, aspectos negativos e potenciais da personalidade reprimidos em nosso inconsciente. Feito isso, o indivíduo, no caso dos homens, encontra-se com a Anima, personificação de aspectos psicológicos femininos na psique do homem ou, no caso das mulheres, com o Animus, aspectos psicológicos masculinos na psique da mulher.

Parece-nos interessante, nesse ponto, refletir um pouco mais sobre a definição de Anima e Animus, já que tais imagens arquetípicas funcionariam como “guias” do indivíduo no seu processo de desenvolvimento interior. Essas imagens, de acordo com Jung, personificariam tendências psicológicas femininas, Anima e tendências psicológicas masculinas, Animus, na psique. No entanto, é preciso esclarecer que essas tendências relacionam-se à cultura, na qual, o indivíduo está inserido. Tais capacidades arquetípicas da psique seriam aquilo que o homem e a mulher desconhecem em si mesmos, sendo, portanto inconscientes. Como sugere o psicanalista junguiano Samuel, devemos pensar em termos de diferença e de alteridade. E, não em termos de gênero e sexo. (SAMUEL, 1989, p. 264).

No caso específico de Marcela, há por parte da menina, uma consciência de um ego/feminino: “desejou que alguém mais que Daniel e José, seu pai, a visse, quase mulher.” (LOPES, 2000, p.38). Diante disso, pode-se inferir que o Animus estaria num nível inconsciente e a Anima, no nível consciente. Disso resultou, a projeção de sua contraparte masculina: Saulo, que simboliza o Animus. Por outro lado, é importante frisar que não se pretende discutir aqui as questões culturais relativas à compreensão da personagem acerca do feminino e do masculino. Podemos, no entanto, dizer que para Marcela a percepção de sua feminilidade está vinculada à descoberta do corpo:

Agora, que já não brinca com bonecas, seus dedos acariciam os pequeninos seios e, subitamente, descobre seu corpo. Sim, possui um corpo, seus dedos atestam, como se a função dos dedos fosse a de descobrir partes do que corpo que dormia como uma boneca no canto do quarto. (LOPES, 2000, p. 44)

Como podemos perceber, no trecho acima, Marcela descobre-se um ser dotada de sexualidade a partir da descoberta de seu corpo, do prazer em tocá-lo. Diante do exposto, gostaríamos de esclarecer dois pontos:

  • i. Ao relacionarmos o feminino à Marcela, o fazemos em função da auto-consciência da personagem como um ser pertencente ao gênero feminino.
  • ii. A concepção de feminino e masculino por parte do indivíduo é culturalmente determinada.

Em nossa interpretação, portanto, basta-nos apenas ter em mente que o desenvolvimento psíquico de Marcela, sua individuação, está vinculado ao equilíbrio entre a Anima, que poderíamos entender como passividade, emoção, submissão e Animus, interesse ativo, asserção, intelecto. Acrescenta-se ainda que tais tendências psicológicas estão presentes na psique humana, independente de questões de gênero e sexo. (SAMUEL, 1989, p. 264)

Dito isso, passaremos, a partir desse momento, a analisar o desenvolvimento psíquico de Marcela. Como dito anteriormente, a personagem integra-se à natureza, por isso, torna-se importante desvelar alguns aspectos de sua projeção nos elementos que a circundam.

Nesse ponto, convém lembrar uma imagem criada por Jung para descrever o inconsciente: “Enquanto o não-ego (inconsciente) parece oposto a nós, naturalmente o sentimos como um oposto, mas depois entenderemos que o inconsciente coletivo é como um vasto oceano, com o ego flutuando sobre ele como um pequeno barco.” (JUNG, 1976 apud GORRESIO)[2]. Essa imagem torna-se interessante, no nosso contexto, porque Marcela, a Anima, encontra-se na ilha, que poderia simbolizar o self, centro da personalidade inconsciente, cercada por um vasto oceano, o inconsciente. Como já mencionamos, o processo de individuação resulta num diálogo entre o ego> e o self. Haveria um barco para Marcela, através do qual ela poderia realizar esse diálogo? Ou menina estaria identificada demais com a ilha? Para tentar responder a essas perguntas, descreveremos, agora, como se dá a relação Marcela – natureza.

Marcela, ao longo do texto, é descrita como sendo a própria ilha, opondo-se ao continente. Esse, por sua vez, representa o espaço, desconhecido para menina, no qual se encontra o outro. O continente representa, pode-se dizer, o espaço da socialização, no qual Marcela teria oportunidade de experimentar a persona e, também de projetar sua sombra. No entanto, ela se encontra isolada na ilha, “encadeada pelo mar”, não tendo oportunidade de, através da alteridade, voltar-se para si mesma.

Outro elemento importante na história é o mar. Ele, ao mesmo tempo, é a prisão de Marcela, separando-a do continente, como também a ponte entre ela e o mundo lá fora, já que é pelo mar que virão os marinheiros e, principalmente Daniel, com suas histórias sobre os homens e mulheres que tanto interessam a menina. é, no mar, ainda que ela vê Saulo pela primeira vez, sua contraparte masculina, que poderia ser sua libertação. Mas, que, pelo contrário, será sua perdição, como veremos mais adiante.

Além da tríade ilha-mar-continente, cumpre destacar a imagem da ostra e do vento, que deram, inclusive, título ao livro. Uma das sugestões que a imagem da ostra nos traz é a pérola, mas para que essa seja formada é necessário que um corpo estranho adentre interior da ostra. No caso de Marcela (ostra), a abertura resultará em sua morte, como esse trecho do livro sugere:

…Segurou com a mão direita a ponta da faca e forçou-a nas arestas da concha de uma ostra. Só então reparou na resistência para manter-se fechada, e parecia morrer no instante em que sua vida interior era desvendada…Enfim, abriu uma concha, examinou-a e arrependeu-se de tê-la aberto.Comprimiu-a entre as mãos, tentando fechá-la a outra vez, mas quando a largou na areia ela tornou a abrir-se. Estava morta a ostra e não mais necessitava abrigar-se na concha, não tinha razão de fechar-se. Fora desvendada e por isso morrera. (LOPES, 2000. p. 62)

Como lemos acima, Marcela é como a ostra e, por isso, oferece resistência a elementos estranhos a si. Cairá, como veremos adiante, numa espécie de projeção do Animus, que poderia libertá-la e levá-la a um outro estágio do desenvolvimento psíquico. Mas, como a ostra, ela resistirá , acabando por se misturar a ilha, o que equivaleria, pode-se dizer a uma morte.

O vento, por sua vez, de acordo Michael Fody, é o catalisador da personalidade de Saulo:

Tal é a ânsia de Saulo por mim e de mim, que o vejo em tudo na ilha… No toque dos sinos que o vento provoca nas fendas dos picos ele me completa de sons que se materializam como se me beijassem os ouvidos, a boca os olhos, os seios e os cabelos, então sinto vontade de abrir-me ao vento e deixar que Saulo penetre inteiramente em mim. (LOPES, 2000, p.122)

Depois de termos analisado o universo “físico” de Marcela, no qual foi possível vislumbrar alguns aspectos de seu desenvolvimento psíquico, exporemos agora as relações da menina com os outros habitantes da ilha: seu Pai, José; o velho sábio, Daniel e Saulo.

José: O Pai

José, o faroleiro, é um homem solitário e rancoroso. Mudou-se para ilha, depois de ter sido traído pela esposa, trazendo consigo a filha. Com o amadurecimento de Marcela, sua transformação em mulher, José projetará nela sua sombra: o ódio e o desejo que sente por sua esposa Joana. Reprimirá na menina, então, qualquer manifestação de sua sexualidade, desconfiando de tudo que se aproxime dela, vigiando seus passos: “Você não deve afastar-se na ilha Marcela. Quero você na casa-grande logo que escureça!” (LOPES, 2000, p. 41).

Daniel tenta alertá-lo do mal que faz a si mesmo e, também à sua filha, mantendo-se isolado na ilha. No entanto, José torna-se cada vez mais distante e fixado em Marcela, já moça, que é, para ele, a própria encarnação da imagem de sua esposa:

Ela é culpada, ela sabe, ela domina a ilha. Ela e alguém com ela. Que alguém? Pensava estar acostumado, mas desde aquela noite… Marcela com febre, o corpo inteiro febril, o corpo inteiro…o mesmo corpo de Joana, o mesmo contorno quando se enroscava no seu. Marcela estava estendida, o corpo livre por baixo do lençol, o contorno dos seios, mesmos seios, mesma languidez de Joana quando buscava o seu. (LOPES, 2000, p. 79).

Como vemos no trecho supracitado, José, fixado na imagem da mulher, confunde mãe e filha, tornando sua relação com Marcela cada vez mais difícil, distanciando-se cada vez mais dela, isolando-se ainda mais no seu silêncio.

Daniel: o velho sábio

Daniel, um velho marinheiro amigo de José, segundo Michael Fody, representa o arquétipo do velho sábio. Esse arquétipo também chamado de personalidade mana é a personificação de uma força avassaladora, que surge quando ego confronta-se com o self, servindo de guia ou de orientador. Daniel encaixa-se nesse perfil, já que ele é o homem sábio que tentará orientar Marcela e também, o velho José. Ele traz, constantemente, para a menina, livros, histórias e objetos do continente. Ele a ensinará a ler e a escrever e a alertará para os perigos de se viver numa ilha:

Terá ensinado demais a Marcela? Lá estão, agora, os dois sentados no morro do Pensador, para trás alguns anos, ela terá para dez anos, o livro, o lápis, caderno, começou o bê-a- bá….Escreva sozinha: o continente é todo o mundo de lá. E também: a ilha é um mundo completo. Nove anos, dez, doze, quinze, ainda estão lá sentados, pela manhã e à tarde. Marcela, o pintor ao criar a vida em cores, ou o músico ao compor um mundo de sons, estão nesse momento possuídos de uma angústia. Pois é essa angústia o que importa em nós, e é o que somos num momento de desespero, que nos dá grandeza ou nos destrói. Terá ensinado demais? Viver numa ilha, Marcela, é ser uma ilha.” Tenha bastante cuidado com os sons, com as cores, com as luzes. Chega um instante em que tudo isso gritará dentro da gente. Aqui a vida é concentrada, nunca nos dispersamos, e precisamos ser fortes para nos suportarmos a nós mesmos. (LOPES, 2000, p. 22)

Como notamos, o velho Daniel é uma figura sempre em trânsito do continente à ilha, não se fixando na ilha (self), pois, sabe do perigo que isso representa. Ele tenta alertar Marcela para os perigos de uma identificação com a ilha. Mostra a ela que a angústia é necessária, não podendo ser reprimida. No entanto, Marcela sonha em viver a noite da “desangústia”, o que, fatalmente levará a sua destruição. Nesse ponto, convém lembrar que Jung considerava a angústia positiva, na medida em que chama atenção para um estado indesejável de coisas.

O encontro de Saulo, Animus e Marcela, a Anima

Uma das mais belas passagens de A ostra e o Vento é a descoberta de Marcela de sua própria sexualidade. No entanto, é a partir daí que Saulo surgirá em sua vida, levando-a ao devaneio e ao completo distanciamento de si mesma. Inicialmente, Marcela vive às voltas com seus livros, imaginando o continente, plantando begônias por toda a ilha. No momento em que nasce uma flor, Marcela descobre seu corpo e a vida da menina ganha um novo significado, como vemos:

Agora é um corpo, e é o seu, mas a flor é uma flor, pendente de um galho, natureza de flor, e quando tocada por seus dedos parece animada por movimentos próprios, adquire o calor do seu corpo. Uma folha é menos que uma folha, quando desprendida de uma árvore, mas quando seus dedos a acariciam transmitem-lhe o sopro da vida. Recorda quando brincava com as bonecas, uma simples bruxa de pano preto adquiria vida, movimentos, respirava e andava, sorria e chorava quando desejada ou rejeitada, dormia quando pousada nos trapos e acordava quando seus dedos a tocavam.
Agora, que já não brinca com bonecas, seus dedos acariciam os pequeninos seios e, subitamente, descobre seu corpo. Sim, possui um corpo, seus dedos o atestam, como se a função dos dedos fosse a de descobrir partes do corpo que dormia como uma boneca no canto de um quarto. As mãos, os dedos! Que outras partes descobrirão e animarão com seu contato? Que outras coisas inanimadas passarão a ter vida através deles? Bom descobrir que possui um corpo. (LOPES, 2000, p. 44)

A partir daí, Marcela buscará o encontro com outro corpo, sua sensibilidade está aguçada e sua sexualidade despertada. Segundo o junguiano Samuels, “a sexualidade do oposto implica na psicologia do oposto; a sexualidade é uma metáfora para isso… Por isso, a anima e o animus são personificados com facilidade, tomando a forma de uma figura imaginária.” (SAMUEL, 1989, p. 253). No caso de Marcela, haverá uma projeção do animus, que ganhará para ela contornos de “realidade”, como podemos observar no trecho:

Oh! Barco pairou ao largo. Por quê? O homem agora sem movimento, de pé na proa, voltado para a ilha. Levou o braço à frente do corpo, a mão fechada, dedo polegar erguido, homem do tamanho do dedo. Quem seria por estas paragens? Cuidado! Poderá ser arrastado pela corrente para cima das pedras. Quem seria? De que longes vem? De que mares e que mundos? Parece que nasceu de seus dedos, quando estendeu ao mar. No entanto ali está, parado, olhando para a ilha. Que poderes de seus dedos para inventarem barco e homem? Tão real como seu corpo, agora, aqui, muito embora parado na proa, apoiando-se ao mastro com a mão direita, o outro braço pendido ao longo do corpo. Se desembarcasse na praia que falas trocariam, que esperaria que ele dissesse, contasse? Ririam juntos e tocaria em seu corpo para convencer-se de ele existia além de seus dedos, ou deles receberia movimentos, seria animado por eles. Ou os dedos do homem teriam poderes e desfaleceria ao seu contato. (LOPES, 2000, p. 45).

Observamos, no trecho acima, o primeiro encontro de Saulo e Marcela. A partir daí, Marcela terá outros encontros com ele, será possuída por ele, cuidando, inicialmente, para que seu pai e Roberto não tomem conhecimento dessa presença estranha na ilha. Mas, posteriormente, totalmente entregue a seu devaneio, não se preocupará em esconder seu “amante” dos olhos do pai:

… espero Saulo desembarcar, e lá nos trancamos para fugir à sua vigilância, mas logo escutamos passos em volta. Pai sofre porque não pode lutar contra ele. Não me importa o que ele sinta ou sofra. Nem cuido mais que uma dia ele testemunhe nossa posse. Saulo é a importância desta ilha. Pai não me impedirá. Que continue se arrastando pela ilha, resmungando ao vento, chorando. (LOPES, 2000, p. 97)

O devaneio de Marcela e a obsessão de seu pai José resulta na morte de todos os habitantes da ilha. Em uma noite, o faroleiro, totalmente perturbado, ouve gritos de socorro no mar. Ele e Roberto entram no mar para resgatar essas pessoas e acabam desaparecendo mar adentro. Marcela, por sua vez, sentindo-se livre e induzida por Saulo, apaga o farol. Mas, logo se arrepende de tê-lo feito, tenta livrar-se de Saulo, voltar atrás, reconciliar-se com o pai. No entanto, é tarde, não há como voltar atrás. Saulo, então, alerta Marcela: “Não, Marcela. Não! é preciso reintegrar-me em você, ou seremos ambos destruídos. Não resistiremos isoladamente. Você não pode abandonar-me, agora. Não fuja! Não nos destrua, Marcela!” (LOPES, 2000, p. 146).

O encontro de Marcela com o Animus, aspectos masculinos de sua psique, permitiria a ela sair da ilha. Como nos contos de fada, no qual o príncipe une-se à princesa, completando simbolicamente o processo de individuação. No entanto, como observa-se no trecho acima, Marcela fecha-se, foge de Saulo, identificando-se com a ilha, desaparecendo no mar à procura de José e Roberto. Há, portanto, uma total dissolução de sua personalidade, frustrando o seu percurso de desenvolvimento interior.

Por fim, nessa interpretação[3] da obra literária “A Ostra e o Vento”, orientada pela perspectiva da psicologia junguiana, procurou-se evidenciar o anseio da humanidade pelo desenvolvimento pleno da personalidade. Processo que, interrompido — como no caso de Marcela —, resultou em sua completa dissolução, impossibilitando sua transformação interior e a vivência plena de sua individualidade.

Referências

FODY, III, Michael. Prefácio à 2 edição de A Ostra e o Vento. Rio de Janeiro: Quartet, 2000.

GORRESIO, Zilda Marengo Piacenti. A concepção de Psyché em Jung e no Romantismo Alemão. Disponível em: <http://www.rubedo.psc.br/artigos/visaopsi.htm>. Acesso em: Maio, 2011.

JUNG, Carl Gustav. O Espírito na Arte e na Ciência. Petrópolis: Vozes, 1985.

LOPES, Moacir Costa. A Ostra e o Vento. Rio de Janeiro: Quartet, 2000.

SAMUEL, Andrew. Jung e os pós Junguianos. Rio de Janeiro: Imago, 1989.

SAMUEL, Andrew; SHORTER, Bani; PLAUT, Fred. Dicionário crítico de análise junguiana. Disponível em: <http://www.rubedo.psc.br>. Acesso em: Maio 2011.

 

[1] In: Dicionário Crítico de Análise Junguiana. Edição Eletrônica 2003 Andrew Samuels/Rubedo. Disponível em: <http://www.rubedo.psc.br/abertura.htm>.

[2] In: Revista Rubedo. Versão Eletrônica. Disponível em: <http://www.rubedo.psc.br/artigos/visaopsi:htm>.

[3] Esse trabalho é parte da pesquisa PIBIC Literatura e Espiritualidade, orientada pela professora Dra. Teresinha Zimbrão, que se propõe a estudar as relações entre o Sagrado e o Literário, a partir da perspectiva: literário-psicológica.