A história da produção literária colaborativa é antiga, tão velha quanto a própria literatura. É mais ou menos o que sempre se disse da Bíblia, que seria resultado de estreita coautoria entre alguns inspirados e seu Criador. Tomada em seu sentido mais amplo, mais aberto, a produção de textos a várias mãos é sempre o que ocorre, já que todos eles sempre são resultado de leituras, isto é, da intromissão de um leitor dentro da obra criada por um escritor, ainda que este não se sinta muito cômodo com a presença intrusiva desse estranho, tão indesejável quanto inevitável. Daí o nosso Brás Cubas ter dito que estava nele, leitor, o maior defeito de suas Memórias Póstumas. E, mesmo querendo despedi-lo, ao leitor, com um piparote, não o conseguiu em nenhum momento. O máximo que chegou a fazer Machado de Assis foi compor um romance em que o leitor privilegiado, quase único e exclusivo, era o própria narrador-autor Bentinho. Quase único, enfatize-se!
Há outra colaboração mais explícita, aquela que se dá entre vários criadores distintos, à feição do que ocorre na tradição oral ou folclórica. Nessa circunstância, uma obra é resultado da colaboração consciente e inevitável dos inúmeros intérpretes que se encarregam de sua memorização e transmissão. É o que ocorre com as cantigas do Trovadorismo, com as lendas e os mitos, com as piadas e as adivinhas, com as fofocas e os mitos urbanos etc. Nesses casos, dois processos caminham pari passu: a multiplicação da autoria e seu anonimato.
Mas há também uma coautoria explícita entre criadores e leitores, na esteira da massificação dos meios de comunicação impressos, já a partir de fins do século XVIII e inícios do XIX, com a multiplicação das bibliotecas circulantes e com a publicação de narrativas em folhetins nos jornais populares de grande circulação. Essa coautoria era, de certa forma, antecipada pelos escritores, quando se apegavam a enredos e personagens reconhecíveis e reconhecidos pelos leitores. Exatamente como ocorre hoje em dia com as telenovelas. Recentemente, os jornais deram destaque ao conflito entre dois escritores da Rede Globo, que se acusavam mutuamente de plágio na criação de personagens idênticos em duas novelas televisadas ao mesmo tempo, mas em horários diferentes. O que está em jogo, de fato, não é uma pretensa cópia, mas o fato de que ambos atendem à expectativa média do mesmo público; e este se faz, assim, colaborador da escrita das novelas e leva, inevitavelmente, à repetição de situações, tramas e, claro!, personagens. É importante ressaltar que essa sujeição do escritor ao público-leitor (que, repito, através desse mecanismo, se faz coautor do texto em alguma fração), essa sujeição é anterior à televisão. José de Alencar, por exemplo, encaixou em seu sonhos d’ouro um “Fim do Fim”, em que tentava dar conta das reações dos leitores, explicando a maneira como sua obra se sujeitava à opinião pública ou tensionava com ela.
Contudo, se pensamos na escrita colaborativa de modo mais restrito, os exemplos se restringem bastante. Estou me referindo aqui aos casos em que não há autores múltiplos, mas um grupo de escritores trabalhando conscientemente em conjunto. Trata-se de co-escrita e não propriamente de coautoria. Por exemplo, uma das explicações para a escrita das Cartas Chilenas procura ligá-las justamente a um grupo de poetas, de que faziam parte, além de outros, Tomás António Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa como principais escritores.
E, se esses casos de coescrita não são numerosos, não deixam de aparecer aqui e ali, com certa frequência. É o que podemos verificar, mesmo quando nos restringimos a casos mais próximos de nós, desde meados do século XIX. A casca da caneleira, publicado em 1866, é romance de autoria coletiva, organizado por Joaquim Serra (que também escreveu parte dele, sob o pseudônimo de Pietro de Castellamer) e contando com a participação de Antônio Marques Rodrigues (usando Rufo Salero como pseudônimo), Gentil Homem de Almeida Braga (Flávio Reimar), Raimundo Filgueiras (Pedro Botelho), Trajano Galvão de Carvalho (James Blumm), F. Sotero dos Reis (Nicodemus), A. Henriques Leal (Judael de Babel-Maned), Francisco Dias Carneiro (Stephens Van-Ritter), F. G. Sabbas Da Costa (Golodron de Bivac), Caetano C. Cantanhede (Ivan Orloff), Joaquim de Sousa Andrade (mais conhecido por Sousândrade, aqui assinando como Conrado Roteski). De Portugal, é bem conhecido o caso d’O Mistério da Estrada de Sintra, de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, publicado no Diário de Notícias, em forma de cartas anônimas, de 24 de Julho a 27 de Setembro de 1870, saindo a primeira versão em livro em 1884. Pouco depois dessa publicação no jornal português, em 1873, apareceu, nos Estados Unidos, o romance The gilded age, escrito por Mark Twain e Charles Duddley Warner. De volta ao Brasil, O esqueleto de Pardal Mallet e Olavo Bilac é romance publicado em 1880. O crime da Rua Fresca foi publicado de 21 de dezembro de 1896 a 11 de janeiro de 1897, resultado de uma colaboração entre Olavo Bilac, Aluísio Azevedo, Coelho Neto, Artur Azevedo e Alcindo Guanabara, sob o pseudônimo coletivo de Puck & C. José Ramos Tinhorão afirma que haveria ainda mais outros dois escritores não identificados. Entrando no século XX, temos O queijo de Minas ou História de um nó cego, colaboração de Monteiro Lobato e Godofredo Rangel, publicado em Pindamonhangaba, no jornal O Minarete, de final de 1906 a início de 1907. Em 1920, viria a público O Mistério, de Viriato Corrêa, Medeiros e Albuquerque, Afrânio Peixoto e Coelho Neto. Brandão entre o mar o amor, romance escrito em colaboração entre Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Rachel de Queiroz e Aníbal Machado, saiu em 1942. Vinte anos depois, como retomada explícita do livro de 1920 e repetindo a participação de Viriato Corrêa, sairia O mistério dos MMM, organizado por João Condé e tendo capítulos assinados por Rachel de Queiroz, Antônio Callado, Dinah Silveira de Queiroz, Orígenes Lessa, Viriato Corrêa, José Condé, Jorge Amado, Lúcio Cardoso, João Guimarães Rosa e Herberto Sales. Outros motivos e meios têm sido utilizados para essa escrita colaborativa. Em 2005, o famoso Subcomandante Marcos e o escritor mexicano Paco Ignácio Taibo produziramMuertos Incómodos. Por ocasião da Bienal do Livro de São Paulo de 2008, Moacyr Scliar escreveu um primeiro capítulo de “O Livro de Todos — O Mistério do Texto Roubado“; a seguir, leitores foram enviando suas propostas de colaboração para o sítio do projeto, num total de 173 escritos. Também em 2008, como resultado da Oficina literária – Cidade e memória, coordenada por Luís Augusto Fischer, a obraApolinário e Esmê – Luz e sombra no paralelo 30 foi produzida por ocasião da Feira do Livro de Porto Alegre, contando com a participação de Cristina Pezzella, Duse Teitelroit, Elisângela Steinmetz, Fabrício Limberger, Geraldino dos Santos, Jorge Benitz, Leonor Bastian, Marcia Papaleo, Mário Wrege, Marta Orofino, Milena Cabral, Nilton Wainer, Vera Gerson e Zilá Mesquita.
Os exemplos são realmente numerosos, bem mais do que poderíamos suspeitar. E, à diferença dos romances de autoria única, essas obras de múltipla autoria podem permitir o prazer adicional de lê-las como uma história de mistério, ainda quando não o são. O Mistério da Estrada de Sintra traz as duas possibilidades. É claramente romance que parodia a linha dos folhetins publicados sob o título de mistério. Numerosíssimos, desde o famoso Les mystères de Paris de Eugène Sue, passando por Les heures de mystère de Maurice Leblanc, esse tipo de título de romance teve imenso sucesso desde o século XIX, inclusive no Brasil: Mistério da Tijuca, depois republicado como Girândola de amores, é de Aluísio Azevedo; O mistério da roça e A filha do mistério são do silveirense Vicente Félix de Castro; da mesma estirpe são O mistérios dos MMM e o romance que aqui trazemos a vocês, O Mistério). Eu dizia, então, que esses romance de múltipla autoria podem propor o desvendamento de um mistério em sua intriga, mas podem trazê-lo também em sua escrita: um dos prazeres de ler e reler o romance de Eça e de Ortigão é tentar desvendar quem escreveu cada capítulo. Este não é necessariamente o caso do nosso O mistério. Esse romance foi obra escrita por escritores de prestígio, bem conhecidos à época, todos membros da Academia Brasileira de Letras quando da publicação do romance, à exceção de Viriato, que só entraria para os imortais em 1938. Na literatura, alinhavam-se entre os conservadores que ainda resistiram vários anos à renovação modernista que explodiu a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, dois anos após a publicação do romance coletivo. Viriato Corrêa foi romancista, contista, autor teatral, jornalista, autor de crônicas históricas e de literatura infanto-juvenil, autor do romance Balaiada (1927). O recifense Medeiros e Albuquerque foi romancista, contista, poeta, jornalista, autor teatral, ensaísta, memorialista, professor e político, autor dos romances Marta (1920) e Laura (1933). O médico legista baiano Afrânio Peixoto foi romancista, ensaísta, historiador e crítico de literatura brasileira, político e professor, autor dos romances Lufada sinistra (1900), A esfinge (1911); Maria Bonita (1914); Fruta do mato (1920); Bugrinha (1922); As razões do coração (1925); Uma mulher como as outras(1928); Sinhazinha (1929). O romancista, crítico e autor teatral maranhense Coelho Neto é autor, entre outros, dos romances A capital federal(1893); Praga (1894); Miragem (1895); O rei fantasma (1895); Inverno em flor (1897); O morto (1898); O rajá do Pendjab (1898); A Conquista(1899); Tormenta (1901); Turbilhão (1906); Esfinge (1908); Rei negro (1914); O povo (1924): Imortalidade (1926); Fogo fátuo (1929). Como se vê, não se trata de iniciantes, à exceção, novamente, de Viriato Corrêa; todos os outros três eram nomes consagradíssimos da literatura nacional, com carreiras de escritor bem estabelecidas ao menos desde o final do século XIX. É esse romance, da autoria desses autores que trazemos a vocês, em reprodução digitalizada da edição de 1928. Bom proveito.