O sensível partilhado e a ilusão de poder

Marília Westin Oliveira Garcia

RESUMO: Após uma leitura atenta das obras Angústia, de Graciliano Ramos, e O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, percebemos que os protagonistas ora posicionam-se como detentores de poder, ora como fracassados. Este estudo procura relacionar tal alternância constante ao fato de os personagens também exercerem a função de autores e analisar de que maneira o ato da escrita – que atravessa as duas obras – contribui para a instauração de uma nova configuração do fazer, do ver e do pensar, para, por fim, entendermos o funcionamento das obras.

PALAVRAS-CHAVE: Graciliano Ramos; Cyro dos Anjos; escrita; devir; heterotopia.

ABSTRACT: After an attentive reading of Graciliano Ramos’ Angústia (Anguish) and Cyro dos Anjos’ O amanuense Belmiro (The amanuensis Belmiro), we realize that the main characters sometimes perceive themselves as powerful and, at other times, as failures. This study aims at interrelating this constant alternation with the fact that the characters themselves play a role as authors in the narratives. It also aims at analyzing in what way the act of writing – which pervades both books – contributes to the establishment of a new framework for acting, seeing and thinking, so, at the end, we can understand the functioning of these two literary works.

KEYWORDS: Graciliano Ramos; Cyro dos Anjos; act of writing; becoming; heterotopia.

 

Tanto em Angústia, de Graciliano Ramos, como em O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, os personagens, que também ocupam a posição de autores de seus próprios livros, ora se percebem dotados de um poder fenomenal adquirido pelo exercício da escrita e ora se colocam em uma posição extremamente inferiorizada. Podemos então dizer que o ato do fazer literário concede poder aos personagens? E, caso conceda, o que faz com que esses personagens alternem-se entre as posições de pária e de rei?

Para que tais questionamentos sejam respondidos, é preciso, inicialmente, procurar entender a relação entre o poder e o ato da escrita e, por fim, analisar como esse poder se manifesta na obra e porque tais manifestações não correspondem a uma constância. Vale ressaltar que o termo autor, quando utilizado, refere-se aos personagens com função de autor, aos autores ficcionais.

Jacques Rancière (2005) entende que a literatura desestabiliza a partilha do sensível, ou seja, desestabiliza a relação entre o comum partilhado – parcela do mundo sensível pertencente a todos – e suas partes exclusivas, definidas pelas ocupações sociais, que atribuem, a uns e outros, competências ou incompetências para a participação em outras parcelas do mundo sensível.

Para o autor, a partilha do sensível “faz ver quem pode tomar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce” (RANCIÈRE, 2005, p. 16).

Qualquer que seja a especificidade dos circuitos econômicos nos quais se inserem, as práticas artísticas não constituem “uma exceção” às outras práticas. Elas representam e reconfiguram as partilhas dessas atividades. (RANCIÈRE, 2005, p. 69).

A partir do momento que tal partilha é desestabilizada – através do ato da escrita, através do fazer literário –, novas configurações do fazer, do ver e do pensar são instauradas, pois a literatura, por circular em todas as esferas sociais, abala a noção primeira de que cada um tem direito apenas à determinada parte do mundo.

Há escrita quando a palavra pode ser dita a partir de outro lugar, de outro contexto e permite que qualquer um, independentemente da posição que ocupa na partilha do sensível, seja apto a fazer tal re-enunciação. Ao instaurar tal indeterminação democrática, a escrita também possibilita que qualquer um se apodere da sua voz.

Segundo Deleuze, a literatura tem como função primeira estabelecer relações de resistência muitas vezes impossíveis no mundo fora do livro, pois o ato da escrita é atravessado por uma série de mudanças no ato de ser e pelo estabelecimento de um entrelugar. “Escrever é atravessado por estranhos devires.” (DELEUZE, 2011, p. 17).

Quando esses personagens socialmente frustrados e eminentemente fracassados apoderam-se da escrita, passam a ocupar um espaço que inicialmente parecia inalcançável. Tomados por um devir-autor, por um devir-pai, estabelecem uma aliança não natural com o que essa tomada de lugar e essa tomada da palavra lhes conferem, mas não conseguem desprender-se do seu contexto anterior.

O fato de tanto Belmiro como Luís da Silva possuírem o poder das palavras faz com que eles se sintam detentores das palavras de poder:

Em verdade vos digo: o que escreve neste caderno não é o homem fraco que há pouco entrou no escritório. É um homem poderoso, que espia para dentro, sorri e diz: “Ora bolas”. (ANJOS, 1983, p. 188).

A linguagem escrita é uma safadeza que vocês inventaram para enganar a humanidade, em negócios ou com mentiras.
[…]
Escrevo, invento mentiras sem dificuldade. Mas minhas mãos são fracas, e nunca realizo o que imagino. (RAMOS, 1980, p. 82 – 225).

A fraqueza e a força caminham juntas e manifestam-se nas obras em regime de alternância. Tanto Luís da Silva como Belmiro participam de dois contextos – o contexto de autores da obra, que na instância da enunciação gera uma infinidade de outros contextos secundários por meio da desestabilização da partilha pré-dada do sensível, e o contexto do mundo vivido por eles, que assume valor do mundo real e não permite que essa partilha sofra modificações.

Esses dois contextos gerais são instaurados pelo fato da obra de ficção fazer parte de uma heterotopia, um lugar que está fora de todos os outros lugares, mas que ao mesmo tempo pertence ao mundo.

As heterotopias “têm o papel de criar um espaço de ilusão que denuncia como mais ilusório ainda qualquer espaço real, todos os posicionamentos no interior dos quais a vida humana é compartimentalizada” (FOUCAULT, 2013, p.420). A relação espacial entre os corpos, no momento em que os personagens instauram-se na heterotopia da escritura, adquire movimento, fluidez, propondo uma reconfiguração do sensível.

Para Deleuze e Guattari (1997b), essa configuração fluida é característica de espaços lisos, que se opõem aos espaços estriados, definidos pela estabilidade. Durante o ato da escrita os personagens recusam o estriamento social imposto e criam um espaço de certa forma maleável, reconfigurável. Por não poderem experimentar o poder no espaço real, procuram experimentá-lo no espaço da ficção. Ao notarem que o espaço ficcional heterotópico liso está situado paralelamente em relação ao espaço estriado em que de fato vivem e que a recusa do estriamento social é apenas momentânea, percebem-se incapazes de instaurar mudanças, sentem-se inferiores.

A sensação de inferioridade aparece atrelada ao devir-animal, à “regressão em direção ao menos diferenciado” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 15), que caminha para a multiplicidade: não são nem homem nem bicho, são um entremeio, uma simbiose, um “duplo aspecto de progressão-regressão” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 12).

Durante esse devir, Belmiro avizinha-se a um cachorro abandonado – “Qualquer coisa me liga a esse cachorro magro e abandonado que encontrei na Rua dos Pampas.” (ANJOS, 1983, p. 202) – e Luís da Silva avizinha-se a um porco – “Um porco, parecia um porco. Essa comparação não me entristecia. Desejava ser como os bichos e afastar-me dos outros homens” (RAMOS, 1980, p. 220). Ao tornarem-se para si o que tais animais representam para a sociedade, perdem a sua individualidade e passam a ocupar uma posição massificada.

A oscilação entre condição de pária e de rei ocorre paralelamente ao desaparecimento do personagem-autor, vivente do mundo heterotópico da escritura, que adquire a forma do personagem vivente do mundo não heterotópico, que, por sua vez, assume o valor de “mundo real”.

Essa estética da compensação e da necessidade de poder que parece, inicialmente, enevoada, adquire transparência quando uma leitura a contrapelo é realizada, afinal, segundo Foucault (2013), o autor possui uma pluralidade de egos que se dispersam simultaneamente; são eles o “eu” enquanto indivíduo determinado, o “eu” que “designa um plano e um momento que qualquer um pode ocupar” (FOUCAULT, 2013, p. 283) e o “eu” que procura dar sentido a sua obra, que procura convencer o seu leitor. Não devemos confiar plenamente em nossos narradores-autores, pois eles defendem sua própria história.

Enquanto em Angústia Luís da Silva tenta conquistar a nossa aprovação mesmo diante de suas atitudes mais extremas, em O amanuense Belmiro o protagonista tenta nos convencer de que sua história é um diário íntimo, porém prevê um leitor e explicita que as suas anotações passam por um amadurecimento, precisam tornar-se racionais:

Não há opinião pública: há pedaços de opinião, contraditórios. Uns deles estariam ao meu lado se eu matasse Julião Tavares, outros estariam contra mim […] Qualquer ato que eu praticasse agitaria esses retalhos de opinião. Inútil esperar unanimidade. Um crime, uma boa ação, dá tudo no mesmo. Afinal já nem sabemos o que é bom e o que é ruim, tão embotados vivemos. (RAMOS, 1980, p. 163)

Sim, vago leitor, sinto-me grávido, ao cabo, não de nove meses, mas de trinta e oito anos. E isso é razão suficiente. Posta de parte a modéstia, sou um amanuense complicado, meio cínico, meio lírico, e a vida fecundou-me ao seu modo, fazendo-me conceber qualquer coisa que já me está mexendo no ventre e reclama autonomia no espaço.
[…]
Eis que o amanuense é um esteta: ao passo que há nele um indivíduo sofrendo, outro há que analisa e estiliza o sofrimento. (ANJOS, 1983, p. 25)

Quando o personagem participa do mundo da escritura, domina o poder das palavras e se sente capaz, inclusive, de ludibriar o seu leitor, porém, ao retornar para a sua realidade, se percebe fraco. Luís da Silva passa da condição daquele que escreve sua própria história para a condição de subalterno distante de suas aspirações amorosas que foram impossibilitadas devido ao fato de pertencer a uma posição social inferior e Belmiro passa da condição daquele que registra suas memórias (e que, se merecem ser registradas, são dotadas de alguma importância) para a condição de personagem passivo, que envelhece sozinho e se alimenta de sonhos utópicos, mas que, apesar de ter consciência disso, não se sente capaz de mudar sua realidade:

Se alguém me gritasse: – “À direita, à esquerda”, volveria à direita, volveria à esquerda, sem procurar saber donde partia a ordem. Porque à direita? Porque à esquerda? Poderia ser meia-volta. Mas ninguém fala, e vou para frente, sem perceber que posso voltar, libertar-me da autoridade de um sargento invisível e caminhar naturalmente, parando, observando as casas e as pessoas. (RAMOS, 1980, p. 191)

Às vezes não encontro lugar que me sirva, e ando, ando sempre, como um Judeu Errante. Não procurarei os amigos, se não me aparecem é porque não me querem.
Creio que já escrevi tudo que havia em mim para escrever. (ANJOS, 1983, p. 201)

Os dois personagens, portanto, têm algo em comum: fazem parte da grande massa de seres que estão à margem das realizações, das possibilidades, e procuram compensar, por meio da escritura, a sua incapacidade; porém essa compensação nunca é totalizada, pois os dois mundos – o da escrita e o real – se mostram cada vez mais distantes e os personagens, frustrados, inferiorizam-se. Essa tensão permanece até o momento em que eles percebem que o poder que exercem na escrita nunca será exercido no mundo real, a partir do momento em que tomam consciência de si.

O caminho que os leva a essa tomada de consciência configura-se de maneira invertida, pois, no lugar de partirem da razão em sua função primeira, partem da ficcionalidade construída sob uma tentativa de “resistir a tudo que esmaga e aprisiona e de, como processo, abrir um sulco na literatura” (DELEUZE, 2011, p. 15), e, através da desrazão alcançam a razão em si, transposta de forma esmagadora na figura do soldado que grita ou do judeu que erra por aqueles que descobriram que a desestabilização do sensível partilhado conseguida pela literatura não tangencia o mundo real e sim segue paralelamente a ele, sem possibilidade de encontro.

Enquanto Belmiro enfim chega à conclusão que a vida parou – porém a vida já estava parada desde o início do romance – e não escreve mais, Luís da Silva mergulha em fluxos de consciência e tenta provar que assassinou Julião Tavares porque só assim deixaria de sentir-se inferior. Luís da Silva conclui que nada pode mudar a sua condição, e se vê como “uma figurinha insignificante” (RAMOS, 1980, p. 235) que se mexia “com cuidado para não molestar as outras.” (RAMOS, 1980, p. 235).

Referências

ANJOS, C. O amanuense Belmiro. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

DELEUZE, G. “A literatura e a vida.” Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2011.

___. e GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997, v.4.

___. e GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997b, v.5.

FOUCAULT, M. “Outros Espaços”. In: Ditos e Escritos III: Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.

___. “O que é um autor?” In: Ditos e Escritos III: Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.

MAINGUENEAU, D. O contexto da obra literária. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

RAMOS, G. Angústia. Rio de Janeiro: Record, 1980.

RANCIÈRE, J. A partilha do sensível – estética e política. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005.

___. Políticas da Escrita. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

SAFATLE, V. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.