A vida e as obras de Sperone Speroni: Capítulo IV (Síntese: o homem – o escritor – o crítico)

Ana Luiza Leite Bado

Pretende-se, com esta tradução inédita de um dos capítulos da biografia escrita por Francesco Cammarosano em 1920, apresentar ao público uma breve noção de quem foi Sperone Speroni (1500-1588), um humanista, filósofo, literato que participou assiduamente dos debates sobre qual dos dialetos italianos seria capaz de assumir o status de língua nacional da península itálica, a chamada Questione della língua. Sperone fazia parte daqueles que defendiam o florentino erudito da sua época e ia contra proposta vencedora de Pietro Bembo, que visava a retomada da língua dos grandes escritores Boccaccio e Petrarca; por julgar que Bembo estava propondo apenas uma imitação que reproduzia uma língua artificial. Sperone tinha um pensamento moderno ao acreditar que as palavras eram como espelhos que refletiam a modernidade da qual elas faziam parte.

Pouco se tem de publicações e traduções do autor em questão que, nas palavras de Cammarosano, foi injustamente excluído da história e dos estudos da literatura italiana. Contudo, no que concerne às publicações no Brasil, no dia 22 de outubro de 2013, juntamente com o professor Dr. Sergio Romanelli, publiquei a tradução inédita do texto Diálogo acerca da Retórica, como o segundo volume da série Clássicos da língua italiana[1]. A tradução foi resultado dos trabalhos do grupo de pesquisa registrado no CNPq, Estudos Linguísticos e Aquisição-Aprendizagem do italiano como LE, e do projeto de pesquisa intituladoProjeto de tradução dos clássicos da polêmica quinhentista acerca da língua italiana ou Questione della Lingua (notes 2009.0852).

A vida e as obras de Sperone Speroni: Capítulo IV (Síntese: o homem – o escritor – o crítico)

O retrato moral de Speroni que foi delineado na escrita da sua biografia, prova que responde verdadeiramente ao elogio que os contemporâneos fizeram ao autor: vimos, de fato, nele, um pai exemplar, um estudioso incansável, um cidadão íntegro. Quanto ao escritor e ao crítico, foi exagerado o barulho que se fez em torno ao seu nome, e posteriormente, outros julgamentos reportaram à Canace e a muitas de suas orações, as suas observações críticas, contudo, os discursos, os diálogos se fizeram presentes nas atenções dos estudiosos das nossas letras. Paramos, portanto, para considerar a sua arte de escritor e a obra de crítico, vejamos como devem ser julgadas e como julgaram os historiadores da literatura.

Sperone, também afetado por defeitos comuns aos escritores do Renascimento, quando “a língua – como escreve De Sanctis – segregada do uso vivo, torna-se um cadáver dissecado, estudado, reproduzido artificialmente; e os italianos se debruçaram para aprender a escrever a língua deles como se faz com o latim ou com grego”. Vimos alguns critérios que formaram a sua educação literária, isto é, a imitação servil a Petrarca e a Boccaccio: “era da opinião – ele declara – que a nossa arte oratória e poética fosse outra coisa do que imitar os dois, escrevendo prosa e verso no modo deles”. E daí surge aquilo que De Sanctis define como um “grego artificial e convencional”: períodos longos que faltam o fôlego, e trabalhados, quanto aonumero, segundo cânones bem definidos, conseguem ser monótonos e cansativos. A propósito de qual numero, se ressalta aquilo que escreveu o próprio Speroni:

[…] assim como a composição da prosa se deve à seleção das palavras, assim a dos versos se deve à ordem entre as suas sílabas; com esses versos deleitando os ouvidos, a boa arte oratória começa, continua e termina a oração. Pois toda oração, como tem princípios, também tem meio e fim: no princípio se começa a argumentação e depois se intensifica; no meio quase cansada pelo esforço, permanecendo em pé descansa um pouco; em seguida, desce novamente e voa até o fim para se aquietar. […] a prosa alguma vez bem ordena as palavras não belas, e outra vez as belas acaba ordenando mal. E pode acontecer que, assim como na música, frequentemente as belas vozes não se harmonizam, e as não belas, ou por hábito ou por arte, se harmonizam, assim os pares, os similares e os contrários, todas as coisas por sua natureza bem ressoantes, alguma vez com voz áspera e disforme, outra vez estupidamente e com a boca aberta, a oração vai explicando. Finalmente, muitas vezes acontece que a prosa, composta perfeitamente, quase rio que se apraz do próprio curso, não cuida para chegar ao fim, mas para não deter-se pelo caminho, e segue; e se o fôlego não lhe faltasse, correria continuamente por toda a sua vida. Porém, recorremos à concordância, a qual, atravessando a estrada, prazerosamente, com elogios e com manias a convida a refrescar-se e descansar juntas; e não conseguindo com a cortesia, faz uso da força, e para seu bem contra a sua vontade, com a violência aprende. [2]

Muitos períodos, assim, são uma série de quinários, ou de quinários duplos. Peguemos algum exemplo:

[…] é sensato, segundo a meu ver, que algum ocioso leia, para subtrair-se do tédio, Terêncio, Platão, Ocidio, Gallo – e os epigramas de Marcial, – de Luciano a verdadeira história, – a mosca e o asno muito mais belos – que cada cavalo da Andaluzia, – mesmo que não fosse precioso – como foi o asno de Apuleio. Nós, padovanos – geralmente somos alegríssimos – não somente pelo amor próprio, particular e pela utilidade pública, onde os senhores são, não por parte, mas para o bem de todo o povo. Em tal discussão, eu realmente não darei a sentença; não a daria nem para mim mesmo temendo a ira dos literatos e recordando aquela de Páris, que na causa das três deusas […].

E poderíamos continuar por um pedaço.

Speroni, contudo, compensa esses defeitos com outros dotes: a vivacidade, por exemplo, a eficácia, perspicácia e a agradabilidade que se encontram, de preferência, nos diálogos. Nestes e nos discursos, o mestre da matéria, expõe com precisão e clareza os seus conceitos: se a discussão se torna árida e ameaça cansar o leitor, eis que Sperone julga oportuno restaurar digressões, fábulas e anedotas para amenizá-la. Além de abundar nas comparações, sobretudo com a arquitetura, música, pintura, escultura; nas explicações, nas metáforas, em todos os ornamentos retóricos, em resumo.

Quanto aos críticos, eles não entram em acordo ao julgar a arte de Speroni: alguns não hesitam ao colocá-lo entre os melhores escritores, outros o julgam artificial e entediante, não merecedor da fama que gozou entre os contemporâneos.

Acrescentamos o julgamento severo de De Sanctis, que reconhece nele a “cultura vasta e a inteligência não comum”. Tiraboschi assim escreve:

Ele foi um dos primeiros que se dispôs a escrever Tratados Morais em Língua Italiana, e o fez de modo que tirou dos outros a esperança de igualá-lo. O estilo de Speroni não possui nem aquela elegância artificial, nem aquela prolixa verborragia, nem a entediante languidez, que, infelizmente, é familiar aos escritores do século XVI. Parece que ele foge para pesquisar as mais graciosas expressões, e não por menos, ele é cultíssimo ao lado dos outros; e o que é mais valioso, ele sabe agregar a harmonia à gravidade e à precisão a eloquência…

Acena, em seguida, seus sucessos oratórios e prossegue: “No estilo familiar, Sperone não é menos elegante ou menos gracioso; e as suas cartas… não perdem para aquelas dos mais renomados escritores”. Os mesmos méritos são reconhecidos por Maffei; o Giordani encontra nos diálogos “um belíssimo e raro exemplo de uma filosófica precisão de estilo”, o mesmo se verifica em uma das suas cartas, que Leopardi notava no Speroni um exagerado cuidado com a harmonia. Para Ambrosoli, o Speroni “como prosador… está com os melhores; nem poderia ser reprovado, se não fosse um cuidadoso estudo da eufonia, por amor da qual introduz, frequentemente, nos seus períodos musicais poéticos e versos de cada medida”. Ignorando o Settembrini, que dedica somente duas palavras ao Speroni, e o Cantù, que o atribui diálogos jamais escritos por Sperone, vamos ao Fornari. Nas lições sobre Dialogo, o Fornari confessa:

[…] aquele escritor (o Speroni) eu não posso admirar nem por conceitos profundos e peregrinos, nem por arte os exporei: considero vazia a sua eloquência, insipido o seu falar, retórico, sonoro e excessivamente comedido o seu dizer. Sei que ele foi muito apreciado no seu século e louvado por grandes homens, mas eu noto que os que mais o elogiaram foram os mais entediantes prosadores, e os verdadeiramente bons, apenas o nomearam. Tanto é verdade que, mesmo nos melhores tempos, mais se atenta para o impressionante do que para o modesto, e mais se admira o artifício do que a arte.

O Bottari que, como vimos, examinou somente alguns dos diálogos morais e reconhece ao Speroni “a arte de expor com eficácia, a qual foi capaz de fazê-lo atingir uma grande fama”. Revela, depois, referindo-se sempre aos diálogos examinados:

Neles são usados os oportunos ornamentos, que servem, aqui e ali, para reviver muito bem a matéria: mas o período não procede sempre livre e desenvolto, e muitas vezes, o amor exagerado pelas transposições gasta, e não pouco, a prosa do nosso autor, o qual, somente nos lugares onde acampa o afeto, esquece a sua habitual gravidade, e torna eficaz.

Finalmente o Flamini nos recorda alguns discursos que “atestam a eficácia do seu estilo oratório”, declara que desses e das rimas prefere “o Diálogos, onde o Sperone, com estilo compassado e grave, mas não sem elegância, trata argumentos variados plenos de atrativos para nós modernos”.

Os contemporâneos de Speroni reconheciam nele, não somente o escritor, o orador, o filósofo, mas também o crítico de vasta cultura e de julgamento aguçado. Vimos como foi chamada a fazer parte dos revisores da Jerusalém Libertada, e como o Ronsard o fez expedir de um amigo comum um dos seus volumes “com fé para lê-lo e depois escrever nele o seu parecer”. E como crítico, hoje o Speroni é “particularmente levado em consideração”.

As suas observações em torno a Virgílio e Ariosto, a Xenofonte, a Dante, as próprias lições em defesa da Canace, a Apologia dos Diálogos, o confere entre os críticos do século XVI um lugar preeminente, mas tratou argumentos de crítica em tantos outros escritos fragmentados, e em muitas de suas cartas. A questão, por exemplo, sobre o sentido da catarse aristotélica é discutida – e com critérios diversos dos usuais – em uma carta de 1565 para Alvise Mocenigo: carta relembrada e resumida por Spingarn:

A sua explicação – escrive o Spingarn – é insustentável, considerando do ponto de vista filológico, mas a doutrina é do máximo interesse e da máxima modernidade. Pode-se entender, diz, que a misericórdia e o medo mantém a alma dos homens na escravidão, e que por consequência, seria conveniente que expurgassem eles de nós, mas insiste que Aristóteles não pode se referir a uma completa liberação da piedade e do medo – um modo de falar mais estoico do que peripatético – ele querendo que não nos liberemos dos afetos, os quais por si não são cativos, mas que os regremos.

A crítica speroniana foi dita, por muitos, maldosa e pedante; estes mesmos, porém, que o rotulam dessa forma não merecida, reconhecem que o Nosso dá prova, em muitas questões, de um discernimento agudíssimo, e, sempre de uma grande liberdade de julgamento.

Referências

CAMMAROSANO,F. “Capitolo IV. Sguardo Riassuntivo: L’uomo – Lo scrittore – Il Critico”. In: La vita e le opere di Sperone Speroni. Empoli: Tipografia R Noccioli, 1920, p. 245-250.

BADO, Ana Luiza Leite, ROMANELLI, Sergio (Org). Antologia Bilíngue. Diálogo Acerca da Retórica, Sperone Speroni. Tubarão: Ed. Copiart, Florianópolis: PGET/UFSC, 2013.

 

[1] Disponível na biblioteca digital da Pós Graduação em Estudos da Tradução da UFSC: www.pget.ufsc.br

[2] O trecho em questão pertence ao Diálogo acerca da Retórica. Cammarosano o cita no original, em italiano. Optei por citar a tradução (BADO, Ana Luiza Leite, ROMANELLI, Sergio. 2013, p.93,95) feita por mim e pelo professor doutor Sergio Romanelli, publicada em livro no ano passado.