Machado de Assis entre a filosofia moral de Schopenhauer e Nietzsche

Tânia Ap. Kuhnen

RESUMO: O presente artigo objetiva encontrar na obra literária de Machado de Assis elementos que indiquem uma ideia de moralidade que se aproxima em parte da concepção de filosofia moral de Schopenhauer e em parte da investigação teórica sobre a moral realizada por Nietzsche. Não se pretende apresentar Machado de Assis como um filósofo da moral ou buscar em sua obra um sistema de ideias filosóficas precisas, mas apenas ler o filosófico dentro do literário, com o fim de identificar uma concepção crítica à moralidade de valores universais e desinteressados na obra do autor, que permite situá-lo em meio a Schopenhauer e a Nietzsche.

PALAVRAS-CHAVE: crítica social; filosofia moral; Machado de Assis; Nietzsche; Schopenhauer; valores.

ABSTRACT: This article aims to find in the work of the Brazilian writer Machado de Assis some elements that indicate an idea of morality which is in part similar to the conception of moral philosophy conceived by Schopenhauer, and in part resembles the theoretical investigation about moral realized by Nietzsche. We do not present Machado de Assis as a philosopher of morality and we do not try to find in his works an accurate system of philosophical ideas. What we do here is only find some philosophical ideas within de literature, in order to identify a critical approach about the morality of universal and uninterested values in the works of Machado de Assis, which allows us to situate him between the ideas from Schopenhauer and Nietzsche.

KEYWORDS: Machado de Assis; moral philosophy; Nietzsche; Schopenhauer; social criticism; values.

 

A leitura das obras de Machado de Assis permite salientar uma relação de proximidade da literatura com a filosofia. A prosa literária de Machado está repleta de momentos, revelados ou mascarados, a partir dos quais a reflexão filosófica é possível. Reale denomina isso de uma “cosmovisão transfigurada em representação artística” . Trata-se do exercício de elevar assuntos aparentemente banais a uma “instância simbolizante”, ou seja, de praticar a “teoreticidade” – para referir o neologismo de Reale – na condição de “um complemento dos tipos e modelos de sua ficção artística”, ao invés de uma “deliberada colocação de problemas em termos propriamente filosóficos”.

Nesse sentido, parece convincente a hipótese de leitura de Azevedo, segundo a qual o filosófico não se sobrepõe ao literário na obra de Machado de Assis, mas é transformado pela forma literária. O literário constitui o precursor do filosófico, pois na Literatura podem ser levantados determinados problemas que também são tema da Filosofia. Por isso, pode-se ler o filosófico a partir da literatura . Não se trata, conforme bem pontua Holanda, de buscar em Machado de Assis um sistema de ideias filosóficas precisas . Propõe-se aqui identificar correlações entre os sistemas filosóficos de Schopenhauer e de Nietzsche e a obra de Machado de Assis, na forma de um discurso transformado pela formalização literária. O objetivo deste ensaio é, assim, encontrar substrato em Machado de Assis para abordar a filosofia moral a partir da leitura da moralidade proposta por Schopenhauer e Nietzsche. A importância do tema da moralidade na literatura é reconhecida pelo próprio Machado de Assis na resenha crítica por ele escrita e endereçada ao livro O Primo Basílio, de Eça de Queiróz.

No que tange à relação entre Schopenhauer e Machado de Assis, não restam dúvidas que esse tenha sido leitor daquele, e assim o aponta a literatura existente. A ligação entre ambos se dá, no entender de Saviano, pela via do pessimismo. Saviano apresenta Schopenhauer como “o pai do pessimismo” por constatar que a vida é sofrimento constante, ainda que a vontade deseje infinitamente sair desse estado.

Na abordagem que Schopenhauer oferece acerca da Ética, pode-se situar o autor entre os que defendem uma perspectiva descritiva da moral. De acordo com Saviano, Schopenhauer considera que não cabe a Ética, enquanto objeto da investigação filosófica imparcial, a prescrição de uma conduta de vida, pois o caráter, que é essencialmente vontade individual, não pode ser educado. “A filosofia deve apenas traduzir in abstracto o que ocorre in concreto no sentimento”. Nessa perspectiva, a finalidade da ética enquanto parte da filosofia seria a de “esclarecer, explicar e reconduzir à sua razão última os modos muito diferentes de agir dos homens no aspecto moral”.

Schopenhauer demonstra-se fortemente anti-kantino. Para ele, uma moral prescritiva “não teria mais razão de ser num período pós-ilustração”. O sistema teórico de Kant, fundamentado na razão apriorística e na universalidade da lei moral , é questionada por Schopenhauer, em Sobre o fundamento da moral. De acordo com Schopenhauer, não há uma lei moral a priori e absoluta: “a razão prática e o imperativo categórico de Kant são suposições injustificáveis, infundadas e inventadas” . Ninguém age com base em algum princípio moral vazio e abstrato, distante da efetividade prática, pois não há nenhuma razão que motive a vontade humana, isto é, que indique um modo de agir. Por conseguinte, contrariamente a Kant, Schopenhauer sustenta que sequer existe alguma ação por respeito à lei moral, a que Kant denomina de ação “por dever” em contraposição à ação “conforme ao dever”. Embora uma ação “por dever” tenha a aparência de ser independente de toda inclinação e de todo interesse, ela será sempre egoísta e ligada a algum móbil, uma vez que os indivíduos agem por ameaça ou por promessa de algo em troca .

A maior parte das ações morais, sustenta Schopenhauer, são regidas pelo egoísmo – uma motivação antimoral. Os indivíduos, quando agem, pensam no bem próprio em alguma recompensa, neste ou em outro mundo. Há também ações guiadas pelo sentimento de maldade, que resultam no sofrimento alheio, como as ações de traição e crueldade. São poucas as ações morais que possuem realmente um valor moral, ou seja, são livres do egoísmo e guiadas pelo sentimento da compaixão e pela virtude de justiça e da caridade. A compaixão é reconhecida por Schopenhauer como uma disposição natural de alguns poucos indivíduos.

Em Machado de Assis é possível corroborar esse entendimento de Schopenhauer acerca da moralidade ao se encontrar personagens egoístas, maldosos e alguns poucos compassivos. Dentre os egoístas, talvez o representante mais significativo seja Brás Cubas, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, guiado constantemente por seu amor pela glória, sem se deixar afetar pelos sofrimentos morais. O próprio Brás Cubas denomina-se egoísta:

Vacilava entre um querer e um não querer, entre a piedade que me empuxava à casa de Virgília e outro sentimento, – egoísmo, supunhamos, – que me dizia: – Fica; deixa-a a sós com o problema, deixa-a que ela o resolverá no sentido do amor.

É esse egoísmo que perpassa a rotina de vida de Brás Cubas, embora ele não deixe isso evidente o tempo todo ao leitor. Na maior parte do tempo, o narrador relata ao leitor apenas aquilo que o engrandece, não os seus defeitos. Só em poucas passagens ele admite, por exemplo, ser trivial e presunçoso, mas, em geral, procura relatar os fatos que para ele são vantajosos e que, ao final de sua vida, o deixam com um pequeno saldo positivo . Ainda assim, é possível perceber o egoísmo de Brás Cubas nas suas atitudes em geral e na própria preocupação com o engrandecimento próprio.

No delírio de Brás Cubas, episódio no qual ele dialoga com a Natureza, é evidenciada uma concepção de natureza como algo egoísta. Poder-se-ia entender isso como uma metáfora da própria natureza humana, ou seja, da motivação egoísta natural que guia os seres humanos na busca pela sobrevivência:

— Porque já não preciso de ti. Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jucundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como o outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. Egoísmo, conservação. A onça mata o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é tenro tanto melhor: eis o estatuto universal. Sobe e olha.

Acerca dessa noção de natureza humana egoísta, e que talvez seja a única coisa a ser aceita universalmente, Schopenhauer pontua que ela não é mais do que a manifestação da vontade. Essa vontade é a parte primitiva no homem, que só depois tem seu intelecto formado. Conforme Saviano, “o caráter, portanto, já existe anteriormente à formação do intelecto […]. Já na criança se apresentam todos os traços de seu caráter, enquanto que o entendimento só mais tarde será formado (para servir à Vontade)” . Isso não significa que o ser humano seja isento da liberdade. Ele quase sempre terá a alternativa de escolher entre uma opção ou outra, mas essa escolha está ligada antes aos motivos originados em sentimentos do que à razão, que é um mero instrumento da vontade de conhecer.

Essa concepção é exemplificada na fala de Brás Cubas, quando ele aborda a questão de sua educação:

[…] afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares. Minha mãe doutrinava-me a seu modo, fazia-me decorar alguns preceitos e orações; mas eu sentia que, mais do que as orações, me governavam os nervos e o sangue, e a boa regra perdia o espírito, que a faz viver, para se tornar uma vã fórmula. De manhã, antes do mingau, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse, assim como eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manhã e a noite fazia uma grande maldade, e meu pai, passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir: Ah! brejeiro! ah! brejeiro!

Aqui Brás Cubas mostra a origem de seu caráter, apesar da tentativa de sua mãe de intervir na formação do intelecto. Ao afirmar que “o menino é o pai do homem”, no título do capítulo em que relata sobre sua formação no contexto familiar, Brás Cubas deixa claro que o adulto egoísta no qual ele se transformou tem seu caráter desenhado quando pequeno. Um caráter propenso a realizar, vez por outra, alguma maldade.

Sofia fechou a caixa, e acabou de calçar-se. Deteve-se algum tempo, sentada, sozinha, recordando coisas idas, e levantou-se pensando: — Aquele homem adora-me.
Tratou de vestir-se; mas, ao passar por diante do espelho, deixou-se estar alguns instantes. Comprazia-se na contemplação de si mesma, das suas ricas formas, dos braços nus de cima a baixo, dos próprios olhos contempladores. […] Lembrou-se então de ver como lhe ficava o brilhante; tirou o colar e pô-lo ao pescoço. Perfeito. […] Fechou a jóia e guardou-a. — Aquele homem adora-me, repetiu.
Posto que evidentemente gloriosa, Sofia esqueceu por um instante os outros, quando viu Rubião entrar na sala e caminhar para ela. Ou mudança, ou descostume, achou-lhe outro ar, passo firme, cabeça levantada, o avesso, em suma, do antigo gesto encolhido e diminuto. Sofia apertou-lhe a mão com força e sussurrou um agradecimento. À mesa fê-lo sentar ao pé de si […] E da parte dela era mais apurada a atenção, e os olhos excepcionalmente meigos e serviçais.

Apesar do egoísmo ser algo presente em diversas ações dos personagens de Machado de Assis, há também alguns deles que são compassivos, a exemplo do filósofo Brás Cubas e de D. Fernanda. Ambos efetuam ações que Schopenhauer certamente classificaria como ações de valor moral por visarem assegurar o bem-estar alheio. A relação do filósofo Quincas Borba com seu cão Quincas Borda é exemplo de ação moralmente valiosa. Schopenhauer reconhece a moralidade para além da racionalidade humana e afirma que também os animais poderiam ser moralmente relevantes e, por conseguinte, objeto da compaixão, ao invés de serem considerados meros meios para fins arbitrários . Quincas Borba dispensava ao seu cão de mesmo nome o mesmo cuidado destinado a seus amigos. Quando o filósofo adoece seriamente, é D. Fernanda quem lhe reserva seus cuidados de forma compassiva, ainda que dele não seja próxima:

Sofia insistiu ainda. A compaixão de D. Fernanda tinha-a impressionado muito; achou-lhe um quê distinto e nobre, e advertiu que se a outra, sem relações estreitas nem antigas com Rubião, assim se mostrava interessada, era de bom-tom não ser menos generosa.

Nota-se em D. Fernanda uma ação desinteressada, apesar das suspeitas de Dr. Falcão acerca da existência de um sentimento de amor dela por Quincas Borba. Com isso, o narrador parece querer demonstrar que, de fato, nenhuma ação pode ser totalmente desinteressada – sempre se espera algo em troca. No entanto, não há evidência factual sobre as eventuais “segundas intenções” de D. Fernanda.

Em Memorial de Aires também é possível encontrar personagens cujo caráter virtuoso é ressaltado pelo narrador. D. Carmo é exemplo de pessoa amorosa, totalmente dedicada ao bem-estar de seus filhos postiços, Tristão e Fidélia. Ao mesmo tempo, os personagens de Memorial de Aires são caracterizados pela ausência das contradições morais, o que os distingue substancialmente dos personagens de Quincas Borba, nos quais é possível identificar uma visão crítica sobre o ser humano enquanto sujeito moral egoísta e auto-interessado. Lá, ao referir-se ao Palha, o narrador o descreve como uma “colcha de retalhos”, além de afirmar que “moralmente as colchas inteiriças são tão raras”.

Trata-se aqui de uma analogia entre a complexidade moral de cada indivíduo e a composição de uma colcha de retalhos. Cada qual é composto de partes diferentes, do mesmo modo que uma colcha de retalhos o é: virtudes, fraquezas, defeitos e sentimentos contrários que levam a ações egoístas ou maldosas, dependendo dos interesses em jogo. Mas todas essas partes dos sujeitos morais permanecem unidas entre si, formando aquilo que o narrador denomina de “a unidade moral da pessoa”. Uma colcha inteiriça, por sua vez, corresponde àquele sujeito moral íntegro, no qual não há os remendos característicos da colcha de retalhos e que age sempre de forma compassiva – algo que, conforme pontuado por Schopenhauer, é uma exceção. A maior parte dos indivíduos são de fato colchas de retalhos, em virtude das falhas de seu caráter. Isso significa que eles não seguem sempre um mesmo princípio universal, mas agem de acordo com aquilo que seu egoísmo impõe a partir da vontade individual, que procura se adequar à conveniência social. Assim, os sujeitos morais criam constantemente novos remendos na colcha de retalhos que sua vida é em termos morais.

Essa visão da falibilidade moral humana é corroborada ainda pela expressão presente em Quincas Borba e Dom Casmurro: “a(s) contradição(ões) é(são) deste mundo ”. Isso indica que os seres humanos são, em sua essência, seres contraditórios que, interna e externamente incoerentes, procuram manter as aparências diante dos outros e podem recorrer a razões diferentes para justificar ações em situações semelhantes com o fim de atender interesses próprios.

Pode-se, dessa forma, sustentar que Machado de Assis fornece substrato para fazer aquilo que, conforme sugere Schopenhauer, é a tarefa da filosofia moral, a saber, apenas descrever as mais diversas formas de agir por parte dos seres humanos no campo da moralidade. A variedade de personagens de Machado, isto é, os tipos morais que concebe, cada qual com sua singularidade moral, fornecem a dimensão da complexidade do comportamento moral humano. A partir disso, tem-se que a aproximação de Schopenhauer e Machado de Assis no que tange à concepção de moralidade é plausível. Mas que relação pode ser estabelecida entre Machado e Nietzsche? O que poderiam ter em comum esse escritor brasileiro e esse filósofo alemão, ambos da segunda metade do século XIX? Certamente, conforme Carreiro procura evidenciar, os ecos de Nietzsche na escrita de Machado não decorrem da leitura do filósofo alemão pelo escritor brasileiro, mas de um “espírito do tempo” formado por meio de influências sociais, culturais e literário-filosóficas semelhantes.

Deixando-se de lado aqui a crítica que Nietzsche dirige a Schopenhauer acerca da concepção de “vontade” e sobre a “moral da compaixão”, é possível afirmar que analogamente a Schopenhauer, Nietzsche questiona os filósofos da moralidade, entre eles Kant, por sua preocupação em propor teorias morais destinadas à aplicação universal e baseadas em uma noção prescritiva de dever. Para Nietzsche, a preocupação do teórico da moral deveria ser a de realizar uma investigação histórica acerca do surgimento dos conceitos e dos valores morais, como ele próprio faz na Genealogia da moral, além de considerar que o filósofo busca identificar o advento dos “preconceitos morais” e de conceitos como “bom” e “mau” . O valor dos valores presentes na moralidade não pode ser tomado como algo dado, mas exige uma investigação crítica acerca de sua origem. O resultado disso, segundo Carreiro, é a “demolição da moral”.

Na compreensão de Nietzsche, a origem dos conceitos morais aceitos na modernidade remonta à transvaloração ou transmutação dos valores. Inicialmente, determinou-se como “bom” aquilo que estava ligado ao nobre, aristocrático, espiritualmente bem-nascido, ao passo que o “ruim” designava a baixa estirpe dos plebeus . Com a transmutação conceitual posterior essa ordem foi invertida: através da revolta dos escravos judeus na moral, o “bom” passou a equivaler ao miserável, pobre, sofredor, necessitado. Desse modo ocorreu dentro da tradição judaica uma modificação de conceitos, pois houve uma inversão de valores com o início do cristianismo. Por conseguinte, esse grupo aboliu a moral dominante dos senhores e da nobreza, passando a exercer a moral escrava cristã e dos “homens do ressentimento”.

Tem-se assim que por trás dos termos morais há uma transformação conceitual que varia de acordo com a preeminência política. O deslocamento da preeminência política para outro grupo incorre em uma transformação no conceito de moral, resultando em uma inversão de valores. Nessa transformação conceitual permanece um constante querer-dominar, um querer-subjugar, um querer-vencer, que move a ação do sujeito, decorrente da vontade de poder . Assim, a moralidade é uma imposição de um grupo dominante que tomou para si o direito de criar valores.

Nesse sentido, Nietzsche entende a moral como sendo o resultado de uma evolução geral da humanidade. O juízo moral é uma ressonância da fisiologia do indivíduo e resulta de uma história do seu passado. A moralidade é, assim, “a soma de todas as verdades para o nosso mundo” , as quais são historicamente construídas. Importa notar, portanto, que quando Nietzsche se refere à verdade, não a entende como um conceito em si, ou algo justificado metafisicamente, mas apenas como uma interpretação e todos os conceitos considerados como verdadeiros resultam de um processo de formação histórica. Da mesma forma que com a verdade, também não há definições finais para conceitos morais. Eles não são entidades em si, mas construções históricas, culturais e temporais, determinados pela conjuntura de poder dominante.

A formação histórica dos conceitos, entre eles, os morais, resulta da atuação da “vontade de potência” ou “vontade de poder”. De acordo com Mora, embora não seja fácil determinar o que Nietzsche entendia por “vontade de poder”, pode-se destacar que ela consiste em um ímpeto ou impulso que vai sempre mais além, que não se detém nunca . É a vontade de poder dominante que determina os conceitos válidos para uma sociedade em um determinado período histórico. Com isso, Nietzsche rejeita a noção kantiana de um princípio moral metafisicamente estabelecido como algo atemporal.

De modo semelhante, Machado de Assis, ao apontar para o relativismo dos valores morais, não deixa de evidenciar a questão da moralidade enquanto associada ao poder de classe, compartilhando do espírito crítico europeu da época. É a classe preeminente que convenciona os valores. Os personagens aristocratas de Machado de Assis de certo modo exercem esse tipo de poder na determinação de valores, além de adotarem as máscaras da convenção social para esconder os remendos da “colcha de retalhos” moral de que são formados. São eles que por meio do acerto político determinam o que é o “bom”, o “ruim” e o “justo” e o põe em prática a fim de convencer todos os demais grupos sociais da verdade de sua própria classe, além de buscar manter a eficácia dessa moralidade por meio de mecanismos sociais de exclusão. Isso é, portanto, uma construção social decorrente da “vontade de poder”. Tudo é fruto da existência e da vontade humana. É por isso que o narrador de Esaú e Jacó afirma que “a discórdia não é tão feia como se pinta” . Nada é de fato absolutamente bom ou ruim, dado por um princípio a priori, mas é determinado pelos grupos sociais que detém o poder.

A questão da inversão dos valores morais de acordo com a conveniência social evidencia-se no comportamento do escravo liberto Prudêncio. Quando moleque, Prudêncio era vítima das maldades do menino Brás Cubas. Posteriormente, quando ele conseguiu elevar-se socialmente, passou a defender os mesmos valores e a mesma verdade da classe social dominante, que talvez questionasse anteriormente por fazer parte da “moral do ressentimento”. Acerca disso, cabe acrescentar as passagens nas quais primeiro o escravo é a vítima da moral aristocrata dominante e depois assume a posição de senhor, o que justifica seus atos nos jogos dos interesses sociais:

Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, — mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um — “ai, nhonhô!” — ao que eu retorquia: — “Cala a boca, besta!”

Interrompeu-mas um ajuntamento; era um preto que vergalhava outro na praça. O outro não se atrevia a fugir; gemia somente estas únicas palavras: — “Não, perdão, meu senhor; meu senhor, perdão!” Mas o primeiro não fazia caso, e, a cada súplica, respondia com uma vergalhada nova.
— Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
— Meu senhor! gemia o outro.
— Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei… Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos que o meu moleque Prudêncio, — o que meu pai libertara alguns anos antes.

Da mesma forma que os demais conceitos morais, o da verdade também é relativo em Machado de Assis e pode ser invertido em conformidade com a conveniência social. Quem melhor exemplifica isso é o retórico narrador Bentinho, que quer convencer a si próprio, e talvez ao leitor, de sua verdade – uma tarefa na qual ele não é bem sucedido. Lima observa que Bentinho conta a sua verdade , sendo que procura demonstrá-la por meio de sua habilidade retórica de advogado. No entanto, essa verdade permanece relativa, pois o narrador não consegue sustentá-la em uma base sólida.

Em Nietzsche, além da genealogia moral, tem-se também uma crítica à verdade associada ao conhecimento científico. Por intermédio de seu método filosófico, o autor critica toda a tradição filosófica e as formas de dogmatismo, as quais eram tidas como inquestionáveis até então, bem como a modernidade, que acreditava numa racionalidade e numa linguagem lógica comum a todas as ciências. Com base nessa perspectiva, não se considera que o conhecimento científico contenha preceitos canônicos válidos atemporalmente. De acordo com Carreiro, “o conhecimento não é da ordem da natureza, é inventado pelo homem no intuito de estabelecer possibilidades de domínio nas relações de uns com os outros”.

Acerca dessa questão, Krause acrescenta que encontramos na obra de Machado uma desconfiança profunda em relação à ciência e uma crítica ao cientificismo . Uma evidência disso é encontrada na teoria do Humanitismo, introduzida em Memórias Póstumas de Brás Cubas e desenvolvida em Quincas Borba. Essa teoria caricaturiza o Positivismo e o Evolucionismo de Darwin – visões científicas preeminentes na época ¬– e permite, assim, perceber a crítica de Machado à visão da ciência enquanto detentora de uma verdade universal. O Humanitismo é um conhecimento vazio, pois é “impossível que seja pautado por uma verdade que o fundamente”.

Tem-se, dessa forma, que parte da crítica que Machado de Assis direciona à concepção de moralidade baseada em valores supostamente universais, bem como à importância de determinadas visões científicas de mundo na sociedade, é encontrada também em Nietzsche. O filósofo salienta a ligação existente entre a preeminência de valores e conceitos morais associados a grupos sociais que possuem o poder de determinar o que é válido em termos de moralidade e de verdade – algo que está presente também na obra de Machado de Assis.

Apesar de se ter identificado uma linha que une a obra romancista de Machado em parte a Schopenhauer, em parte a Nietzsche, não se pretendeu comprometer o escritor com o pessimismo de um, ou o niilismo de outro. Machado não é filósofo, nem se coloca como partidário de alguma teoria filosófica sobre a moralidade. Admiti-lo seria sobrepor o filosófico ao literário – algo que se pretendeu rejeitar já no início deste ensaio.

Nesse sentido, antes de defender que os seres humanos estão condenados à infelicidade em virtude de uma estrutura inata do afeto que os impede da aquisição da felicidade, conforme é sugerido por Dias com base em Schopenhauer , Machado questiona a existência de valores universais e de um comportamento moral desinteressado, desmascarando o ser humano.

Machado de Assis é, portanto, um literato em cuja obra se transmite uma concepção cética de mundo. Esse é também o entendimento de Bosi, que questiona a definição de Machado enquanto pessimista e considera mais adequado reconhecê-lo como alguém que possui “um itinerário de dúvidas” . De acordo com Krause, “a postura cética, por definição, põe sob suspeita todos os dogmas, sejam eles pedagógicos, patrióticos, ideológicos, religiosos ou filosóficos, dificultando sínteses ou classificações” . Ao assumir essa postura, evidenciando as contradições humanas e sociais, talvez Machado tenha pretendido não vencer os dogmáticos, mas apenas instigar um posicionamento crítico por parte do leitor em relação a alguns aspectos sociais e políticos. Isso permite que o filosófico seja lido dentro do literário em Machado de Assis, além de possibilitar situar a concepção de moralidade presente em Machado em meio a Schopenhauer e a Nietzsche.

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