As mentiras e as mentiras em O Museu Darbot, de Victor Giudice

Silvio Somer

RESUMO: A arte como fruto de caracterização arbitrária é contada com maestria por Victor Giudice no conto O Museu Darbot. Nele somos expostos à sordidez do comércio da arte com seu desnudamento e somos testemunhas, também, de um mundo em que as mentiras podem ser tão importantes para a promoção da arte quanto pinceladas precisas.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura brasileira; Arte; Autoridade.

ABSTRACT: Art as the result of arbitrary characterization is told masterfully by Victor Giudice in the short story O Museu Darbot. In it we are exposed to the sordidness of art trading and we bear witnesses, also, to a world in which lies can be so important for the promotion of art as precise strokes.

KEYWORDS: Brazilian literature; Art; Authority.

 

A rede de mentiras

O Museu Darbot é narrado em primeira pessoa por um narrador-protagonista não nomeado. A narrativa é lúcida, num entrelaçamento de perspectivas, ora assemelhada ao jornalismo, ora assemelhada a dados pessoais, mas sempre mantendo uma forte ligação com o modo jornalístico de contar uma história.

A narração começa com um resumo da vida de Jean-Baptiste Darbot, órfão criado pelo padre François Dominic Darbeaux, pároco local da cidade de Arles, França. Apesar da pequena diferença entre os sobrenomes, o narrador diz que “é certo que o religioso quis dar seu nome ao filho de criação” (GIUDICE, 1999, p. 110). Na mesma página, o narrador diz que em uma igreja de Arles teria sido encontrado o registro de um Jean-Baptiste Darbeaux “numa caligrafia quase ilegível” (GIUDICE, 1999, p. 110). Estas duas informações abalam um pouco a certeza de que se trata de uma verdade e de que o narrador é confiável, mas não o bastante, pois as coincidências são grandes demais para serem ignoradas. Além disso, o estilo da narrativa é tão fluído que simplesmente nos permitimos ser conduzidos pelas mãos do narrador.

Jean-Baptiste Darbot teria se mudado para o bairro São Cristóvão, no Rio de Janeiro, em 1896, após apaixonar-se por suas belezas naturais deslumbrantes. O francês teve contato com grandes pintores, como Eugène-Henri-Paul Gauguin e Vincent Willem Van Gogh, e com a escola Impressionista, mas seus esforços de pintura, na época em que morava na França, foram rechaçados e ele acabaria se desiludindo. Depois de três anos morando no Rio de Janeiro, sua paixão pela pintura renasceria. Desde o início, uma compulsão não-figurativa movera sua mão sobre a tela, não com pincéis, mas com espátulas. Ao mostrar suas criações ao pintor brasileiro Edmundo Novaes, este haveria dito que as cores e luzes abstratas de Jean-Baptiste Darbot representavam o nada. Comentário tão frequente que o francês escreveria na contracapa de um missal: “Eles dizem que eu pinto o nada. Mas juro que o nada é um poder concedido por Deus.” (GIUDICE, 1999, p. 111). Essa mesma frase é a epígrafe que encabeça a primeira página do conto.

Em 1921, Darbot morre de tuberculose no pobre quarto alugado em que morara quase todo o tempo de sua estadia no Rio de Janeiro. Como legado, Jean-Baptiste Darbot deixara 384 telas – apenas uma figurativa –, seu autorretrato e 383 abstrações futuramente associadas ao misticismo católico do artista. Aqui termina a biografia do grande gênio póstumo da pintura abstrata. O que segue é uma descrição dos sucessos póstumos da arte do pintor. Para dar credibilidade ao que nos conta, o narrador lança mão de um recurso narrativo eficiente: a sugestão. Primeiro, é sugerido que Jean-Baptiste Darbot seria um místico católico tentando representar o nada, sua característica mais bem sucedida que diz ter-lhe sido dada por Deus.

Para maior ilustração da sugestão de misticismo do pintor, veja-se a descrição do mais famoso quadro de Jean-Baptiste Darbot, feita pela voz do narrador:

A título de exemplo, uma das telas mais citadas, que eu batizei de Abstração 49, compõe-se quase que inteiramente de espessas volutas na cor terra de siena. A partir do centro, o marrom vai sendo invadido pelo amarelo, até ser atingido por duas espátulas brancas, sublinhadas por uma pequena cicatriz num verde diáfano. A luminosidade, numa explosão mágica, atinge o clímax na região correspondente a uma divisão áurea no sentido vertical do quadro. (GIUDICE, 1999, p. 114)

Uma segunda sugestão está ligada à autoridade atestada pelas instituições e personalidades encarregadas de organizar a arte. Sobre isto o narrador diz:

A impressão que se tem é de que os artistas atuais produzem com a preocupação de deixar bem claras as fases de sua obra. A finalidade seria facilitar o trabalho dos organizadores, caso algum dia se realizasse uma retrospectiva. Quem sabe? Em se tratando de arte e de século XX, tudo é possível. (GIUDICE, 1999, p. 113)

Este trecho tem ares de autocrítica, mas isto somente será descoberto no final do conto, quando as mentiras serão admitidas ao leitor. A última sugestão é a menos discreta e se dá através da citação de fontes ligadas à autoridade, que podem ser divididas em:

  • Instituições: Museu Guggenheim; sociedade de vendas por leilão Sotheby’s; Metropolitam Museum; Jornal do Brasil; O Globo; TV Tupi; TV Rio; Chase Manhattan Bank; Galeria Piratini; MASP; Folha de São Paulo; O Estado de São Paulo; Bienal de São Paulo; New Tork Times;
  • Personalidades: Eugène-Henri-Paul Gauguin; Vincent Willem van Gogh; Gustav Klimt; Oskar Kokoschka; Arnold Schoenberg; Georges Pierre Seurat;
  • Termos associados à arte: crítico; marchand; curador; exegese; gestalt.

A riqueza de fontes citadas dá crédito à narrativa e essas mesmas fontes servem para dar nuances significativas ao enredo.

Desde criança, o narrador havia ouvido falar de um pintor que morara no porão da casa de seu avô, um sobrado no bairro São Cristóvão. Em 1945, ao visitar o sobrado, que agora pertence à sua tia Zuzu, o narrador desce com o primo ao porão, onde continuam abandonadas as telas de Jean-Baptiste Darbot. A visão e o conhecimento das obras causam impacto já neste momento e a relação do narrador com elas durará por toda sua vida, num processo de mudança profunda de ambos. Das mais de quatrocentas telas contabilizadas, algumas se perdem por causa de uma infiltração, mas a maioria se mantém seca porque ainda outra infiltração permite que os raios de sol mantenham o porão seco. Ao ser interrogada sobre o pintor, a tia disse que este havia sido um “marinheiro francês sem eira nem beira, que deu com os costados no Rio de Janeiro.” (GIUDICE, 1999, p. 116).

Aos dezesseis anos, o narrador tenciona estudar Belas Artes e, para isso, recebe apoio dos pais. Em seu segundo ano de curso, ele mostra uma das telas recuperadas e sua tia é a primeira pessoa a pedir-lhe um quadro. Em seguida, a mãe dele lhe faz o mesmo pedido. Em 1958, aos 24 anos, é promovida a primeira exposição dos quadros encontrados no porão. Mesmo tendo preços baixos, o resultado é um fracasso, pois nenhuma tela é vendida. No entanto, o narrador não desiste e muda de tática. Ele convence Marianne Bogardus, proprietária da maior galeria da Zona Sul, a Bogardus, a avaliar uma das telas restauradas. Neste ponto da narrativa, surge um quadro de importância capital, Abstração 49.

Marianne era uma profissional na área da venda de quadros e provou-o desde o início, quando contemplou a Abstração 49pela primeira vez e pareceu imergir no quadro. Primeiro, ela o fixa atentamente, depois muda a moldura e aprova a pintura. Voltando a fixar o quadro, ela o analisa detalhadamente, inclusive com uma lupa e se demora na assinatura do pintor, um quadrado com as letras DAR na parte superior e BOT na parte inferior. Ao ser indagado quanto ao valor do quadro, o narrador responde que não quer apenas vendê-lo, uma vez que seu intuito primeiro é revelar ao mundo o pintor Jean-Baptiste Darbot, o gênio injustiçado.

Marianne Bogardus organiza uma tabela de preços em que o quadro mais barato custa mil e seiscentos dólares, valores bem acima dos que haviam sido pedidos na primeira exposição. O público e a imprensa da televisão, do rádio e dos jornais vão à vernissage, na qual a proprietária, com a ajuda do narrador, vende os quinze quadros expostos para um magnata árabe chamado Tarik Benzayad, que havia sido atraído por uma notícia de jornal. Novamente, Marianne Bogardus mostra que sabe o que está fazendo quando encena um pequeno drama com a finalidade de elevar um pouco o valor do conjunto de quadros. Para isso, ela conta com o auxílio do narrador e todos ficam felizes.

A cobertura jornalística é abundante e chega mesmo à Europa e aos Estados Unidos. “A base do noticiário nacional e internacional era a mesma: “[…] Impressionista esquecido renasce no Brasil.” (GIUDICE, 1999, p. 127). É aqui que começa a fama de Jean-Baptiste Darbot, pois galerias nacionais já se interessam em fazer exposições de obras do francês redescoberto e imediatamente entram em contato com Marianne Bogardus com esta intenção. A proprietária da galeria pede novos quadros ao narrador e este diz que tem outras 369 telas, embora antes tivesse afirmado possuir apenas as quinze que foram compradas pelo magnata árabe.

Com os novos quadros restaurados, uma nova tabela de preços é feita – com valores entre três mil e quatrocentos a seis mil e cem dólares. No entanto, no futuro os valores voltam a mudar. Junto às boas vendas também aparecem as boas críticas, o que contribui para valorizar ainda mais o conjunto da obra. Um crítico compara os quadros de Jean-Baptiste Darbot aos de Georges Seurat, outro que “não só faz a exegese do abstracionismo darbotiano, como foi um dos primeiros a associar as intenções de Darbot ao pensamento religioso.” (GIUDICE, 1999, p. 130). Seguem-se novas exposições de grande sucesso comercial, mas o que propicia o reconhecimento internacional se dá através de uma exposição em Bruxelas, na Galeria Ménilmontant, a convite desta.

Os negócios vão muito bem e, em 1980, Marianne Bogardus morre. Desde 1978 uma amiga de Recife, Odete, cuida dela e depois disso passa a cuidar da galeria. Com o passar do tempo, ela também se torna mais próxima da família do narrador. Algum tempo depois, Odete conta a verdade sobre Marianne Bogardus, cujo nome verdadeiro era Mariana da Veneração dos Santos Borgerth. Neta de alemães, por parte de pai, nasceu no Ceará e, ao mudar para o Rio de Janeiro, altera o nome e incorpora o sotaque alemão, língua de que tem um conhecimento razoável. Ela explica esta elaborada mentira dizendo que “carioca não acreditava em cearense.” (GIUDICE, 1999, p. 135). Odete também confessa ser prima de Marianne Bogardus e diz que o avô desta era um pintor de botequim, fato que contribuiu para que ela gostasse de pintura.

Numa exposição das obras de Jean-Baptiste Darbot em Nova Iorque durante uma conversa com Philip D’Amico, funcionário do Museu Guggenheim que promovera o evento, este comenta o teor da próxima exposição: “obras de arte que representassem […] coisas inexistentes” (GIUDICE, 1999, p. 141). Ele cita vários exemplos, que vão de Tristão e Isolda ao Minotauro, passando pela Távola Redonda e pelo gigante Gogmagog, ao que o narrador responde: “E Darbot.” (GIUDICE, 1999, p. 141). Em seguida, ele conta que as telas de Jean-Baptiste Darbot eram todas marinhas, com exceção do autorretrato, e que os barcos apareciam apenas na parte de baixo das pinturas. Durante sete anos, o narrador diz ter sabido que havia algo de errado a ser corrigido nas pinturas, embora ele não soubesse o que era, mas um acaso esclareceu a situação quando num dos quadros semi-escondidos os elementos figurativos não estavam visíveis e “[p]or uma coincidência definitiva, um raio de sol poente atingiu o quadro.” (GIUDICE, 1999, p. 142).

Inicialmente, o narrador se pergunta sobre a legitimidade de seus atos, mas acaba se convencendo de que nada havia feito algo de errado, exceto pelo pensamento que inventou e escreveu atrás do missal. Mesmo assim, ele considera este um “toque de gênio” (GIUDICE, 1999, p. 143) e conclui: “Foi assim que, de retoque em retoque, eu construí a lenda de Darbot.” (GIUDICE, 1999, p. 143). Inesperadamente, Philip D’Amico não se mostrou contrafeito, nem mesmo parece ter expressado grande assombro, apenas se mostrou divertido.

As últimas mentiras reveladas são deixadas para o final, quando o narrador nos conta que o verdadeiro nome de Jean-Baptiste Darbot era Darcy Botelho, que, de modo semelhante a Marianne Bogardus, inventou um nome para si, possivelmente por acreditar que “carioca não acredita em pintor baiano” (GIUDICE, 1999, p. 144) e que o modelo do autorretrato não foi Jean-Baptiste Darbot, mas o avô do narrador.

Os nomes

Por meio do conto alguns nomes adquirem grande importância e, como numa sinonímia – em uma relação direta entre palavra e coisa – aquelas passam a determinar o valor destas. Os nomes mais importantes são os seguintes:

  • Darbot: em O Museu Darbot o pintor “francês” na maior parte do tempo é chamado apenas pelo sobrenome e suas obras passam a receber o mesmo tratamento. Por exemplo: “um Darbot” é usado para designar uma pintura de Jean-Baptiste Darbot; o adjetivo “darbotiano” foi criado para designar algo com as características mais marcantes do pintor, como síntese de cores e misticismo associado à iluminação. O narrador supõe que o pintor baiano Darcy Botelho tenha criado sua assinatura afrancesada para ligá-lo à França e talvez por não acreditar que os cariocas lhe dariam valor por ter nascido na Bahia;
  • Marianne Bogardus: de modo semelhante a Darcy Botelho, muda de nome para ser aceita. Em mais um paralelo com o pintor baiano, a cearense Mariana da Veneração dos Santos Borgerth também muda de nacionalidade, embora, aparentemente, aquele nunca tenha afirmado em vida ser de nacionalidade francesa, o que seria uma mentira óbvia, enquanto esta mantém a verdade bem escondida por muitos anos com grande sucesso;
  • O narrador: este não é nomeado em momento algum do conto, apesar de afirmar de diferentes formas que seu nome está intimamente relacionado ao de Jean-Baptiste Darbot, ou apenas Darbot, pois quando se fala em um ou em outro ele é imediatamente lembrado. Ao final do conto, o narrador confessa que com o passar dos anos passa a ver-se como Darbot, mas quando o crítico de arte do New York Times o ignora durante a exposição no Museu Guggenheim, o brasileiro percebe que Darbot e ele são, e sempre foram, duas entidades separadas. O fato de o narrador não se identificar é significativo, pois o anonimato parece fazer dele uma pessoa modesta, no entanto, o mais provável é que esta lacuna tenha relação com o vazio simbólico.

Assim como a composição do enredo se faz com a intercalação de informações documentais e de informações pessoais, há um processo semelhante em andamento com os personagens e seus nomes escolhidos: o resultado seria uma confusão naquilo que poderia ter sido uma polifonia ou mesmo um diálogo entre o que é de direito e o que é de fato. O novo nome torna-se muito mais importante do que o nome antigo, mesmo quando a verdade é revelada para alguns poucos selecionados. Estes nada fazem para expor a verdade ou mesmo para dessacralizar a arte. E o motivo é simples: todos são coniventes. Todos estão envolvidos num processo de vender o nada, num comércio de bens simbólicos. A mentira toma o lugar da verdade e se ramifica. Com o tempo, deixa de ter o direito de existir e passa a existir de fato. Assim começa o culto obsessivo e inconsequente da arte.

Criando a teia

Ao iniciar a narrativa com um estilo jornalístico, o narrador já conduz muito habilmente o leitor para a crença na palavra escrita à sua frente. Em conjunto com todas as formas de autoridades comentadas (documentos, acontecimentos históricos, referências mundiais, citações em rádios, emissoras de televisão, jornais, revistas, cidades e países com tradição artística), essas duas características são usadas para dar crédito à narrativa. A estrutura do conto nos mostra como construir uma mentira bem refinada e bem elaborada.

Apesar de o estilo jornalístico apoiar-se na autoridade das fontes, é o envolvimento de um terceiro fator que ajuda o leitor a identificar-se mais profundamente com o narrador-protagonista: o relato pessoal. Isto se dá através da escrita emocional, enquanto conta os acontecimentos desde os seus onze anos de idade. O que foi por ele vivenciado ainda parece bastante vívido em sua memória de adulto. Dessa forma, dois momentos da vida tão distantes no tempo e tão enamorados de um mesmo objeto: consagrar-se junto com as pinturas de Darcy Botelho. Esta nostalgia se assemelha um pouco à de Bento Santiago, narrador-protagonista do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, cujo amor de infância por Capitu teve grande importância ainda em sua vida de adulto.

As diferenças de pontos de vista expostas pelo narrador nos remetem a uma estrutura centralizada no próprio narrador, da qual proliferam novas possibilidades de interpretação. Pelo fato de somente ele ter voz ativa, os outros personagens são contados por ele, isto é, ele se torna autor da história na qual figura também como personagem. Assim, mergulhamos num abismo supostamente planejado por ele, ou quem sabe pelo autor deste autor-narrador-protagonista, Victor Giudice. Sobre isto, no livro O que é um auto?, Michel Foucault diz: “[…] o autor não é exatamente nem o proprietário nem o responsável por seus textos; não é nem o produtor nem o inventor deles.” (FOUCAULT, 1992, p. 264).

É sabido que o autor controla sua história até certo ponto, mas deve-se dar a ele algum crédito, pois há técnicas e modos sutis de encaminhar o leitor a uma conclusão, o que faz com que exerça a função de “cirurgião da língua”. Esta precisão da linguagem corresponde ao que Italo Calvino disse ao tratar da “exatidão”, no livro Seis Propostas para o Próximo Milênio:

[…] exatidão quer dizer principalmente três coisas:
1)  um projeto de obra bem definido e calculado;
2)  a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis […];
3)  uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação. (CALVINO, 1990, p. 71-72).

Tratando novamente do narrador-protagonista Bento Santiago, é importante lembrar que este era um advogado, com longa prática retórica, enquanto o narrador de O Museu Darbot não parece dominar a língua tão bem quanto aquele. No entanto, a mentira construída por ele é tão hábil e envolvente que ele parece ser inocente o tempo todo e, caso ele não contasse a verdade, nada se saberia do que, de fato, havia ocorrido. Mas quais são as verdades, ou, mais precisamente, que verdades nos restam?

Ao final da leitura (e possível releitura) percebemos outras possibilidades de interpretação quando as dúvidas se instalam em nossas mentes. Já sabemos que o narrador, sua família, Marianne Bogardus, Odete e sua futura esposa Lonie, além do funcionário do Museu Guggenheim, sabem de pelo menos uma parte da verdade, mas até quando eles guardarão estas informações e como eles encaram o conhecimento adquirido? Não sabemos quais são as intenções de qualquer um deles, pois o trabalho subterrâneo é, pelo menos, tão importante quanto o que é visível. Apesar de o conto terminar com confissões e grandes emoções para o narrador, ainda assim é difícil acreditar totalmente nele, de forma semelhante ao que acontece com Brás Cubas, personagem de um outro romance de Machado de Assis. Não sabemos, por exemplo, quando foi que este narrador não-confiável começou a arquitetar seu plano; também não sabemos o quanto ele ficou atribulado ao ver que sua mentira tomava dimensões mundiais. Levando isto em consideração, pode-se pensar que o desfecho não é totalmente conclusivo – o que agrega valor ao conto ficcional –, no entanto não mais se acredita em tudo o que nos é contado pelo narrador. Umberto Eco fala sobre isto no livro Seis Passeios pelos Bosques da Ficção:

A forma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge chamou de ‘suspensão da descrença’. O leitor tem de saber que o que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está contando mentiras. […] Aceitamos o acordo ficcional e fingimos que o que é narrado de fato aconteceu. (ECO, 1994, p. 81).

Arte

O mundo artístico mostrado pelo narrador é feito de arbitrariedades (os valores dos quadros ficam cada vez mais altos à medida que passam a ser mais conhecidos; um pintor medíocre passa a ser considerado genial mesmo pelas pessoas que entendem de arte), de falsidades (as histórias de vida do pintor Jean-Baptiste Darbot e de Marianne Bogardus) e de crenças (os críticos consideram o pensamento escrito atrás do missal como sendo da autoria do pintor, o que os leva a observar suas criações estéticas sob a ótica do misticismo católico), nem sempre com más intenções, mas o que resta é um conjunto de pessoas dedicadas a comprar e vender o nada, no qual a arte se legitimiza através de seus próprios discursos, assim o que era nada tem seu valor monetário inflacionado. Este processo ocorre de forma que as pessoas especializadas em arte sejam justificadas pela existência da arte, da mesma forma que a existência da arte é justificada pela existência destas pessoas, num processo em que um se espelha no outro. Quer Diego Velásquez tivesse ou não a intenção de nos mostrar este jogo de espelhos, o resultado é vertiginoso no quadro As Meninas. Sem aviso há o mise em abyme desconcertante: de fora vemos as personagens do quadro, vemos o processo de produção artística em que o pintor retrata a si mesmo em frente à tela com um pincel na mão e, por fim, vemos ao fundo um espelho e percebemos que também somos personagens, secundários, mas importantes, pois se não houvesse quem apreciasse a arte, de que valeria ela? É possível que assim repliquemos o processo de valorização do nada, justificando a arte pela nossa existência e a existência da arte porque nós a apreciamos. Caso assim o seja, que outra possibilidade daria legitimidade à existência da arte?

Para o narrador, as câmeras de televisão, os microfones das emissoras de rádio e os flashes das máquinas fotográficas de jornalistas parecem resolver muito bem a questão, ao dizer que “[à]s nove horas, as equipes da TV Tupi e da TV Rio invadiram a Bogardus, levando a legitimação em cada câmera, em cada refletor, em cada tomada.” (GIUDICE, 1999, p. 125).

Como pode a arte existir quando sabemos que ela é vazia? Ela é, sem qualquer coisa que dê um valor aos símbolos por ela representados, ela existe, sem necessidade. Com base no conto de Victor Giudice, chegamos à conclusão de que a arte é uma mercadoria e, como tal, ela está sujeita às mudanças de valor estabelecidas pelas regras do mercado. Inicialmente, algumas telas foram oferecidas com promessa de qualidade, isto é, frutos do trabalho de um grande pintor. Por alguns anos, novas pinturas chegaram ao mercado, até que foi necessário diminuir a oferta, caso contrário a quantidade excessiva faria com que o preço diminuísse. Aqui, deve ser observado que a variação de preço não tem ligação direta com o valor simbólico na arte, no entanto, a aquisição das pinturas por uma quantidade excessiva de pessoas poderia fazer com que o valor simbólico diminuísse. O embargo e o lobby, dentre outras formas de exercer a autoridade, podem promover o aumento do preço de uma obra de arte.

Esta última observação faz com que pensemos na arte como algo ainda mais vazio, se é que isso é possível. No entanto, ao se pensar nas relações mercantis como produto direto das ligações sociais, há um reforço do truísmo do espelho arte-artista/especialista em arte. O abismo presente neste espelho nos observa com olhos ávidos e cores vivas.

Referências

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Belo Horizonte: Vega, 1992.

GIUDICE, Victor. O museu Darbot e outros mistérios & Do catálogo de flores. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.