A poesia da extremidade: Murilo Mendes

Samanta Maia

RESUMO: Este ensaio propõe pensar o funcionamento da ideia de obstáculo epistemológico, conforme exposta por GastonBachelard, em Murilo Mendes, bem como discutir o perigo das “leituras fáceis” sobre a obra e o poeta.

PALAVRAS-CHAVE: Gaston Bachelard; Murilo Mendes; Obstáculo Epistemológico; Poesia.

ABSTRACT: This essay attempts to expose the workings of the notion of epistemological obstacle, as expounded by Gaston Bachelard, in Murilo Mendes, as well as discuss the danger of “easy readings” about the work and the poet.

KEYWORDS: Gaston Bachelard; Murilo Mendes; Epistemological Obstacle; Poetry.

 

Mas a poesia, como tudo que é humano, é uma filha da terra, por mais que a façamos fugir para o céu de nossos devaneios, para o azulado infinito de nossas aspirações; e como filha da terra, tem de lutar e sofrer a nosso lado, tem que gemer as nossas dores e carpir as nossas mágoas.
Sílvio Romero

Fédon empenhando-se em relatar em minúcias, para Equécrates, os últimos discursos de Sócrates, conta-lhe que Cebete, ao indagar a Sócrates as razões pelas quais ele, nos últimos dias de sua vida, se embrenhava na composição de versos, recebeu a seguinte resposta: o que me estimula não é o anseio pela concorrência com outros poetas, como Eveno, mas uma obrigação. Sócrates diz ter recebido mensagens em sonhos que lhe ordenavam que compusesse e executasse música, no entanto, não sabia que modalidade tinha de compor e executar, por fim acabou interpretando que compor música nada mais podia ser que compor Filosofia, “a música mais nobre”, e assim o fez por toda a sua vida, até o momento da prisão. Somente no tempo em que esteve preso é que ocorreu a Sócrates que a música de que tratava a mensagem talvez fosse a “espécie popular” de música, e só então, em obediência ao sonho, deu início às tais composições “populares” pelas quais lhe perguntava Cebete.

Esta pequena história é narrada por Platão no início do diálogo “Fédon”, e faço uso dela como metáfora de como o amor ou a paixão podem deturpar o objeto com o qual se está lidando. No caso de Sócrates, seu imenso amor pela Filosofia o vendou do primeiro sentido, o literal, o trivial e simples contido na mensagem, e fez com que optasse pelo inesperado, partisse pelo caminho mais tortuoso, o mais difícil: transformou música em Filosofia, quando o óbvio estava estampado e sacudido em sua frente – música era música mesmo.

A metáfora do sonho de Sócrates serve de introdução a este ensaio, cujo propósito é discutir, precisamente, se o amor àquilo que se almeja conhecer efetivamente deforma o conhecimento que se pretende obter, e como isso se dá na obra de Murilo Mendes, tomando como base leituras de Gaston Bachelard sobre o problema do conhecimento científico e o que pode constituir um obstáculo ao conhecimento, além de leituras críticas sobre a obra do escritor tratado. O ensaio não surgiu com a ambição de encontrar uma resposta para a poesia de Murilo Mendes, muito menos de abarcar toda a obra do poeta, surgiu para tratar de leituras fugitivas, buscando, primeiro, encontrar o modo de apresentação dessa poesia, para, em seguida, entendê-la.

Conduzo uma leitura de Murilo Mendes que acompanha a de José Guilherme Merquior, em “Murilo Mendes: ou a poética do visionário” (1964). O primeiro parágrafo do ensaio trata da dificuldade, apontada pelos críticos em geral, que apresenta a poesia do escritor. A união tão improvável entre a fantasia e “o mais vulgarmente cotidiano”, feita com naturalidade, de acordo comMerquior, é peça escassa na tradição poética, que não carrega consigo tantos conflitos, asperezas de expressão, e, como coloca muito bem o crítico: sustos de comunicação. Acrescento então ao que diz Davi Arrigucci (Arquitetura da Memória, 1997, p. 79) sobre essa poesia e esse escritor, aos quais cabe o “lugar de assombro”: caberia o “lugar de assombro” aos leitores e críticos.

Caberia? Merquior questiona a posição que os leitores e críticos têm diante de tal obra. Estes, mergulhados no assombro (efeito dos sustos de comunicação que a poesia provoca), se esquecem de entender a obra e gastam tempo discorrendo sobre a dificuldade dela.  Como exemplo, o crítico cita Péricles Eugênio da Silva Ramos, que, no capítulo sobre a poesia modernista (de A Literatura no Brasil, 1959), “pasmava diante do meteoro Murilo sem conseguir enriquecer-lhe a compreensão.” (MERQUIOR, 1965, p. 51).

A dificuldade de acesso ao objeto-obra é um efeito do choque com algo novo e tão peculiar e não pode ser entendida como característica participante da obra do escritor. Da estagnação no embaraço com a poesia só pode resultar leituras guiadas por esse embaraço. Merquior menciona as observações feitas por Mário de Andrade sobre a apropriação “abrasileirada” do movimento modernista surrealista efetuada por Murilo, dentre elas, a de que sua poesia nada tinha de “regional”, mas que era “um produto genérico, universalmente humano, despersonalizado e desindividualizado.” (MERQUIOR, 1965, p. 52-53). Pode-se concordar com parte dessa observação se se pensar no alcance dessa poesia, pois de fato os arranjos que o escritor faz com os elementos (e a escolha desses elementos[i]) permitem essa extensão. No entanto, as observações de Mário de Andrade descambam numa análise evasionista, isto é, reduzem a poesia a uma confusão dos planos do real com a finalidade de escapar do mundo concreto, da realidade.

Nem sempre o surrealismo sugere a evasão. Merquior ressalta a dimensão de ação que o surrealismo tinha (a proposta de agir sobre o mundo para transformá-lo), e desse modo a poesia de Murilo não pode ser uma fuga do mundo concreto[ii]. Propõe o crítico, então, o entendimento desta poesia a partir da poética do visionário: “Murilo agarra-se a um mundo concreto, atento ao moderno […] e à matéria […]. Não é escapismo – é uma forma imaginária de realismo.” (MERQUIOR, 1965, p. 57-58). A imaginação surrealista absorve a realidade tanto quanto o realismo. Através do visionário, a poesia de Murilo adota a “transformabilidade do real”:

Pois a mensagem sintética de Murilo é esta: a de que a significação do mundo reside essencialmente em seu dinamismo, e de que esse dinamismo, esse movimento, consiste em nosso poder de alterá-lo, ao arbítrio de nossa vontade criadora. (MERQUIOR, 1965, p. 68).

Admitida a relação do poeta com a realidade, leituras como a de Lúcia Miguel Pereira (1992 apud STERZI, 2012, p. 44) – que afirma que para o poeta as coisas não existem, que sua poesia, “descarnada”, é fruto da inexistência, e a ela apenas o “espírito” agrada – são superadas. A fidelidade de Murilo “ao caráter complexo e múltiplo da existência” (MERQUIOR, 1965, p. 57) é apontada por Merquior como amostra do conhecimento da realidade, e traduzida, na sua poesia, em forma de respeito a essa complexidade do humano.

Estando nesse plano do real, do mundo, calculo um poeta amante da realidade, e sendo assim amante, quis logo abraçá-la toda, porque só a tem em fragmentos, sob perspectivas. Também não é ele mesmo inteiro nesses fragmentos da realidade; o ser verdadeiro é a totalidade dos momentos, e por isso o movimento constitui um problema. Como ser todo o ser, apreender a complexidade da realidade no tempo? Daí Murilo embarcar no essencialismo de Ismael Nery e fazer de sua poesia uma proposta de supra-temporalidade, de eternidade, desejando universalizar-se, unificar-se, elevar-se.

Para o essencialismo de Nery, o sujeito deve unir as pontas do mundo, abstraindo tempo e espaço. Joana Matos Frias, emA poética essencialista de Murilo Mendes, descreve o poeta como um “conciliador de opostos”[iii] – característica assinalada por muito críticos como “barroquismo” (segundo Massaud Moisés, em Compreensão de Murilo Mendes, trata-se de uma manifestação da “tensão entre essência e forma”, os paradoxos são tentativas de conciliação).

O aspecto religioso de suas poesias salta dessa vontade expressa de elevação (vontade de conhecer Deus), de sair da sopa do tempo e ser, viver a realidade inteira. Matos Frias analisa essa ânsia pelo divino através da anulação dos limites, como uma ânsia por fazer-se Deus (FRIAS, 2000, p. 304). O amor à realidade é o amor à verdade, à vontade e criação de Deus, é o amor ao próprio Deus, tamanha vontade de envolver tudo isso resulta na vontade de ser tudo isso.

Pedro e água

1
Esta mulher sem fim e a noite sobre a noite
E esta fome de ti, meu Deus, – talvez de mim.
Quem sabe eu já morri, meu esqueleto eterno
Em pé nos séculos e nas ondas me reveste.

2
O Mar a escuridão esta fome de amor
Esta noite sem fim e o X de Deus
Que em nós todos vive morre e renasce
Espuma do mar eternamente e a pedra.
(MENDES, 1994 [1935], p. 274)

O acesso a Deus só se dá através do sensível. E Murilo não reduz Deus ao mundo sensível, mas expande o sensível. Logo, é controversa a explicação de Candido, em Pastor pianista / pianista pastor, sobre os novos nexos entre as palavras (criados por Murilo a partir do desmanche dos nexos usuais – de vazios que o obriguem a completá-los com novas significações), supondo um desejo aparente por uma “poética da ausência” (CANDIDO, 2008, p. 91). Aqui se fala de um desejo por uma “poética da presença”.

Para chegar-se a uma explicação do trabalho com a significação, que elabora Murilo, tem de se unir a esta a explicação religiosa da obra. “Como se apresentará a um poeta cristão o imenso universo da matéria informe, contendo a tradição do pecado, povoado de elementos separatistas, isto é, elementos que parecem nos isolar do Criador?” (MENDES, s/d [1952], p. 9). Como conciliar realidade e transcendência? Todo o universo é “sacralizado pela Graça”, ainda que a tradição do mal que se embute no universo e o perturba tente a todo o custo “seccionar a face unitária do mundo[iv]. As palavras estão dentro de um único campo de significação, e isto não quer dizer que abriguem um significado apenas. Os significados todos de uma palavra estão sempre no mesmo campo, juntos. As palavras são compartilhadas – e assim como o homem, são Queda e transfiguração[v]; quando caem, isto é, são usadas, estão abertas aos modos (de uso). Caída uma palavra, e estendido o seu campo, há de se considerar todos os significados restantes ao seu lado[vi] – transcender é somar e atravessar. Uma palavra é um significado e todos os outros que se coloquem em seu domínio (as palavras têm um histórico, que nunca pode ser esquecido – o que permite o “Áporo” de Drummond). Assim funciona a expansão de significados, não a partir de vazios, mas de presenças – significados presentes ao lado de outros significados num mesmo campo.

Gaston Bachelard, em A Formação do espírito científico, introduz a noção de obstáculo epistemológico. Obstáculo epistemológico é tudo aquilo que contribui para a solidificação de um saber e imobiliza qualquer questionamento, sendo um conhecimento empírico, sensível, que nos dá a impressão de uma certeza absoluta, que nos dá um conhecimento imediato e cômodo, no qual nos confortamos, e o qual acabamos por petrificar. Dentre os obstáculos descritos por Bachelard, está o “obstáculo substancialista”. A substância é a forma de revelação total do objeto, e crer na substância é crer num encontro possível com a totalidade, o que paralisaria o ímpeto de investigação. Confiar na substância é também deixar-se iludir: “O interior deve exaltar o exterior. Ao menos é o que desejam os sonhos.” (BACHELARD, 2005, p. 237).

No capítulo seguinte ao da substância, Bachelard, fazendo uma psicanálise do realista, alerta para o perigo de se fundir “uma paixão verdadeira com uma ideia falsa” (BACHELARD, 2005, p. 74), pois “é a paixão verdadeira que constitui um obstáculo à correção da idéia falsa.” (BACHELARD, 2005, p. 74). Amparados pela paixão, os preconceitos são confirmados pela adesão imediata do inconsciente.

Como amante da realidade e do essencial, de Deus, do verdadeiro, o poeta tem de amar aquilo que lida com ela, e que é capaz, ao menos enquanto acontece, de fazê-lo transpor a própria realidade – o trabalho:

A nosso ver, se formos ao fundo da alma, se revivermos o homem em seu longo trabalho, no trabalho que passa a ser fácil quando dominado, no próprio gesto do esforço bem dirigido, devemos lembrar que seu pensamento sonhava e que sua voz expressava sua ternura por meio de canções. (BACHELARD, 2005, p. 240).

Na poesia de Murilo, a afinidade entre o trabalho e o amor é mais do que necessária, motivadora. Para o tipo de conhecimento almejado, o poeta tem de se entregar às “seduções afetivas”: “O homem propõe e dispõe. Só depende dele se possuir totalmente, quer dizer, manter em estado anárquico o bando cada dia mais temível de seus desejos. A poesia lho ensina.” (BRETON, 2012[1924], p. 234). O trabalho apaixonado mantém concentrado o “poder surrealista do sonho”, isto é, ao mesmo tempo em que reforça a ligação do poeta com a realidade, o sustenta de sonhos (não de ilusões), tornando possível a expansão do sensível.

E o que é esse trabalho? A poesia mesma (que carrega em sua própria raiz etimológica grega, “poíesis”, o sentido de “produção”, ou ainda de “processo de produção”). O automático, o trabalho, poesia, e o não-automático, o amor, vivem num contato de choque.

Amor – vida

Vivi entre os homens
Que não me viram, não me ouviram
Nem me consolaram.
Eu fui o poeta que distribui seus dons
E que não recebe coisa alguma.
Fui envolvido na tempestade do amor,
Tive que amar até antes do meu nascimento.
Amor, palavra que funda e que consome os seres.
Fogo, fogo do inferno: melhor que o céu.
(MENDES, 1994 [1936-1937], p. 285).

Em “Amor – Vida”, poema publicado em “A poesia em pânico”, vê-se o poeta imerso, admitindo a solidão de seu ofício (o mesmo em “O Jogo”, poema citado na terceira nota de rodapé – “O amor e o abandono/ Atividade e solidão”), e a confissão do amor, impregnado em todas as coisas – até mesmo no pecado (“fogo, fogo do inferno”). Manuel Bandeira, em Apresentação da poesia brasileira, diz que Murilo compõe uma

poesia bem de católico, terrivelmente cônscio do pecado original e ao mesmo tempo como que feliz de todas as suas fraquezas pelo que elas implicam de amor – um fulgurante amor não só pelos seus semelhantes como por todas as criaturas e coisas da criação. (BANDEIRA, 2009, p. 202).

Destacando também a “conciliação dos contrários” é que Bandeira afirma que “a verdade é que ele sente Deus tanto na boa ação quanto no pecado.” (BANDEIRA, 2009, p. 202). Essa é uma rica observação – e creio que certeira –, pois imaginar um motivo para a conciliação de contrários que seja apenas “exposição da complexidade, do complicado ou custoso da natureza humana” é conjecturar partindo de pouco.

O complicado não é complicado apenas por que assim o é – a fraqueza (de que diz Bandeira, na citação acima) é estar na certeza, envolvido na realidade (“envolvido na tempestade do amor”), certa (contrariando Bachelard, a experiência primeira e as seguintes são acertos), é o medo de estar diante do conhecimento (que por isso é castigo, sufoco, choque) – “a nostalgia do infinito cresce” quando se sabe, e quando se sabe a distância que há entre o todo e a parte:

Enigma do amor

Olho-te fixamente para que permaneças em mim.
Toda esta ternura é feita de elementos opostos
Que eu concilio na síntese da poesia.

O conhecimento que tenho de ti
É um dos meus complexos castigos.
Adivinho através do véu que te cobre
O canto de amor sufocado,
O choque a palavra divina, a antecipação da morte.

Minha nostalgia do infinito cresce
Na razão direita do afastamento em que estou do teu corpo.
(MENDES, 1994 [1936-1937], p. 299).

Distância entre o tudo (só em Deus o conhecimento pode ser total) e o nada (deve ser total para ser válido? Deve ser humilde diante do que lhe é superior?):

Estudo nº 4

Quando se acalmará
Essa doença fértil a que chamam Vida?
Não quero soletrar o horizonte
Nem seguir o desenho da onda na areia,
Nem quero conversar flores no campo idílico.
Quero antes correr a cortina sobre mim mesmo,
Transcender minha história
E esperar que Deus remova meu corpo.
Quero tudo, ou nada:
Todas as paixões, todos os crimes, delícias e propriedades.
Ou então mergulhar num saco de cinzas,
Montar num avião de fogo, e nunca mais descer.
(MENDES, 1994 [1938-1941], p. 323).

Descrevendo as características do espírito pré-científico, Bachelard distingue o conhecimento unitário e pragmático como mais um obstáculo ao conhecimento científico. A unidade é sempre desejada, porque é, de certo modo, uma facilidade; o mundo, a natureza e todos os fenômenos ficam mais acessíveis se para todos acha-se um único mecanismo de funcionamento. Faz-se então agrupamento de tudo, apagando “todas as singularidades, todas as contradições, todas as hostilidades da experiência” (BACHELARD, 2005, p. 103).

A poesia de Murilo poderia facilmente ser acusada de planificar aquilo com o que lida; cabe ressaltar, entretanto, que ela não trata de uma busca por conhecimento científico, mas de um conhecimento essencial (o que abre margem para que sua poesia seja acusada também de valorizar a busca, fugir de um conhecimento objetivo – caindo no obstáculo da “manipulação da libido”). Murilo não tem uma visão genérica, homogênea ou harmônica da Natureza, há sim a aspiração pela unidade (a unidade em Deus, fora do tempo e do espaço). Viver num momento não é estar inteiro, mas com “todas as singularidades, todas as contradições, todas as hostilidades da experiência”.

Poema espiritual

Eu me sinto um fragmento de Deus
Como sou um resto de raiz
Um pouco de água dos mares
O braço desgarrado de uma constelação.
(…)
Na igreja há pernas, seios, ventres e cabelos
Em toda parte, até no altares.
Há grandes forças de matéria na terra e no mar
Que se entrelaçam e se casam reproduzindo
Mil versões dos pensamentos divinos.
A matéria é forte e absoluta
Sem ela não há poesia.
(MENDES, 1994 [1936-1937], p. 297)

Mais proveitoso é forçar o alargamento das imagens poéticas (dentro do conjunto, coeso, de possibilidades ofertadas pelo mundo de Murilo) do que entregá-las ao devaneio ou à dificuldade. É, também, mais desafiador[vii] entender esse mundo dentro da fixação (da eternidade) e da simultaneidade, do que dentro do provisório e mutativo (Bachelard).

A lição que sobra é a de entender os mundos poéticos com materiais dos próprios mundos poéticos – o que não é uma regra é uma escolha. Longe do que carrega consigo, e do que carrega o escritor, a poesia de Murilo Mendes vira muito pouco do que é realmente, pede muito pouco do que pede realmente – transforma-se, até, em outra coisa: na coisa mesmo que a lê.

Retomando o Fédon, de Platão, seria justo entender que Sócrates não fez mais que errar, quando tocou a música mais nobre?

Referências

ARRIGUCCI JR., Davi. Arquitetura da memória. In: ____. O cacto e as ruínas: a poesia entre outras artes. São Paulo: Duas cidades, 1997. p. 77-127.

BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. Versão digitalizada.

BANDEIRA, Manuel. Apresentação da poesia brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

BRETON, André. Manifesto do Surrealismo (1924). In: ____. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. 20ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012. p. 220-260.

CANDIDO, Antonio. Na Sala de Aula. São Paulo: Ática, 2008.

COLONNELI, Marco Valério Classe. Poíesis, tékhne e mímesis em Aristóteles [dissertação]. João Pessoa: Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, 2009. Disponível em: <http://www.cchla.ufpb.br/posletras/images/teses2009/Marco.pdf>. Acesso em: 13 Nov. 2012.

FRIAS, Joana Matos. A poética essencialista de Murilo Mendes. Revista da Faculdade de Letras: Línguas e Literaturas,Porto, XVII, 2000. Disponível em: <http://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/7692>. Acesso em: 11 Nov. 2012.

MARÍAS, Julían. História da filosofia. Tradução de Alexandre Pinheiro Torres. 7ª ed. Porto: Edições Sousa & Almeida, s/d.

LIMA, Jorge. Invenção de Orfeu. São Paulo: Círculo do Livro, s/d [1952].

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Org. Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. 1.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Org. Luciana Stegagno Picchio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. 2.

MERQUIOR, José Guilherme. Murilo Mendes ou a poética do visionário [1964]. In: ____. Razão do poema: Ensaios de crítica e de estética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. p. 51-68.

PLATÃO. Fédon. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/fedon.pdf>. Acesso em: 4 Nov. 2012.

REVISTA BRASILEIRA. Celebração – centenário Murilo Mendes. Outubro/Novembro/Dezembro, n. 29, 2001. In: Academia Brasileira de Letras. Disponível em: <http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=3236&sid=31>. Acesso em: 4 Nov. 2012.

ROMERO, Sylvio. Evolução do lyrismo brazileiro. Recife: J. B. Edelbrock, 1905. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00974800#page/1/mode/1up>. Acesso em: 11 Nov. 2012.

STERZI, Eduardo. Coisas, e a morte que existe nelas. Murilo Mendes e o trabalho do poeta. Remate de Males, Campinas, v. 32, n. 1, 2012. Disponível em: <http://www.iel.unicamp.br/revista/index.php/remate/article/view/2738>. Acesso em: 10 Nov. 2012.

 

[i] Como exemplos: pássaros – vida livre (em “Pássaros noturnos”, Parábola); negra pena – sutil serpente (em “Canção pesada”,Poesia Liberdade); idéias abstratas – rosas familiares (em “Idéias rosas”, Poesia Liberdade); mar furioso [“devolve à praia”] –fotografia [“de um assassino”] (em “Tempos duros”, Poesia Liberdade).

[ii] “Seu onirismo é apenas uma técnica de participação” (MERQUIOR, 1965, p. 52-53).

[iii] Em “Jogo”, publicado em Os quatro elementos (1935), tem-se um bom exemplo dessa conciliação: Cara ou coroa?/ Deus ou o demônio/ O amor ou o abandono/ Atividade ou solidão. // Abre-se a mão, coroa/ Deus e o demônio/ O amor e o abandono/ Atividade e solidão. (MENDES, 1994 [1935], p. 280).

[iv] “Ao nosso espírito o universo, embora cheio de terríveis contradições e violações da ordem, é sacralizado pela Graça. A heresia, […] tem insistido através dos séculos em seccionar a face unitária do mundo. Do Oriente veio a tradição de que o demônio penetra todos os pontos do universo criado, perturbando nossos gestos e atos mínimos. Nós, entretanto escolhemos a outra parte da tradição, […]. Preferimos ver na criação os sinais sensíveis da bênção divina, se bem que constatemos o esforço do espírito do mal para subverter a grande obra. (MENDES, s/d [1952], p. 10).

[v] Anárquica é a substância da palavra. “Anárquica é a própria substância do homem desde o instante da Queda, que é em última análise o tema desta imensa obra. Queda e transfiguração. O poeta não se vexa de apresentar a condição humana em sua precariedade, sob as espécies da argila terrestre.” (MENDES, s/d [1952], p. 15).

[vi] Jorge de Lima escreveu um soneto, parte de Invenção de Orfeu (donde foram tirados os excertos citados de Murilo Mendes – “Nota Preliminar” do livro), em que a exposição do que tento demonstrar é primorosa e exata: “XXVII // Há uns eclipses, há; e há outros casos: / de sementes de coisas serem outras, / rochedos esvoaçados por acasos / e acasos serem tudo, coisas todas. // Lãs de faces, madeiras invisíveis, / visão de coitos entre os impossíveis, / folhas brotando de âmagos de bronze, / demônios tristes choros nas bifrontes. // Tudo é veleiro sobre as ondas íris, / condores podem ser os baixos ramos, / montes boiarem, aços se delirem. // Vemos ao longe sombras, e são flâmulas, / lábios sedentos, lírios com ventosas, / ódios gerando flores amorosas.” (LIMA, s/d [1952], p. 51).

[vii] Desafio que é o propósito mesmo dessa poesia.