A luva negra de Juana Manuela Gorriti

Cecília de Souza Borba

O conto “El guante negro”, publicado inicialmente em 1852 pela escritora argentina Juana Manuela Gorriti, centra-se na Argentina do século XIX, durante as batalhas entre unitários e federalistas. Nesse conto, o personagem Wenceslau aparece dividido entre o amor de Manuela, filha do ditador argentino Juan Manuel Rosas, e Isabel, uma jovem partidária unitarista.

Cecília de Souza Borba — graduanda em Letras Português/Espanhol pela Universidade Federal do Rio Grande — mostra a primeira tradução em português desse conto, antecipando-se à publicação que o projeto de pesquisa “Juana Manuela Gorriti: análise e tradução”, sob orientação das professoras Daniele Corbetta Piletti e Joselma Noal, que irá fazer de forma completa a tradução do livro de contos Sueños y realidades, obra dessa importante autora latino-americana pouco conhecida em língua portuguesa.

O texto original foi publicado em Sueños y realidades. Tomo I. Buenos Aires: Biblioteca de la Nación, 1907, p. 91-125.

 

A LUVA NEGRA

I A prova de amizade

Era uma dessas deliciosas noites do país argentino. A lua banhava com seus brancos raios as encantadas margens do Prata e fazia brilhar entre o sombrio verdor dos hortos e alamedas das mil belíssimas chácaras, e os palácios de campo que circundam Buenos Aires. Mesmo que a hora não fosse avançada, tudo estava silencioso e deserto em torno da grande cidade e somente se ouvia o murmúrio das ondas do rio vizinho e o silvo do vento entre as folhas dos salgueiros.

De repente, veio misturar-se a estes rumores da natureza, uma voz humana, uma divina voz de mulher, que se elevando suave e cautelosa do fundo de uma dessas espessas avenidas de árvores, começou a cantar com indescritível melodia aquela adorável música de Romeu e Julieta.

– Sei pur tu che ancor rivedo?

O canto foi interrompido pelo ruído de uma carruagem que se aproximava.

Um elegante coche se deteve ao pé da escadaria de uma chácara. Um soldado vestido de luxuosa libré abriu a portinhola e estendeu a mão a uma bela jovem de corpo esbelto e ágil, de olhar rápido e imperioso, que saltando do estribo, ligeira como um pássaro, subiu os degraus da escadaria e entrou no vestíbulo.

Ao avistá-la, o porteiro que velava na primeira antessala, inclinou-se profundamente.

– Meu amigo, disse ela, passeando em torno seu inquieto olhar: Dorme seu jovem amo?

– Meu amo está ferido, senhora, e…

– Eu sei, eu sei, e por isso estou aqui. Conduza-me ao quarto dele.

O porteiro fez uma reverência e guiou a jovem por uma galeria aberta sobre um jardim de interior e, detendo-se diante de uma porta, ia abri-la para anunciar a dama, mas esta o afastou sorrindo e abriu ela mesma a porta, atravessou correndo um elegante salão e entrou em um dormitório iluminado por uma lamparina e, em cujo fundo, entre duas manoplas de armas havia um leito onde estava deitado um jovem de bela e simpática fisionomia. Sua testa alta e espaçosa levava o selo da altivez e da inteligência, em seus grandes olhos negros, sombreados por longoscílios, havia relâmpagos que revelavam o choque de paixões fortes e correspondidas. Seus brilhantes cabelos caiam em volumosos caracóis sobre seu pescoço e um bigode negro e sedoso capaz de matar de inveja a todos os leões do mundo se retorcia graciosamente sobre uma boca que havia feito palpitar a uma mulher de medo ou de amor.

A jovem correu até ele e afastando com uma das mãos o véu do seu lindo rosto: – Wenceslau! – disse, estendendo a outra mão, – Não é verdade que demorei muito?

– O que vejo! Manuelita, vós aqui!

– Havias-me chamado de ingrata? Oh! É que ainda que morresse de impaciência e desejo de vir vê-lo, não podia me subtrair por um momento aos olhares de meu pai e dessa iníqua turba de pretendentes e aduladores que me rodeiam.

– Chamá-la de ingrata! Eu! Oh! Não. Manuelita! Eu sei que havias pensado em mim, e vossas mais ligeiras lembranças são tão preciosas para meu coração, que não acreditava poder pagá-las, nem sequer dando por vós meu sangue e minha alma… Mas permita que eu me convença de que não é um sonho a sorte de vê-la aqui, a esta hora. Assim inclinada sobre meu leito.

E tirando ele mesmo a luva de tule negro bordado de arabescos, que cobria a linda mão da jovem, deu nesta um beijo que devia ser muito apaixonado, porque Manuelita retirou rapidamente sua mão, seus olhos baixaram ao chão e uma nuvem de rubor cobriu sua altiva face.

– Lisonjeiro! – disse ela, fazendo um esforço para serenar-se e sorrir, – O que há de mais natural do que eu me encontrar aqui, a esta hora inclinada sobre vosso leito? Um mau cavalheiro atacou minha honra, crendo assim desacreditar a administração de meu pai: como se a desonra lançada sobre a face de uma jovem pudesse eclipsar o brilho da estrela de Rosas o forte; vós tomastes a defesa de vossa amiga de infância, desarmastes a vosso contrário e lhe obrigastes de Montevidéu a se desmentir, mas ficastes ferido e é meu dever não só vir vê-lo, mas também ser vossa enfermeira. Quão doces haveriam sido para meu coração os cuidados que a vós dedicara! Mas me acorrentam longe de vós a necessidade que meu pai tem de mim e o terror desse mundo que se apoderou de minha vida para destroçá-la como se ainda não fora bastante triste e contrariada! Oh, Wenceslau! Por que ainda não estamos com minha mãe e com a vossa debaixo das frescas sombras de Luján!

E a filha do Ditador elevou seus olhos ao céu para fazer quiçá retroceder suas lágrimas, reclinando tristemente sua linda cabeça sobre uma das colunas do leito.

Wenceslau reclinou-se sobre seu travesseiro e aproximando a mão da jovem sobre seu peito ferido: – Manuelita, bela flor nascida entre as sarças! – exclamou – a sociedade que vos possui não é digna de vós; não podendo vos compreender, vos calunia, mas se um homem leal, decidido e enérgico pode algo contra a desgraça de viver em um mundo que não compreende a vós, mandai, minha vida é vossa; este coração que palpita debaixo da vossa mão está cheio de afeto por vós. Confiai nele, compartilhai de vossas penas.

Manuelita apertou a mão do jovem sorrindo melancolicamente.

– Ai! Meu amigo – disse – o destino tão invejado de Manuela Rosas condenou-a à solidão e ao isolamento do coração, distanciando dela um a um todos seus amigos. Aqueles que não emigraram encontram-se no exército de Lavalle, esse implacável inimigo de meu pai; e, ainda que eu saiba que eles guardam uma terna memória da minha amizade, o dever me ordena a tirar de meu coração a lembrança da sua amizade. Mesmo vós, Wenceslau, o último, e mais querido de todos, por muito pouco tempo estareis perto de mim, logo deixareis de ser um auxiliar: vi, na escrivaninha de meu pai, vossa promoção de segundo-chefe do regimento que manda o coronel Ramírez, vosso pai, e a ordem para que marche ao Norte aquele regimento.

– O que dizes? Distanciar-me de… vós! Ausentar-me de Buenos Aires, oh! – exclamou Wenceslau revelando na entonação de sua voz uma dor misteriosa.

A jovem o compreendeu, levantou-se rapidamente e cobrindo seu rosto com o véu. – Adeus, Wenceslau – disse, estendendo a mão sobre a coberta da cama, para buscar a luva que ele havia tirado. – São onze horas e me sobra pouco tempo para chegar a Palermo antes que cerrem as portas… Mas… o que fiz de minha luva?

– Eu a tenho, disse Wenceslau, descobrindo seu peito e mostrando a luva sobre o coração. Manuelita, desejo conservá-la eternamente em memória desta noite. Como quereis que a guarde? Como uma conquista ou como um presente?

– Como uma prova de amizade – respondeu ela, levantando com graciosa sedução a extremidade de seu véu e enviando, da porta, um beijo a Wenceslau.

– Ama-me! – disse ele quando a porta fechou-se detrás de Manuelita – ama-me, eu podia ser seu esposo e realizar deste modo a felicidade e a prosperidade que sonho para minha pátria faz tanto tempo, se um amor fatal não tivesse escurecido com um sopro tempestuoso o brilhante horizonte de ambição e de glória que se abria para mim. Isabel! Isabel! Por que te conheci! Por que o teu olhar e a tua voz penetraram tão profundamente em meu coração!

Naquele momento, a voz que cantou na alameda se fez ouvir outra vez.

– É a sua voz! É ela! – exclamou Wenceslau, inclinando-se e apertando uma mola de uma porta secreta que estava na cabeceira da cama.

II A luva negra

A porta abriu-se, deixando ver a campina iluminada pelos raios da lua e dando passagem a uma figura branca, vaporosa e aérea como as Willis das baladas alemãs. Era uma jovem envolta em um manto branco e com a cabeça coberta por um véu de gasa. A estatura era um pouco elevada; sua longa e solta cabeleira, brilhante e negra como o azeviche, descia em sombrias ondas até tocar o solo; seus puxados olhos negros de largas pupilas tinham esse longo e profundo olhar que se atribuem aos que leem o futuro.

Ao vê-la, a lembrança de Manuelita e, com ela, as ideias de glória e ambição, fugiram da imaginação de Wenceslau.

– Isabel! Meu belo anjo, minha bondosa fada! – exclamou – Já estás aqui! Oh! Que minha mãe perdoe a ingratidão de seu filho, mas quanto bendigo sua ausência, que lhe obriga a vir como meu anjo guardião, entre as sombras e o silêncio da noite a curar com as tuas mãos minha ferida e inundar meu coração de delícias com a magia do teu olhar, da tua voz e do teu sorriso!… Mas… Tu estás pálida!… Trêmula! Não tens nenhum carinho, nem uma palavra de amor para quem te adora! Isabel! Que pesar escurece teu semblante, minha amada?

– Nada mudou ao meu redor – respondeu ela, ajoelhando-se ao pé do leito, e obrigando Wenceslau a recostar-se em seu travesseiro – nada mudou; o sol foi brilhante, as flores enviaram-me seus mais suaves perfumes; os passarinhos fizeram-me ouvir as melodias que calaram em minha harpa desde que tu sofres; as belas estrelas do nosso céu sorriem para mim como sempre; tu, a quem amo, com idolatria estas aí, perto de mim, e eu leio nos teus olhos o teu amor; e no entanto, houve nesse sol, nesses perfumes, nessas melodias, nessa noite, nessas estrelas e nos teus olhos, algo de lúgubre que pesa como chumbo sobre o meu coração.

– Escuta, Wenceslau. Quando minha mãe levava-me em seu ventre, ouviu-me chorar uma noite que velava, pensando no ser que ia dar à luz. Uma crença em nosso país, supersticiosa, se quiseres, ensina que, quando uma criança chora no ventre de sua mãe, se esta guarda o segredo, a criança possuirá o dom da adivinhação. Minha mãe calou-se acreditando dar-me a boa sorte. Pobre mãe! Ela ignorava que funesto presente legava ao destino de sua filha. Acorrentada como tudo o que existe a essa ordem eterna chamada fatalidade, sinto chegar a desgraça, sem poder evitá-la; conheço sua aproximação no ar, na luz, nas sombras; mas ignoro de onde vem e o momento no qual me ferirá. Quando meu pai caiu sob os golpes da Mazorca, essa associação de homens cruéis, eu já havia visto aquela cena toda em sonho. Cada um dos infortúnios de minha vida revelou-se antecipadamente ao meu coração. Hoje, durante todo o dia perseguiram-me as mais espantosas alucinações; o meu espírito viu espetáculos horríveis nos quais o assassinato exercia suas sangrentas funções; ouvi a voz dos ciúmes, essa funesta doença de minha alma, gritar-me com tom lúgubre: Perfídia! Traição! Agora mesmo, Wenceslau, ao entrar em teu quarto, senti perto de mim, uma sombra, um espírito inimigo que me interrompia a passagem e como a mão de uma rival me repelia para longe de ti; e era tanto o que sofria meu coração, que, ao aproximar-me de teu leito, ao te encontrar sozinho esperando a presença e os cuidados da tua Isabel, bendisse tuas feridas que te entregam exclusivamente ao meu amor e desejei que se prolongassem teus sofrimentos por toda a eternidade.

– Amada minha – replicou Wenceslau, beijando com ardor as mãos da jovem – há palavras que somente devem ser ouvidas de joelhos: tais são as que acabas de pronunciar. O que fiz eu para merecer o amor de um ser tão belo e sublime como tu? E quando possuo esta felicidade que me invejarão os anjos do céu, havia eu de pagá-la com a perfídia em vez de uma eterna adoração? Oh, minha Isabel! Desterre esses temores insensatos, como uma injúria feita a ti mesma e ao teu amor.

Falando assim, Wenceslau era sincero, pois como dissemos suas ideias de ambição desvaneceram-se à presença de Isabel. A jovem sorriu com ternura, movendo tristemente a cabeça.

Nesse momento, o relógio da sala deu meia-noite.

– Meu Deus!  – disse Isabel – é meia-noite e eu não pensei ainda em curar tua ferida.

Uma terrível lembrança brilhou como um relâmpago na memória de Wenceslau, que levou rapidamente as mãos ao peito.

Era tarde!  Isabel o havia descoberto para levantar o emplastro da ferida.

Um profundo silêncio reinou então no quarto. Wenceslau imóvel de confusão e terror olhava Isabel que pálida como uma morta tinha entre suas mãos uma luva negra que examinava com olhar fixo e devorante.

De repente seus grandes olhos se abriram desmesuradamente; de seu peito exalou um grito oprimido, seus braços deslizaram inertes ao longo do corpo, seus pés vacilaram e, caindo sobre seus joelhos, ocultou sua face no chão.

Na parte interior da luva, sobre a fita que contém o elástico, Isabel havia lido o nome de Manuela Rosas.

– Isabel, minha amada, digna-te a escutar-me um momento! Não me condenes sem me ouvir!  – exclamou Wenceslau, estendendo os braços para levantá-la. Ela rechaçou-o em silêncio, voltando à sua primeira atitude.

Por um longo momento ficou assim imóvel, silenciosa e insensível às súplicas de Wenceslau.

Depois levantou a fronte, passou a mão por ela, como para avivar uma lembrança e pondo-se em pé:

– Oh, meu pai! – exclamou, cruzando os braços e elevando ao céu seu profundo olhar – este golpe que fere meu coração é o castigo da filha culpada que, infiel a seu juramento, deixava vagar esquecida vossa sangrenta sombra, mudando impiamente vossa vingança com o amor de um federal.

Ah! Foi necessário que ele me expulsasse de seu coração, para que voltassem ao meu a lembrança da vossa funesta morte e o sentimento do meu dever. Mas ainda não é tarde, meu pai. O juramento que fiz debaixo das negras abóbadas de vosso calabouço não haverá sido feito em vão: eu renovo aqui o voto de consagrar a sombria existência que me espera a vossa vingança e ao triunfo dessa causa, cujo testemunho selaste com o martírio!

E voltando-se até seu amante, que lhe escutava consternado: – Adeus, Wenceslau – disse-lhe – Esta é a última vez que pronuncio vosso nome, esse nome que meu lábio se comprazia em repetir sem cessar porque ressonava em meu coração como uma deliciosa música. Adeus para sempre! Amai em paz essa Manuela Rosas, cuja prova de amor levais sobre o coração; e, quando penseis em Isabel, recordai dela sem remorsos, pois vossa perfídia conduziu-a ao caminho do dever, ao mesmo tempo, que a vós ao das honras e da felicidade.

Ao escutar esse terrível sarcasmo, Wenceslau, que permanecia sufocado sob o peso de uma prova imperdoável, levantou sua testa pálida com orgulho e, estendendo a mão com um gesto de autoridade, disse à jovem, que já dava um passo em direção à porta: – Isabel! Em nome do teu pai, escuta uma palavra, uma só!

Isabel virou seu pálido rosto para ele.

– Tudo se acabou entre nós – disse ela com voz triste, mas firme – Um abismo separa- nos; em uma das suas margens estais vós com Manuela Rosas, em outra, Isabel e a sombra do seu pai.

– Oh, Isabel! Recusas escutar-me? Digna-te, então, dizer tu mesma, amada minha. O que poderei fazer para convencer-te de que nenhuma outra imagem jamais chegou perto do santuário que tens em meu coração? Fala! Se é necessário descer ao inferno para resgatar teu amor, assim o farei.

Um profundo suspiro elevou o peito de Isabel, que vacilante e trêmula baixou os olhos para que Wenceslau não lesse neles o seu amor.

De repente, seu olhar caiu sobre a luva negra que estava no chão. Um estremecimento convulsivo percorreu o seu corpo, em seus negros olhos brilhou um raio de enorme cólera e um desses maus pensamentos, filhos do ciúme, que convertem anjo em demônio, surgiu em sua mente e mordeu seu coração.

– Que morra pelo meu amor – murmurou – contanto que se distancie para sempre dela!

E fixando em Wenceslau um olhar fascinante:

– Há um lugar – disse-lhe – de onde podereis persuadir-me que o que vi esta noite foi um sonho, um desses sonhos ruins que torturam o coração, mas esse lugar está… entre as filas do exército unitário!

E desapareceu entre as sombras que se estendiam até o outro lado da porta.

Wenceslau ficou um momento desconcertado debaixo do peso daquelas terríveis palavras. Os olhos fecharam-se, seu coração parou de bater, um suor frio banhou suas têmporas. Logo, um desespero imenso invadiu seu coração, sacudindo-o com sua terrível força.

– Perdi-a para sempre! – exclamou – ferindo sua testa. Já não me ama, pois quer a minha desonra! Quer que eu abandone a causa que desde criança minha espada tem defendido, a causa de meu ilustre benfeitor… a causa da companheira de minha infância! Quer que eu me torne um traidor, enfim! Oh, Isabel!… jamais… jamais… Mas o que farei diante desta existência vazia e silenciosa, que não iluminará já o teu amor? Como atravessarei essas horas, esses dias que encantava tua presença? Por que perder-te não é somente perder o coração de uma mulher: é perder o ar, a luz, o céu!… Oh, é melhor morrer!

E levando ao seu peito uma mão homicida, arrancou a bandagem de sua ferida e a dilacerou.

O sangue correndo aos borbotões sobre o leito, adormeceu pouco a pouco o desespero que devastava a alma de Wenceslau. Uma névoa azul estendeu-se ante seus olhos, um rumor confuso invadiu seus ouvidos, que pararam de perceber os ruídos exteriores; o frio da morte começou a gelar seus membros e, em seu coração, difundiu-se esse sentimento de paz que deve se encontrar do outro lado da tumba e que pinta o semblante dos cadáveres.

III Uma mãe

De repente uma voz doce e suave veio interromper o silêncio de sua agonia.

– Oh, meu Deus! – exclamou entre suspiros – Tu me trouxeste para salvá-lo! Wenceslau!

– Isabel! – murmurou – a voz exânime do moribundo.

Ao lado daquele sangrento leito encontrava-se de joelhos uma mulher de estatura elevada, de rosto doce e belo, apesar da grande palidez que o cobria. Sabia-se que aquela alma havia sentido muito e que a fogueira que ardia em seu peito havia consumido a sua vida.

Reclinada a cabeça de Wenceslau sobre seu peito, rodeava-o com seus braços e esforçava-se para estancar o sangue que escapava da ferida, regando com suas lágrimas a testa do jovem e chamando-lhe em voz baixa e carinhosa.

– Ai! – disse, quando ouviu em seus lábios o nome de Isabel – Não me reconhece, ele ama a outra, não importa! Bendito seja o nome que lhe faz voltar à vida! Meu Deus, traga-o de volta para mim! E ainda que me posponha a todas as suas outras afeições, pois sei que ele ainda ocupa toda minha alma, não sou eu quem deve ocupar a sua.

Quem era essa mulher, que amava tanto, mas cuja santa abnegação era superior aos ciúmes, esse poderoso demônio que fez seu inferno no coração humano?

Era uma mãe.

IV A carta

Alguns dias depois, aquela mesma mulher passeava sozinha, ou melhor, vagava como uma sombra debaixo das elevadas árvores do jardim da chácara. Seu rosto estava ainda mais pálido e em seus olhares pintava-se uma sombria inquietação.

– Meu Deus! – dizia – qual será a origem desse pesar profundo, dessa espantosa cólera que se apoderou do meu esposo, desde que um espião do governo entregou-lhe aquela carta. Murmurou o nome de Wenceslau, acompanhando-o de horríveis imprecações. Ai! Que desgraça ameaça ainda o meu idolatrado filho? Virgem Santíssima! – continuou beijando um relicário que continha a imagem de Maria e os cabelos de Wenceslau – tu que padeceste tanto nesse vale de lágrimas, tem piedade dos sofrimentos de uma mãe em memória dos teus próprios sofrimentos! Proteja meu filho! Se há algum perigo sob seus pés, salve-o, como fizeste outra vez! Faça-o feliz e dê a mim toda sua parte dos males da vida…

Mas é impossível ficar nessa terrível incerteza que me faz padecer um século a cada instante. Essa carta deve estar aí… no seu escritório… Ele não está ali… encerrou-se na sala… Se eu fosse buscar essa carta! Sim irei! Oh Ramírez! Perdão! Não sou uma esposa indiscreta que investiga os segredos do seu marido: sou uma mãe que vela sobre o destino do seu filho.

E atravessando as longas ruas de árvores, cobertas já com as sombras da noite, abriu uma janela baixa e olhando cautelosamente para dentro:

– Ninguém! – murmurou – Ninguém!

E entrou em um quarto ocupado por estantes de livros, panóplias de armas e uma escrivaninha repleta de papéis, sobre ela elevava-se, em uma rica moldura, o retrato do general Belgrano.

O olhar da mãe reconheceu, entre mil cartas, aquela que desejava e temia ler, tomou-a com a mão trêmula e olhando a letra do sobrescrito:

– Meu Deus! – disse abrindo-a – é de meu Wenceslau, é de meu filho.

Uma luva negra deslizou de entre as dobras da carta e caiu aos pés da mãe de Wenceslau, que deu um grito.

– Oh! Por que me causou tanto terror este objeto? Parece que é a mão da morte que vem pousar sobre meu coração!

Estendeu o olhar ao seu redor e leu:

“Isabel:

O homem a quem puseste na horrível alternativa de tornar-se um traidor ou de viver sem ti, esse homem forte, a quem seus companheiros chamam o leão dos combates, sucumbiu miseravelmente na luta do amor com o dever. Oh, vergonha! Honra, dever, amizade, gratidão, todos os sentimentos nobres do coração calaram-se diante da ideia de perder-te para sempre, de renunciar à felicidade de contemplar teu rosto, de arder sob o fogo do teu olhar, de sentir o contato da tua mão, de escutar o som da tua voz.

Teu amante, para quem a honra era a vida, logo levará em sua testa o selo da deserção, esse batismo da desonra, que nem mesmo a morte poderá apagar. O exército de Lavalle encontra-se a duas jornadas daqui e o sol de amanhã ver-me-á em suas filas, voltando minha espada envilecida contra a causa que tinha minhas simpatias, contra meu protetor e contra meu próprio pai.

Nesta carta, encontrarás essa luva, origem de tantas dores. Envia-a para Manuela Rosas e faça-a dizer que o amigo de sua infância, o homem em cujo coração ela havia buscado um asilo contra a calúnia, já não é digno de possuir esse dom da amizade, porque se tornou um traidor.

Isabel! Tu o quiseste! Assim seja!”

A pobre mãe não pode ler as últimas palavras desta carta. Um tremor convulsivo sacudiu seus membros; o gelo do espanto invadiu seu coração; a carta escapou de suas mãos, seus joelhos dobraram-se e caiu na terra como uma massa inerte. Ao voltar a si de seu longo desmaio, seu ouvido ainda percebeu duas vozes que falavam perto dela. A debilidade que embargava seus membros impedia-a de mover-se e permaneceu oculta debaixo das longas dobras da toalha da mesa.

– Bracho! – dizia o coronel Ramírez a seu criado favorito, assim chamado por ter nascido no ardente deserto com este nome – ainda que tenha uma confiança ilimitada em ti, necessito que faças um juramento.

Bracho saudou militarmente e respondeu:

– Mandai, meu coronel! Vosso antigo soldado está pronto para obedecer.

O coronel aproximou-se dele e, apertando fortemente sua mão, pôs a outra sobre o próprio coração e disse com voz solene:

– Bracho! Jura-me por nossos dias de fadigas e de glória e pelos imaculados lauréis que durante trinta anos conquistamos juntos sobre os campos de batalha, que guardarás um silêncio sepulcral sobre tudo que ocorrerá aqui.

O rosto bronzeado e grave de Bracho tornou-se mais grave ainda; sua mão respondeu a pressão do coronel e, colocando igualmente a outra sobre seu peito, respondeu com voz firme.

– Eu juro!

– Bracho – continuou o coronel, apontando um enxadão e uma pá que estavam no chão – toma esses instrumentos que te mandei trazer e abre nesse canto do quarto um buraco de sete palmos de largura e seis de profundidade.

Bracho, com esse sangue frio, algumas vezes admirável e outras espantosas que caracteriza os filhos daquela terra, despregou uma das extremidades do tapete e obedeceu ao seu senhor. Durante um longo momento, somente se ouviu a respiração oprimida do coronel e os compassados golpes do enxadão de Bracho.

Um horrível pressentimento atravessou a alma da mãe que conteve sua respiração e escutou.

Quando a cova estava feita, Bracho apoiou-se no enxadão e virou-se para seu chefe.

O coronel chegou perto da negra boca do buraco e mediu com a vista a sua profundidade.

– Bracho! – disse, com uma voz lúgubre que levou um frio mortal ao coração da mãe – Dentro de poucas horas, esse abismo irá se fechar sobre um cadáver! Escuta! – prosseguiu – hoje, neste mesmo local, terão lugar o julgamento e o castigo de um grande crime, desconhecido entre os soldados argentinos e que ainda não manchou nossos anais militares: a traição!

Vá agora à cidade, busca no quartel de meu regimento a seu segundo-chefe e dê-lhe da minha parte a ordem de vir imediatamente a encontrar-me aqui, recomendando-lhe o maior segredo sobre o lugar para onde se dirige.

Bracho fez um movimento involuntário de dolorosa surpresa, ao escutar aquela ordem. Vacilou e olhou seu amo, como se quisesse lhe falar; mas um severo olhar do mesmo fez-lhe obedecer em silêncio.

V Amor de mãe

– Desertor! – exclamou o coronel, quando ficou sozinho – Desertor! Um soldado argentino, um Ramírez, desertor! Sombra deBelgrano! – continuou ele com dor, dirigindo-se ao retrato daquele herói, sombra augusta de Belgrano – Não vos estremeceis de indignação ao ouvir aliar com a infâmia o nome de vosso amigo, repetido com honra em cada uma das batalhas? Não gemais de dor, ao ver desonradas as cicatrizes do vosso antigo companheiro? Desonradas não, graças ao céu, o crime não foi consumado ainda; e essa tumba e este punhal o sepultarão para sempre com o culpado.

Com o ruído metálico que produziu o largo punhal do coronel, ao cair sobre a mesa, estremeceram-se as entranhas da pobre mãe, que até então procurava se persuadir de que tudo aquilo era um sonho. Seu coração sentiu o frio do aço destinado ao coração de seu filho e, exalando um grito dilacerante, levantou-se de repente, pálida como um espectro aos olhos de seu marido, que recuou espantado exclamando:

– Margarita! O que vieste buscar aqui?

– Ramírez! – gritou ela com tom lamurioso – Por piedade! Diga-me que estou louca e que as palavras atrozes que te ouvi pronunciar são efeitos de meu delírio! Ramírez, Ramírez! Em nome dos céus, diga que essa tumba, esse punhal, essa espantosa sentença são somente as alucinações de um horrível pesadelo que agita minha mente. Diga que não é verdade que tu queiras tornar-te o assassino do meu filho, do nosso filho!

– Teu filho! Nosso filho! – exclamou o coronel em uma explosão de dor e de indignação – Já não lhe tens, desventurada mulher; o que foi nosso filho é um traidor, que subjulgado por uma paixão abandonava o estandarte sagrado da pátria. Os momentos da sua existência já estão contados e somente pertence a minha justiça, Margarita! Vá a orar por ele e esqueça para sempre o nome do teu filho.

– Oh! – exclamou a mãe com tom profundo e dilacerador – que ore por ele como por um defunto! Que esqueça o nome do filho, esse docíssimo nome, que há vinte anos é o objeto de minha existência! Quem o disse? Quem?… Oh, ninguém… Ninguém. Graças ao céu, estou louca! Estou louca!

E a infeliz percorria o quarto retorcendo seus braços e comprimindo a cabeça com ambas as mãos, para fazer explodir a loucura que invocava.

A tremenda voz de honra ofendida que havia sufocado a do amor paternal na alma do coronel emudeceu diante daquele desespero de mãe. Ramírez sentiu o coração despedaçar-se e vacilar sua terrível resolução. Estendeu os braços até sua mulher e disse tristemente:

– Margarita! Pobre mãe! Vem chorar no seio de teu esposo, de teu amigo! Eu também tenho necessidade de derramar lágrimas!

Mas de repente seus olhos encontraram o olhar de Belgrano, que se destacando fixo e penetrante do fundo sombrio do quadro, parecia lhe jogar na cara sua debilidade.

Então, a vergonha cobriu de púrpura o rosto desfigurado e lívido do coronel. Seus olhos expeliram chamas; e uma larga cicatriz, lembrança de suas glórias, desenhando-se pálida sobre o rubor de sua face, corou-lhe como uma auréola sinistra.

– Não! – exclamou, rechaçando sua mulher e indo colocar-se diante do retrato de seu antigo chefe, aquele a quem vistes ao vosso lado arrastando com serenidade a morte entre a metralha dos combates, não desmentirá seu valor diante do cumprimento de seu dever, por mais terrível que este seja. Se este coração revela-se – continuou golpeando seu peito – eu romperei-lhe, mas a honra irá se salvar, porque o culpado perecerá!

– Oh! – gritou a mãe, lançando-se sobre seu marido e apertando convulsivamente seu braço – Era verdade? Meus ouvidos enganavam-me? Ramírez, Ramírez! É real que esse horrível pensamento que meu lábio recusa expressar encontrou lugar em tua alma? Ah! – continuou, caindo aos pés do coronel e abraçando seus joelhos – Se tu necessitas de sangue, aqui está o meu! Toma esse punhal, abre uma a uma todas minhas veias, martiriza-me, arranca-me o coração, sepulta-me viva nessa incógnita tumba, mas tenha piedade de meu filho! Respeita sua vida, essa preciosa vida que recentemente começa a florescer. Oh, Ramírez! Se te esqueceste que és pai, recorda que és homem, compadece de sua juventude, de sua beleza, de seu futuro, esse formoso horizonte de promessas e esperanças que tu queres lhe roubar. O crime ainda não foi sentido: ainda há lugar para o arrependimento. Com que direito queres ser mais severo do que Deus, que sempre dá tempo ao culpado para reconhecer a sua falta?

A hora da fraqueza havia passado para o coronel. Seus lábios pálidos e severos sorriram amarga e desdenhosamente.

– O arrependimento! – exclamou – pode redimir um crime que desonra, ainda que este somente tenha existido no pensamento? Margarita! Tu sabes que não! Tu, ainda noiva, dizias ao teu esposo, quando, sem guardiões, ele estava contido sob sua palavra de honra: “Ramírez! Morre, mas não te desonres faltando com a palavra. Nada pode apagar as manchas da honra!”

– Ah! – respondeu ela chorando – era esposa, agora sou mãe! Oh! Tu a quem uma mulher levou em seu ventre e alimentou com seu sangue, em memória sua tem piedade da mãe que te pede de joelhos pela vida de seu filho.

Os passos de alguns cavalos soaram no pátio da chácara.

O coronel, tomando então violentamente a sua esposa em seus braços, procurou levá-la para fora do quarto, mas ela segurou-se em um dos pés da escrivaninha e os dedos finos e transparentes daquela mulher converteram-se em outras tantas molas de aço em que se debateu a força do coronel.

– Não! Não me arrancarão daqui – dizia ela com a voz embargada – Quero livrar meu filho da morte e a ti de um horrendo crime! Quero interpor meu peito entre o teu e os golpes de um assassino!

– Margarita! – exclamou – com voz solene – Queres ver teu filho morrer! Assim seja! Verás ele morrer, porque juro que nada pode salvá-lo!

Com estas palavras, os olhos da mãe cintilaram como os de uma leoa ferida, suas lágrimas secaram-se de repente e, colocando-se em pé, pálida e terrível como a imagem da fatalidade:

– Ramírez! – gritou, aproximando-se de seu marido – É verdade que nada pode salvar meu filho do horrível destino que lhe reservas?

– Nada! – respondeu com firmeza o coronel.

– Nada! – replicou ela, com tom estranho – Nada, nem minhas súplicas, nem minhas lágrimas, nem a memória dos dias felizes que nos deu vinte anos de sua existência!

– Nada! – repetiu ele com voz lúgubre – Sou um juiz e condenei um criminoso e eu mesmo executarei a sentença.

– Pois, morre tu! – gritou a mãe – morre, porque eu quero que meu filho viva, ainda que seja sobre as ruínas do mundo.

E, arrebatando o punhal que estava sobre a mesa, sepultou-o no coração de seu esposo.

Ao mesmo tempo, abriu-se a porta e um grito doloroso e aterrador ressoou no quarto.

– Minha mãe! Que fazeis! – exclamou Wenceslau, precipitando-se sobre o corpo do coronel, que havia caído morto sem exalar um único suspiro.

A mãe virou-se para ele com impassibilidade e desespero.

– Meu esposo havia jurado matar um traidor – disse ela – Esse traidor era meu filho e eu matei meu esposo para salvar meu filho!

No dia seguinte, diante de seu regimento, Wenceslau pálido, sombrio, elevando no coração um duelo triplo, marchava para reunir-se com o exército do general Oribe.

O dever havia interposto, entre ele e a felicidade, um voto terrível. Sobre o cadáver ensanguentado de seu pai e nas mãos de sua mãe moribunda, havia jurado esquecer para sempre Isabel.

VI Quebracho herrado

A noite de 28 de novembro havia estendido sua sombra sobre o campo desse nome.

O sol daquele dia havia visto o triunfo de Oribe e a derrota do exército unitário que, composto de guerreiros tão generosos como valentes, aceitou a batalha com forças inferiores e em um terreno desvantajoso, antes que desamparar, com uma marcha forçada, a emigração que lhe seguia. Mas a sorte recompensou mal a ousadia e a sublime abnegação daqueles heróis e coroou com o laurel da vitória as têmporas de seus inimigos, que se tornaram donos do campo.

Então, viu-se uma cena espantosa, em que o roubo, o assassinato e a violência saciaram sua horrível sede, nessa imensa emigração composta de veneráveis anciãos, de belas virgens e de crianças inocentes.

Mas àquela hora, o tumulto das armas, dos gritos dos combatentes e os gemidos das vítimas haviam cessado. A escuridão velava os lagos de sangue humano que inundavam a terra; a brisa da noite espalhava no fúnebre campo o delicioso perfume dos vizinhos bosques de aroma; a doce luz das estrelas refletiam sobre o rosto dos cadáveres, dava à sua atitude a aparência de um doce sonho; nada enfim, revelava ali um campo de batalha, se não fosse o profundo silêncio que reinava por todas as partes, silêncio somente interrompido pelo prolongado e lamentável canto da cigarra, que oculta entre a negra ramagem das algarrobeiras parecia chorar o destino daqueles heróis.

VII A profecia

De repente o eco longínquo de uma voz doce e triste fez calar a lúgubre melodia do inseto. A voz aproximava-se entoando o último canto de Julieta:

Oh! Sfortunato atendimi…
Non mi lasciare ancor…

Uma sombra branca, de forma vaporosa e vaga, desenhou-se entre as trevas. O sentinela avançado do exército vencedor, que acampava a algumas centenas de passos vendo-a chegar perto benzeu-se e fechou os olhos acreditando que era a alma de um daqueles mortos.

A sombra branca adentrou o campo de batalha. Era uma mulher jovem e bela, apesar da fragilidade de suas formas.

Sobre sua longa túnica branca, espalhava-se com admirável profusão uma cabeleira negra que, agitada pelo vento da noite, tinha a aparência de um amplo véu de luto. O olhar de seus grandes olhos negros era vago e estranho, como se uma sombra interpusera-se entre ela  e os objetos exteriores; seus lábios murmuravam alternadamente o canto de Julieta, as preces dos defuntos e o nome de Wenceslau, detendo-se diante dos mortos.

– Lezica! – disse, inclinando-se sobre um cadáver e afastando suavemente os sedosos cabelos castanhos, que ocultavam um rosto jovem cuja beleza a morte havia respeitado –  Lezica! Pobre criança, que ao ver a luz encontraste em torno de ti o luxo e a riqueza. Quem haveria dito à tua mãe, quando te embalava no berço de ouro e seda, que dormirias o teu último sono sobre o árido solo de um deserto! E quando beijava teus belos olhos azuis, quão distante estaria de imaginar que haviam de ser dos abutres!

– Varela! – exclamou contemplando o rosto rígido e imóvel de um homem estendido a curta distância e encharcado em seu sangue – nobre descendente dessa família de cisnes que encantou com suas melodias as ribeiras do Prata – a morte pôs seu negro selo entre os lauréis de vossas cabeças! Por quê! Eis que enquanto o chacal lambe teu sangue generoso, enquanto o tigre devora teu coração, onde arderam sublimes inspirações, o punhal do assassino prepara-se na sombra para sufocar com um só golpe o canto do poeta e o grito da liberdade do patriota! Ai, ai! – E começando novamente seu fúnebre canto, prosseguiu seu caminho.

O terreno por onde se dirigiu estava semeado de centenas de cadáveres, regado com rios de sangue, que molhavam os pés e a branca roupa daquela fantástica peregrina. Poderia ser dito que a espada do anjo exterminador passou por ali ou que a mão humana que havia segado a vida de tantos homens teve que executar uma grande vingança ou redimir uma grande falta.

Ao longe e ao fim daquela via sangrenta, rodeado de cadáveres, de fuzis descarregados, de lanças e espadas quebradas, jazia o corpo de um guerreiro, cujo nobre e belo rosto conservava ainda depois da morte uma expressão de ameaça. Ainda que tudo indicasse que era ele quem havia feito aquele estrago nas filas de seus inimigos, o aço destes não haviam ousado aproximar-se, pois aquele corpo esbelto e elegantemente vestido estava ileso, uma única bala havia-o matado, atravessando-lhe o coração. Sua mão ainda segurava a guarnição de sua espada e o vento da noite fazia ondear sobre seu peito essa terrível divisa vermelha, que continha o retrato de Rosas e a sentença de morte dos unitários.

A estranha viajante aproximava-se, passando seu olhar sobre os rostos sangrentos e mutilados dos mortos e chamando-os com voz lúgubre:

– Mons! Torres! Bustillos!

– Wenceslau! Wenceslau! – gritou em um transporte de gozo insensato, caindo de joelhos e abraçando o cadáver do belo guerreiro – Eis-me aqui, meu amado! Chego tarde; mas é que tu havias deixado teu leito perfumado às margens do Prata, para vir recostar-te neste solo distante, abrasado pelo sol e molhado pelo sangue.

Eu ouvi tua voz que me chamava e a bruma que de repente havia envolvido minha inteligência dissipou-se, o olhar da minha alma mostrou-te recostado em um leito nupcial, estendendo-me os braços e gritando: Isabel! Minha amada, minha esposa, vem! E eu rompi fortes correntes que seguravam meus pés e caminhei por um longo tempo, guiada pela voz que me chamava sempre: Isabel! Isabel! E eis-me aqui, chego coberta com o branco véu da desposada para unir-me  a ti em um abraço! Em um abraço eterno!… Mas… Oh Deus!… Seu peito está frio e imóvel, seus lábios pálidos e rígidos, seu olhar fixo e velado por uma sombra sinistra… Ah! É esse funesto talismã, essa funesta luva negra cuja vista introduz a dor no coração e cujo contato transtornou meu ser.

E reclinando sobre seus joelhos, aquela cabeça inanimada descobriu com a mão apressada o peito do cadáver.

– Oh! – gritou, apontando uma ferida profunda, de forma circular e bordas negras – Eis aí a mão de Manuela Rosas, que lhe há destroçado o peito para roubar-me seu coração! Ei-la ali que se aproxima para disputá-lo comigo ainda, para arremessar, outra vez entre ele e eu, como um desafio ao nosso amor, essa luva negra que nos separou. Para atrás! – gritou levantando-se e estendendo seus braços sobre o cadáver – Para atrás, mulher fatal para os que te amam! Teu véu branco de virgem está respingado de sangue! Sobre a tua cabeça está suspensa uma nuvem de lágrimas! Afaste-te! – continuou avançando, como para interromper o passo do fantasma que lhe apresentava sua imaginação – Não lhe toques! Porque o punhal da Mazorca cairá sobre ele… Ah! Não, é a sombra de meu pai que vaga gemendo entre os destroços frios dos seus companheiros! Meu pai! Não é este o último golpe que a mão de ferro do destino descarregará sobre os defensores da liberdade! Vês estes rios de sangue que correm por este campo? Assim correrá por longo tempo em toda a extensão do nosso belo solo. Mas a terra não pode absorvê-lo! Vês como a clemência de Deus eleva-se ao céu, para descer depois, como orvalho bendito? Olha lá, ao longe, no limite do horizonte… Não vês um valente guerreiro que se destaca das filas do exército federal? O mundo assombrado também o contempla porque é o herói que levantará sobre seus irmãos acorrentados o estandarte da liberdade; expulsará a tirania do seu trono ensanguentado e restituirá à pátria seu antigo esplendor e glória.

Volta a dormir no travesseiro da paz o sonho da morte, enquanto meu esposo toma-me em seus braços em nosso leito de bodas.

E o silêncio reinou outra vez no campo, o pampeiro mesclou os perfumes dos bosques de aromas com as emanações maléficas do sangue; as algarrobeiras deixaram cair suas flores sobre o rosto desfigurado dos cadáveres e a cigarra voltou a começar seu triste canto.

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Diz-se que todas as vezes que o tirano de Buenos Aires ia decretar alguma dessas sangrentas execuções, alguma dessas horríveis carnificinas que a desolaram, aparecia a altas horas da noite uma mulher de aspecto estranho que, coberta de um longo sudário e com os cabelos espalhados ao capricho dos ventos, dava volta três vezes ao redor da cidade, cantando com voz lúgubre as sombrias notas do “De profundis”.

Referências

GORRITI, Juana Manuela. Sueños y realidades. Tomo I. Buenos Aires: Biblioteca de la Nación, 1907, p. 91-125.