Prolegômenos a uma literaturologia

Giuseppe Freitas da Cunha Varaschin

RESUMO: Partindo de um diagnóstico da atual situação dos estudos acadêmicos sobre a literatura – qualificada como estando em “crise” – procurou-se explicitar, embora de maneira breve e elementar, algumas das condições que possibilitam a ciência da literatura, expondo, por assim dizer, o fundamento transcendental de sua cientificidade, a cujo esquecimento é devida essa crise nos estudos literários.

PALAVRAS-CHAVE: Ciência da Literatura; Fenomenologia; Teoria Literária; Epistemologia da Obra Literária.

ABSTRACT: Starting from a diagnosis of the current situation in the academic studies of literature – qualified as being in “crisis” -, we hoped to explain, albeit in a brief and humble manner, some of the conditions that make the science of literature possible, exposing, as it were, its transcendental foundation of scientificity, which, as it was forgotten, engendered the current crisis in the literary studies.

KEYWORDS: Science of Literature; Phenomenology; Theory of Literature; Epistemology of the Literary Object.

 

“La verdad es lo que es
y sigue siendo verdad
aunque se piense al revés.”
Antonio Machado em Proverbio y cantares

1 A dialética do espírito e a crise

A progressão da história humana não segue uma lógica linear como as demonstrações geométricas e as deduções silogísticas. Parece haver um descompasso entre a ordem matemática com a qual medimos o desenrolar dos fenômenos da natureza e o caráter dialético de tudo aquilo em que se imiscui o elemento propriamente humano. Toda a tentativa de contradizer essa impressão soa extravagante. A Dialética da Natureza de Engels é quase risível aos olhos do cientista moderno. Hegel já havia ensinado, em sua Filosofia da História, que a essência da matéria, e, portanto, de toda a natureza, é a gravidade ounecessidade – para a qual a inexorabilidade rígida das verdades matemáticas é adequada; enquanto a do Espírito é a liberdade – para cujo estudo convém, aí sim, bem mais a dialética. Não sem controvérsias, esse dualismo – herdeiro longínquo da bifurcação cartesiana entre res extensa e res cogitans – deve encerrar alguma dose de verdade, de modo a poder gozar, até hoje, de toda a popularidade jornalística e institucional da repartição do terreno das ciências entre exatas e humanas[i].

Um dos pontos em que tal concepção parece-me ao menos empiricamente constatável é sua aplicação para a história das ideias. Se o modo de operação do pensamento de um indivíduo humano é dialético, é natural que o da história das ideias dos homens também o seja; que repita, em um nível civilizacional, os mesmos trajetos tortuosos que o indivíduo perpassa em seu cogitar solitário; ou seja, que também proceda por teses, antíteses e sínteses conciliadoras. Dificilmente, conseguimos nos apegar a uma crença sem, imediatamente, levantarmos contra ela algumas objeções, mesmo que depois a reafirmemos, tendo superado as dúvidas que levantamos de modo enriquecedor[ii]. Do que seriam todos os avanços da ciência física no decorrer século XX sem a famosa crise do modelo newtoniano que ocorrera no fim do século XIX? Mesmo o modelo newtoniano, como teria sido possível sem que houvesse posto vários pontos de interrogação na ciência cartesiana e aristotélica? Todo conhecimento é uma resposta a uma pergunta. A pergunta é a expressão de uma crise, o progresso é, pois, filho da crise. A ciência avança na medida em que se descobre falsa. A descoberta é obra do trabalho do negativo.

Por isso, talvez, um número impressionante de obras monumentais do espírito humano tenham sido diagnósticos de crise, destruições de grandes certezas, perturbações de longos períodos de excessiva confiança. Só entre as obras de cunho mais filosófico do século passado posso citar o primeiro volume das Investigações Lógicas e a Crise das Ciências Européias, de Edmund Husserl, as Investigações Filosóficas, de Wittgenstein, Ser e Tempo, de Heidegger, A Rebelião das Massas, de José Ortega y Gasset, A Crise do Mundo Moderno e O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, de René Guénon, a Filosofia da Crise, do nosso Mário Ferreira dos Santos e tantos outros. Isso para não falar de Platão, que decerto pusera abaixo o relativismo bobo dos sofistas, de Agostinho, que refutara as incoerências dos maniqueus, de Descartes, Kant, Hegel, enfim…

2 A crise nas ciências literárias

Talvez somente isso possa motivar nossa ciência literária, a qual, em sua breve existência, nunca deixou de estar em crise[iii]. Tivemos, sim, algumas parcas tentativas de evoluir para além do estágio de caos inicial: os formalistas russos, algo do estruturalismo, o New Criticism, os trabalhos de Ingarden, Iser e Jauss… Conquanto esses nomes, de pessoas e de “escolas”, não tenham sido de todo esquecidos – e ainda ouvimos lá e cá referências a um e outro – não podemos dizer que houve, ao menos nos anos recentes, qualquer tentativa de seguir de maneira sincera e diligente as indicações por eles deixadas rumo a uma ciência da literatura. Preferiu-se permanecer na dúvida, na crise – e fechar os olhos à luz que poderia conduzir para fora de sua escuridão. A ciência literária, hoje, adora formular perguntas, mas rejeita, in limine, a possibilidade de que exista uma resposta para elas – e considera profundamente pernóstica a ideia de que alguém as tente responder seriamente. Quiçá seja prudente lembrar o aforismo 6.5 do Tractatus de Wittgenstein: “se uma pergunta pode ser feita, ela pode também ser respondida.” (WITTGENSTEIN, 2010, p. 279).

Embora a crise tenha seu aspecto benéfico e estimulante, como enfatizei na seção anterior, ela não é boa por si, mas por seus prováveis frutos. Uma crise sem progresso subsequente é apenas uma mixórdia, ou mesmo um blefe. Não é motivo de orgulho uma ciência que nunca saiu do lugar, a dúvida por si só não é sinal de maturidade ou de rigor. A crise só vale na medida em que formula suas dúvidas com clareza e com razões. A crise sem dúvidas claras ou a crise feita da pura dúvida vazia não leva a lugar algum. Para isso cabe evocar a crítica que Charles Sanders Peirce fez à leviandade da dúvida universal cartesiana:

Não podemos começar com a dúvida completa. É mister começar com todos os preconceitos que possuímos (…). Os preconceitos não podem ser banidos por uma máxima; no fundo, nem nos passa pela cabeça que possamos duvidar deles. O ceticismo inicial acaba por ser auto-ilusão, não é uma dúvida real. (…) Uma pessoa pode no curso de seus estudos encontrar razão para duvidar daquilo em que começou por acreditar; mas nesse caso duvida por ter uma razão positiva para fazê-lo e não por ordem da máxima cartesiana. Não vamos duvidar em filosofia daquilo que não duvidamos em nossos corações. (PEIRCE, 1983, p. 71)

Não tenho certeza se a caracterização de Peirce aplica-se perfeitamente ao método cartesiano, já que o filósofo francês buscava, exatamente, razões para duvidar dos fundamentos de todos os seus conhecimentos; mas se aplica com justeza à atual ciência da literatura, que nunca saiu desse estado de dúvida inerte. Precisamos, diria eu, de um pouco de credulidade. Não uma credulidade fechada, mas uma credulidade crítica, uma fé na própria razão, na inteligibilidade do mundo – sem a qual não vale apena nem começar a fazer ciência, pois é a própria condição que a possibilita. Falta-nos, talvez, mais dogmatismo, ou melhor, mais coragem, ousadia em expor os resultados a que chegamos, aquilo de que “não duvidamos em nossos corações.” De nada vale permanecer na dúvida só pelo medo de errar, ou pelo medo de se expor ao erro e à correção dos pares. A hipótese científica deseja correções e refutações. Mas, para tal, precisa ser formulada com firmeza. Há, no entanto, aqueles que preferem disfarçar suas convicções sob o rótulo de “ficções teóricas”, para que elas não possam ser atacadas frontalmente e julgadas perante o tribunal da realidade. Tudo isso se me assemelha, em última instância, a uma desconversa um pouco irresponsável para tornar o estudo acadêmico da literatura uma feroz logomaquia, em que muito se fala, mas pouco se edifica, porque os literatos se mantêm estagnados por um ceticismo inquebrantável.

Quem dera se o que encontrássemos fosse ao menos uma dúvida cartesiana, que perseguisse, na própria consciência, um ponto arquimédico de que não pudesse duvidar – uma dúvida que não se contentasse consigo mesma, que buscasse resgatar, sob fundamentos mais sólidos e seguros, as certezas sob as quais cegamente já vivia seu coração. Não. É antes um desmazelo que uma dúvida real. Uma dúvida em que se descansa, uma crise mansa. Uma preguiça de construir o que quer que seja, porque se parte do princípio de que não há, em verdade, como compreender coisa alguma. Não digo que não exista ampla justificação teórica para essa atitude cética, relativista, ou como queira, contudo, de que vale essa justificação se não se pode discuti-la?[iv]Algum deles já pensou que a negação nietzschiana da “verdade” é praticamente um pedido para que não se creia naquele que a profere? Por conta disso boa parte da teoria literária recente soa como uma longa e artificiosa lamentação sobre a impossibilidade de se falar sobre literatura, sobre a opacidade – ou até o caráter “fascista”, como ressalta Barthes em Aula – da linguagem, que não pode alcançar qualquer objeto. Preferem culpar a linguagem que a si mesmos, por jamais serem capazes de falar, realmente, de literatura. Daí que o mesmo Barthes, em seu Da ciência à literatura, veja nessa afasia do pesquisador perante a incomunicabilidade de seu objeto e na consciência da opacidade enganosa dos supostos meios que teria para comunicá-lo a peculiaridade do discurso científico sobre a literatura.

Há, concomitantemente a essa lamúria festiva do caos científico, uma inflação de teorias novas, vindas “importadas” da França ou de departamentos excêntricos de universidades norte-americanas, num ritmo alucinante, de modo que uma triagem crítica das mesmas é impossível[v]. Veja-se, por exemplo, o que diz Roberto Schwarz:

Só raramente a passagem de uma escola a outra corresponde, como seria de esperar, ao esgotamento de um projeto; no geral ela se deve ao prestígio americano ou europeu da doutrina seguinte. Resulta a impressão – decepcionante – da mudança sem necessidade interna, e por isso mesmo sem proveito. O gosto pela novidade terminológica e doutrinaria prevalece sobre o trabalho de conhecimento, e constitui outro exemplo, agora no plano acadêmico, do caráter imitativo de nossa vida cultural. (SCHWARZ, 2009, p. 110-111)

O mesmo ponto é também enfatizado, de maneira semelhante, no texto O que a literatura poderia ensinar a ela própria e à cultura digital, ainda não publicado, de autoria do Prof. Dr. Alckmar Luiz dos Santos:

o exibicionismo intelectual (ou pseudo-intelectual) não é um conjunto de conceitos (ainda que desconcatenados entre si), mas uma relação entre pessoas mediada por escombros de signos, ou melhor, por significantes sem significados possíveis, ou ainda, por frases sem verdadeira profundidade semântica. São discursos eficientes apenas na construção de uma personapara um pequeno círculo de críticos e de teóricos e, concomitantemente, também eficientes em anular a personalidade dos demais críticos e teóricos, leitores desses primeiros. Como consequência, vemos surgir constantemente uma série de modismos, todos apoiados em leituras supérfluas e alimentando-as sempre e mais. (…)E, como já afirmei acima, a estratégia por excelência, nesses casos, é disfarçar a vacuidade de conceitos e de juízos (em resumo, a insuficiência flagrante das leituras), fazendo apelo a um discurso tortuoso, a expressões absconsas, a neologismos herméticos. Através delas, busca-se apontar para a pretensa novidade da penúltima moda intelectual (…). (SANTOS, 2012, p. 6-7)

Antes de serem eficazes para sanar as dúvidas ou ao menos para propor dúvidas eloquentes, por sua multiplicidade e incomunicabilidade essas “teorias” alimentam ainda mais o estado de confusão geral. Queer Theory, os feminismos – desde o de Martha Nussbaum até o de Judith Butler -, os sempre novos acólitos de Derrida e da desconstrução, neomarxistas leitores de Laclau e Badiou, pós-colonialismo, descolonialismo, pós-humanismo, entre tantas outras. Há quem considere a pluralidade de opiniões uma maravilha – e não um indício de que não estamos entendendo nada – talvez porque sempre se poderá alegar uma autoridade fartamente diplomada que discorde de qualquer posição que se deseje combater. Vêem nisso um triunfo da democracia, será? Se sim, confundem ciência com política, e vêem naquela virtudes que só cabem a esta. A validade de uma tese não se decide pelo apoio da maioria, bem como as virtudes de uma ciência não se vêem na pluralidade de modelos incomunicáveis que ela apresenta ao estudante. Não há nenhum benefício intrínseco a essa multiplicidade de teorias científicas – especialmente, como é o caso da literatura, se essas teorias nem sequer se dão ao trabalho de se formularem com clareza, e acabem jazendo meio que implícitas no exercício inebriante da escritura crítica -, pelo contrário, isso representa um problema que, se não incomodar a ninguém, não será jamais resolvido. Alegam, além disso, a “liberdade de expressão” contra aqueles que ousam fazer uso de sua liberdade para criticar. Quem percebeu isso com muita argúcia foi a ovelha negra da academia francesa, Jacques Bouveresse, em seu livro-resposta ao famoso caso Sokal, chamado Prodígios e Vertigens da Analogia: o abuso das belas-letras no pensamento (2005):

Como é que se chegou ao ponto de recusar aos outros o direito de crítica em nome da liberdade de pensamento, entenda-se bem, da própria liberdade de pensamento, ou seja, do direito de pensar e de dizer impunimente qualquer coisa, até mesmo sobre os temas mais técnicos e que, em princípio, menos se prestam a isso? Manifestamente, o liberalismo que todos professam (…) implica liberdade total de criação e de expressão, mas não a de julgamento. O terreno do julgamento tem de continuar governado pela crença (obrigatória), pela convenção (que fixa os valores inatacáveis), pela admiração (imposta) e pelo ritual (de celebração). (BOUVERESSE, 2005, p. 141)

Bouveresse discorre, ao longo deste seu pequeno livro, sobre esta situação francamente anti-intelectualista de alguns setores das ciências humanas, e, em especial, da teoria literária. Só posso entender essa recusa ao debate, ao confronto limpo de ideias – cujo modelo máximo na história talvez sejam as antigas disputationes medievais – como uma tentativa forçada de manter prestígios intactos ao evitarem se envolver num terreno comum de discussão – onde, fatalmente, teorias insustentáveis cairiam. Edmund Husserl expressou situação semelhante no terreno da filosofia no princípio do século XX:

Em lugar de um embate sério entre teorias divergentes, cujo próprio antagonismo seria suficiente para comprovar a solidariedade interna, a comunhão dos fundamentos e a fé inquebrantável de seus autores em uma filosofia verdadeira, temos uma pseudo-exposição e uma pseudocrítica, uma aparência de colaboração verdadeira e de ajuda mútua no trabalho filosófico. Esforços recíprocos, consciência das responsabilidades, espírito de colaboração séria visando a resultados objetivamente válidos, ou seja, purificados pela crítica mútua – nada disso existe. (…) Não existem quase tantas filosofias quanto filósofos? Existem ainda Congressos Filosóficos; neles os filósofos encontram-se, mas não as filosofias. (HUSSERL, 2001, p. 22-23)

O mesmo, creio eu, poderia e deveria ser dito a respeito da literatura – é o que venho tentando fazer, até aqui. Tampouco acho que esta confusão da literatura não possua também raízes na própria filosofia, que passa, igualmente, por um período instável. Não se trata de uma situação nova na história do pensamento humano. Husserl mesmo cita transição entre o período medieval e a idade moderna como um tempo em que se observou a mesma confusão. Também poderia citar o longo período da filosofia helenística. E todas essas crises foram superadas por grandes marcos históricos[vi], os quais tem um gesto fundamental em comum: o retorno à análise das próprias condições de possibilidade do discurso científico. A anulação, por assim dizer, de toda cultura anárquica ao redor e a busca pela ordem na própria alma, isto é, no próprio senso de certeza interior.

Mesmo essa minha percepção do caráter crítico no campo restrito dos Estudos Literários não é nova. Outros já o assinalaram. René Wellek em sua polêmica palestra, em 1958, no segundo Congresso Internacional de Literatura Comparada, afirmou que “o sinal mais sério do estado precário em que se encontrava nosso estudo [de literatura] era o fato de que não tinha sido capaz de estabelecer um assunto bem delimitado e uma metodologia específica.” (WELLEK apud MOURÃO: 2000, p. 02). Sua atitude é, em certo sentido, bastante semelhante à minha. Assim como eu o farei, Wellek propõe que o objeto de estudo próprio da Literatura Comparada deve ser a literariedade, o princípio de identidade substancial que subjaz a todas as manifestações heterogêneas dos fenômenos literários entre as diversas culturas. Henry Remak foi outro que, em 1985, alertava contra esse pluralismo irresponsável de abordagens nas ciências literárias, afirmando que “na medida que as ambições interdisciplinares dos supostos estudiosos da literatura aumentavam (…) seu senso de literatura e seu conhecimento de línguas estrangeiras e culturas decaiu. A literatura comparada não está bem servida em tal arranjo subserviente.” (REMAK apud MOURÃO, 2000, p. 02) E. D. Hirsh, já não na área da literatura comparada, mas no da hermenêutica literária, em seu famoso Validity in Interpretation (1966) pretende igualmente rebater, com o instrumental da fenomenologia, a atitude cética representada por trabalhos como o deAgainst Interpretation (1966), de Susan Sontag, cujo título já assinala claramente a discordância entre os dois. Sua abordagem, contudo, difere da minha, pois que não considerei necessário, por exemplo, restaurar a figura do autor – um dos principais objetivos de seu livro – como fonte da unidade do sentido.

Enfim, especialmente depois de 1993, com a publicação do Relatório Bernheimer – onde se levantou que o termo “literatura” já não mais tinha significado para a Literatura Comparada -, multiplicaram-se discussões evocando também a temática da crise – especialmente entre acadêmicos norte-americanos. Tais discussões, contudo, a meu ver, padecem muitas vezes de alguns dos cacoetes já assinalados – fundamentos filosóficos dúbios, falta de clareza, etc. – e, até onde sei, não foram frutíferas em alcançar qualquer solução mais definitiva. A tendência é geralmente carregar o estudo da literatura para a sociologia ou para a psicologia, para a história ou qualquer outra área da predileção do estudioso. Northrop Frye – que também, em 1957, já percebia tal crise incipiente – já avisara:

Isso nos dá, na crítica, a falácia que em história é chamada de determinismo, quando um estudioso com um interesse especial em geografia ou economia expressa esse interesse pelo artifício retórico de colocar sua disciplina predileta em uma relação causal com qualquer outra que o interesse menos. (…) Seria fácil de compilar uma longa lista de tal determinismo na crítica literária, todos (…) propondo, não achar um quadro conceitual para a crítica na literatura, e sim atá-la a uma miscelânea de quadros fora dela. Os axiomas e os postulados da crítica, contudo, devem brotar da própria arte com que ela lida. (FRYE, 1990, p. 06-07)

Como não vejo como mais um ensaio puramente negativo teria alguma utilidade[vii]– quem seria eu para criticar outros por não fazerem algo que eu próprio não tivesse a intenção de realizar? –, procurarei dar minha contribuição positiva ao assunto. O que exporei nas próximas seções é uma modesta tentativa de esclarecer o que penso que devam ser os prolegômenos para uma futura ciência literária, de desenhar aquilo que Husserl chamou de um “lugar espiritual comum” (HUSSERL, 2003, p. 23) onde, ao contrário das conferências profissionais, possam se encontrar as teorias, sobre bases seguras e sólidas, onde possam discutir de acordo com princípios aceitos conscientemente por todos de modo a poderem avançar. “Pôr entre colchetes” todos os edifícios de teorias estéreis que até hoje surgiram, a fim de tentar, ao menos vagamente, delinear parte do que penso serem fundamentos mais seguros para uma ciência e uma crítica literária. Operar uma redução fenomenológica para ter o contato mais direto possível com o objeto literário. Sei que tal tarefa é impossível de se efetuar em um ensaio de poucas páginas, por isso não tenho a menor pretensão de tê-la esgotado. Minha única intenção é a de explicitar alguns dos pressupostos que tornam a ciência literária – poderíamos chamá-la de literaturologia? – possível, quer eles pareçam agradáveis ou não. Além disso, como disse anteriormente, é preciso dar a cara a bater, se não dermos um primeiro passo (ainda que na direção errada) não chegaremos a lugar algum.

3 A fenomenologia como fuga à metodocracia

Gostaria de justificar de antemão o caráter aparentemente “abstrato” das explanações vindouras. Não é nenhum segredo minha predileção pelo método fenomenológico em matéria de ciência – tomada aí em seu sentido mais geral, como Wissenschaft. Também, seguindo Husserl, considero-a como a verdadeira “filosofia primeira” (HUSSERL, 1975, p. 40), totalmente a priori eintuitiva, que transforma todos os domínios de investigação até então tomados pela “atitude natural”, ou qualquer outra atitude não fundamentada na descrição exata das essências e dos modos de aparição dos fenômenos, em ciências rigorosas. Não será necessário elucidar todas as idiossincrasias da abordagem fenomenológica – e talvez elas apareçam no decorrer da minha exposição -, somente um ponto merece menção explícita para que não me façam repreensões incautas.

A fenomenologia pretende, grosso modo, ser uma ciência da descrição das essências dos fenômenos. Contudo, ela não atinge essas essências pela generalização, indução ou abstração a partir de várias manifestações particulares do fenômeno, e sim por sua concentração intuitiva nos objetos intencionais que aparecem à consciência pura. É, assim, uma ciência não-empírica, puramente ideal e a priori, que, mediante a famosa epochê, põe em suspensão a existência real ou “exterior” de seus objetos para atingir, precisamente, essas essências, os fatores invariantes e estruturais dos quais cada espécime particular é um exemplo. E por isso não lidarei com a literatura no nível das obras efetivamente existentes – bem como não o fazem, por exemplo, Ingarden e Iser, em quem me inspiro. O fenomenólogo não estuda isto ou aquilo em particular, mas os critérios objetivos pelos quais enlaçamos os objetos em torno de tal ou qual denominação. Não me interessa para este estudo, por exemplo, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Espumas Flutuantes, e sim o que me permite ver em ambos uma variação de uma mesma coisa, a saber, literatura. E como, definida essa “mesmidade”, essa maneira comum de doação e de existência, podemos pretender conhecer todos os objetos que a instanciam. Busco o que Ruth Ann Crowley e Kenneth R. Olson, tradutores de Ingarden para o inglês, dizem a respeito do mesmo:

Determinar a estrutura formal comum a todos os membros de uma classe de objetos, (…) para que os métodos para lidar com ele estejam adequados para o que está sob investigação. (…) Fazer do estudo acadêmico da literatura uma disciplina rigorosa ao clarificar seu objeto, a maneira como esse objeto é dado à consciência e que tipo de conhecimento podemos esperar obter levando em conta essas considerações. (CROWLEY; OLSON, 1979, p. xiv)

Evitar, em suma, a todo custo, aquilo que o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho chamou em seu livro mais recente, A Filosofia e Seu Inverso (2012), de metodocracia.

A metodocracia é, decerto, um dos males mais disseminados na comunidade acadêmica. Sua presença é de tal modo imponente e hegemônica que há quem a considere como um princípio epistemológico fundamental. Stephen Hawking é um que, em seu The Grand Design (2012), assume essa postura designando-a de model-dependent realism [realismo dependente de modelo]. A idéia é, basicamente, a seguinte, nas palavras de Olavo:

não é o objeto que determina o método, e sim o método que determina o objeto. Dito de outro modo, o campo de uma ciência não corresponde a um conjunto de seres, coisas ou fatos objetivamente distintos, separados dos outros por fronteiras reais, mas simplesmente ao conjunto dos temas que se revelem mais dóceis aos métodos dessa ciência. (CARVALHO, 2012, p. 86)

É sintomático que um dos mais celebrados cientistas da época exponha com ares triunfantes esse desvario epistemológico – que, se pôde aparecer, só pode ter sido devido ao esquecimento da fenomenologia husserliana nos ciclos acadêmicos anglo-saxônicos sob o “trauma” causado por suas versões heideggerianas e existencialistas. Há outras expressões mais sofisticadas da metodocracia, tais quais o holismo e o relativismo ontológico de Quine, o convencionalismo de Poincaré e Pierre Duhem, e, em última instância, a própria “revolução copernicana” empreendida por Kant. Quando a coisa-em-si torna-se inacessível, perde-se qualquer critério para discernir uma ontologia válida de uma ontologia inválida. A escolha desta ou daquela ontologia[viii]torna-se não uma questão teórica – discutível racionalmente -, mas uma questão pragmática[ix]; a delimitação dos campos das ciências passam a ser decisões administrativas de departamentos universitários, donde se abre espaço para que se imiscuam, no terreno do conhecimento, deliberações políticas, interesses econômicos, inclinações psicológicas, enfim, todo um rol de fatores irracionais.

Esses são os corolários do que Olavo chama de “divórcio entre ciência e filosofia”:

a primeira imperando sobre o mundo dos fenômenos, a segunda insistindo em perguntas sobre a natureza da realidade que já não interessavam a ninguém. Uma consequência óbvia dessa separação foi que, com a ciência já não podendo ou não querendo alegar em seu favor uma ontologia explícita, as divisões entre os campos das várias ciências, a delimitação, e, portanto, a definição de seus objetos, de seus métodos e de sues processos de validação já não tinham como fundamentar-se em distinções objetivas – ‘ontologias regionais’ – recortadas do corpo vivo da experiência. (CARVALHO, 2012, p. 86)

Como exemplo ele fornece a psicologia moderna, que, segundo ele, “pode prosseguir imperturbavelmente seu trabalho sem ter a menor ideia do que seja a ‘psique’ e sem saber ao menos se ela existe”, e ele se pergunta: “Qual é então o objeto da psicologia? Não há outra maneira de defini-lo senão como ‘qualquer coisa que os psicólogos estudem’.” (CARVALHO, 2012, p. 86-87). Não se pode negar, é claro, que os sucessos das ciências modernas se baseiam nessa epistemologia caduca, nem tampouco os avanços da técnica de que ela deseja fazer sua face “pública”, mas

quanto mais precisão se alcança na descrição de um fenômeno, mais enfático se torna o contraste entre o domínio técnico que se exerce sobre ele e a constatação diuturna de que, no fim das contas, não se sabe o que ele é. Quanto mais uma ciência se encontra num estágio infantil, engatinhando, nebulosa e confusa, incapaz de acertar os métodos de investigação que lhe permitam discernir constantes (…), mais forte é a tendência de continuar tentando e tentando, acumulando hipóteses, observações e números, na esperança de que um dia as leis gerais apareçam e os fatos as confirmem. Nesse estado de coisas, é compreensível que as questões de fundamento ontológico devam ficar para depois, talvez para o dia de são nunca, pela simples razão de que ainda não se tem um objeto preciso que possa ser fundamentado. (CARVALHO, 2012, p. 87-88)

Não é esse um testemunho preciso do que ocorre com a literatura? Se não sabemos do que estamos falando, como poderemos estar certos do que falar? Só falaremos, indefinidamente, atirando para todos os lados, sobre qualquer coisa, tagarelando em longas e incompreensíveis frases a máscara que encobre uma ciência oca.

4 A investigação racional da literatura e suas pré-condições: objeto e essência

A maior realização da fenomenologia está em sua demonstração de que é, sim, possível fugir à metodocracia, porque ela oferece a possibilidade de acessar a essência dos fenômenos de consciência, investigando-os e os agrupando em “ontologias regionais”, as quais mapeiam um terreno geral cujas distinções objetivas fundamentam as distinções entre as respectivas ciências. Daí que a filosofia – em sua versão fenomenológica – seja verdadeiramente ascientia scientiarum, a investigação “transcendental” – no sentido kantiano – sobre as próprias condições de possibilidade da ciência. O que farei aqui será um brevíssimo esboço de como penso que tal perquirição deva ser feita no caso da literatura, a fim de superar o estágio de confusão atual.

Uma definição bastante geral e elástica de ciência, anterior a toda consideração epistemológica mais profunda, é a deinvestigação racional de uma espécie x de objetos. Uma literaturologia, ou ciência da literatura, seria, pois, nada mais que ainvestigação racional da literatura. Ora, aí, de início, já nos defrontamos com algumas pressuposições, as quais devem ser esclarecidas, para que não sejam, no decorrer do desenvolvimento da ciência, incoerentemente negadas[x]causando uma desnecessária “crise dos fundamentos”. Todo estudo racional de x, exige que em x haja uma ratio, um conteúdo inteligível, uma verdade que, por um lado, torna a coisa aquilo que ela é, e, por outro lado, a torna cognoscível para a inteligência humana, um critério universal de reconhecimento que pode passar por uma fixação descritiva. Toda ciência, em outras palavras, pressupõe a essência de seu objeto. Não vejo como escapar a essa conclusão, que pode parecer verdadeiramente escandalosa em pleno século XXI: o essencialismo é, bem como cria Platão, uma condição necessária para o conhecimento. Nada afirmo, ao contrário de Platão, sobre o estatuto ontológico dessas essências – não estou postulando um outro “mundo”, separado do nosso; sou cético quanto às possibilidades de fornecer uma caracterização ontológica delas, pelo simples fato de que qualquer caracterização ontológica já as pressupõe[xi].

Talvez nenhuma ciência esteja menos disposta a aceitar que uma de suas próprias condições de existência enquanto ciência seja o essencialismo que a ciência da literatura – embora, como já assinalei, René Wellek o tenha percebido em sua palestra de 1958. Há toda uma disciplina, nos estudos universitários, destinada a convencer o estudante de que é impossível determinar uma essência da literatura: a teoria literária. O neófito é imediatamente lançado, sem qualquer preparo filosófico substantivo, no mar de confusões descrito na seção 2 do presente ensaio. Lê Derrida antes de ler Platão, lê Foucault antes de ler Aristóteles, lê Lacan, Agamben, Bataille, Blanchot sem jamais ter contato com uma página sequer de Tomás de Aquino, Leibniz, Frege ou Husserl. A conclusão a que ele é mais ou menos tacitamente carregado nesse macro-entimema é o ceticismo, a decepção prematura perante a razão humana. Todas as tentativas de definição de literatura no passado são ensinadas como erros, não a serem superados mediante uma pesquisa mais cautelosa e inclusiva, e sim como mecanismos de propagação e conservação de uma ideologia opressora, que opera por binarismos definidos hierarquicamente, como “literatura X não-literatura”, no qual o segundo elemento é colocado como subalterno. Nesse contexto, a noção de “essência do literário” soa, verdadeiramente, como uma monstruosidade moral. Transvalorizados todos os valores, o novo imperativo categórico torna-se o relativismo cultural, histórico, absoluto.

O que é literatura é relativo, e a grande virtude da literatura contemporânea é exemplificar, vez após vez, a inadequação das definições teóricas antigas, negar a própria ideia de “natureza” da arte. O erro fundamental que cometem aí, quem sabe, seja o seguinte: confundem a alegação de que não podemos dar uma descrição objetiva do fenômeno literário com o fato de o fenômeno literário ser ontologicamente subjetivo – pois sua existência depende da existência do homem, não há literatura “na natureza”. Tal é apenas a falácia da ambiguidade, pois é perfeitamente possível uma ciência objetiva de um fenômeno subjetivo criado pelo homem[xii]. É tão viável uma ciência da literatura quanto uma ciência política ou uma economia. É uma ciência humana, não no sentido de que não é exata, e sim no sentido de que a existência do seu objeto depende da existência do homem, e as características da essência desse objeto são, ao menos potencialmente, dedutíveis da própria essência do homem[xiii]. Creio que tenha sido Max Weber quem disse que as ciências humanas são ainda mais exatas que as ciências naturais, pois, enquanto é praticamente impossível dizer em quantos cacos o vaso se partirá quando, solto de um prédio de 50 andares, chegar ao chão, é perfeitamente plausível prever o resultado de uma eleição. Giambattista Vico, com boas razões, também alegara que nada o homem conhece melhor do que aquilo que ele mesmo faz. O estudo objetivo da literatura é possível, mas como não há objetividade sem objeto, e tampouco há objeto cognoscível sem essência – que nada mais é que o princípio de cognoscibilidade do objeto -, devemos admitir que, embora a literatura seja um fenômeno humano, ela possui uma essência permanente e universalmente reconhecível.

A essência não é algo misterioso, religioso, não é um objeto de fé e veneração devota. É simplesmente um conjunto de possibilidades e impossibilidades que delimitam a “forma” do objeto, é como um esqueleto que é “preenchido” de modo diverso em cada objeto particular. De um ponto de vista da lógica modal, a essência é aquele amálgama de propriedades, que, por serem constitutivas da identidade de um objeto – e a identidade é uma relação necessária – permanecem as mesmas em todos os mundos possíveis.[xiv] Isso acarreta algo que pode soar, a alguns, como desagregável: não podemos ter medo de dizer “isto não é literatura”. Do mesmo modo que não tememos dizer, diante de uma galinha, “isto não é um cavalo”. Não é um cavalo porque tem penas e asas, e, se algo tiver penas e asas, é impossível que seja um cavalo. Um cavalo é algo que relincha, que tem uma cabeça, que, quando saudável, tem quatro patas, cor, peso, pelos, um certo tamanho, etc. Da mesma maneira, a essência da literatura deve ser virtualmente fixável mediante uma descrição. Mas negar o essencialismo é, como já sugeri, negar a própria possibilidade da ciência e expô-la ao risco de toda sorte de arbitrariedades ideológicas.

Cabe à fenomenologia descrever essas essências, à medida que elas aparecem imediatamente no fenômeno consciente. Se nos deparamos, por exemplo, com um fenômeno e o percebemos como “literário”, exatamente o que nós percebemos? Que traços presentes aí me induziram a encaixá-lo sob a essência geral de “literatura”?  O que está subentendido neste reconhecimento?

5 Propriedades essenciais do objeto literário

Uma das notas essenciais do objeto literário é seu peculiar modo de existência. O objeto literário não é nem o suporte físico que o carrega – um papel marcado com tinta preta, sons vocálicos em declamação -, e nem a experiência psicológica da sua recepção em algum leitor – como talvez tenda a afirmar a estética da recepção. Não é o suporte físico porque, se assim fosse, seria impossível distinguir uma obra literária de uma obra de culinária ou científica – e há quem, hoje mesmo, tenha escrúpulos em fazer tais distinções. Tampouco é a experiência psicológica do leitor porque isso implicaria em dizer que “a obra é um objeto único, temporal e irrepetível.” (CROWLEY; OLSON, 1979, p. xv). O que, segundo os comentadores anglófonos de Roman Ingarden, faria da literatura algo que

acessível apenas ao sujeito que a experimenta, não poderia se tornar objeto de uma investigação científica, porque não seria um objeto intersubjetivo. No melhor dos casos poderíamos analisar o relato que o sujeito dá de sua experiência, mas aí estaríamos fazendo psicologia individual, e não estética. (CROWLEY; OLSON, 1979, p.xv)

É sob essa forma que aparece o famigerado psicologismo nas ciências literárias. O procedimento típico do psicologismo consiste em, resumidamente, reduzir as essências intersubjetivas e as relações lógicas universais que se estabelecem entre elas à conteúdos da psique humana. Frege, em sua brilhante Filosofia da Aritmética e, mais tarde, Edmund Husserl, no primeiro volume de suas Investigações Lógicas, demonstraram, a meu ver, terminantemente a impossibilidade absoluta do psicologismo.Ingarden o fez para a literatura em seu The Cognition of the Literary Work of Art. Pela contundência dessas provas – as quais não me cabem, por sua profundidade e alta complexidade técnica, aqui expor – dou o psicologismo por superado. Ademais, nem seria necessário desenvolver aqui sobre as falácias que decorrem do psicologismo, pois só esta constatação nos basta: o psicologismo reduz todas as ciências à psicologia, e o que interessa aqui estabelecer é uma ciência literária autêntica. Além de falso, o psicologismo é metodologicamente inconveniente.

Qual, então, o modo de existência dos objetos literários? De que forma a essência do literário é instanciada em um fenômeno, e em que tipo de fenômeno ela é instanciada?

O objeto literário é, sobretudo, um texto. Isso já é dizer muito, porque, como bem nos lembra Iser, o texto é um sistema de processos, os quais são efetivados somente na relação, na interação entre obra e leitor. A leitura é “uma atividade guiada pelo texto” e “que precisa ser processada pelo leitor” (ISER, 1981, p. 163). Segundo o mesmo Iser, um dos engodos mais tentadores no trato com o objeto literário é optar pela saída mais fácil e automática, isto é, a de enfocar apenas um dos polos (leitor ou obra) e não a relação ou tensão entre eles, onde se estabelece, efetivamente, o texto.

Não há uma ciência pré-existente que lide com esse entremeio; nem a linguística, nem a sociologia e nem a psicologia têm como fazê-lo sem reduzir o objeto literário a um de seus componentes para encaixá-lo em seus métodos. Frege falava de três “reinos”[xv]: o reino do referente – o mundo das coisas materiais -, o reino da mente – o mundo das nossas cogitações, imaginações e emoções -, e o reino do sentido (Sinn) – o mundo intersubjetivo da Razão humana, no qual está depositado “um tesouro comum de pensamentos, que é transmitido de uma geração para outra” (FREGE, 2009, p. 134) que confere objetividade e eficácia a toda ciência e comunicação em geral. O objeto literário situar-se-ia mais propriamente neste “terceiro reino” fregeano. Há abundantes ciências que se nutrem do terreno da referência: a sociologia, a economia, a história, etc. A quantas dessas já não vimos uns e outros carregarem ingratamente o objeto literário? Para o reino da mente, temos a psicologia. Aqueles que afirmam a subjetividade e a relatividade de toda leitura, consequência da total dependência da obra perante a interpretação de um leitor em particular, estão apenas seguindo as indicações da abordagem psicológica ou psicologista, as conclusões a que chegam são coerentes sob esse prisma. Contudo, são conclusões para a psicologia, não para a ciência literária. Carecemos de uma literaturologia. Esta requer um estudo atencioso do reino do sentido.

Ora, se o objeto literário é um objeto constituído por uma relação entre uma obra e um leitor em particular, como podemos garantir a intersubjetividade de que dependeria uma ciência a seu respeito? A resposta foi dada por Bertrand Russell em seu The Problems of Philosophy (1997). No capítulo IX desse livro, The World of Universals, Russell propõe as relações como categorias universais – além de somente as qualidades, como pensavam os realistas medievais e platônicos. Se dissermos que a leitura[xvi] que fiz da obra é semelhante a que tu fizeste, postulamos uma relação universal que se dá entre esses dois objetos (a minha e a tua leitura). Adaptando o exemplo que Russell dá sobre “coisas brancas” ao meu propósito, poderia dizer o seguinte: já que há muitas leituras de uma mesma obra, a semelhança deve se dar entre muitos pares de leituras; e isso é característico de um universal.

Será inútil dizer que há uma semelhança diferente entre cada par, pois desse modo teremos que dizer que as semelhanças se assemelham entre si, e, portanto, seremos obrigados a admitir a semelhança como universal (RUSSELL, 1997, p. 96). O texto é, grosso modo, a forma dessa semelhança universal entre as leituras, o que o torna independente de toda leitura em particular. Isso implica, entre outras coisas, que podemos fazer leituras mais ou menos erradas de uma obra, pois quanto mais aspectos de nossa leitura discordarem frontalmente do texto – e isso pode ocorrer por falhas de memória, desatenção durante a leitura ou por falta de conhecimento do repertório (do backgroundpragmático[xvii]) que o texto (bem como toda comunicação) pressupõe – “pior” será nossa leitura, e ela terá justificativas para ser repreendida.

Quer dizer que, dadas duas leituras, uma terá, necessariamente, de ser mais válida do que a outra? Não há, pois, liberdade de interpretação? A obra não é aberta? Não é bem assim, visto que considero haver uma margem de manobra. No capítulo V do seu The Act of Reading (1981), Iser ressalta outra peculiaridade do objeto literário:

O texto ‘inteiro’ não pode jamais percebido de uma só vez. Sob esse aspecto [o objeto literário] difere dos demais objetos, que geralmente podem ser vistos, ou ao menos concebidos por inteiro. O ‘objeto’ do texto só pode ser imaginado por meio de fases consecutivas da leitura. Sempre nos situamos ‘de fora’ de um objeto, ao passo que sempre estamos situados dentro do texto literário. A relação que se dá entre texto e leitor é então bem diferente daquela entre objeto e observador: em vez de uma relação sujeito-objeto, é um ponto de vista móvel que se desloca por dentro daquilo que tem de apreender. Esse modo de apreensão é exclusivo à literatura. (ISER, 1981, p. 109)

Essa propriedade de poder ser apreendido apenas por um ponto de vista móvel que atua dentro do próprio objeto, segundo Iser nos explica, é única à literatura; e penso que possamos ver aí, por isso mesmo, um maneira de dar espaço às diferentes leituras conflitantes, mas igualmente válidas, a fim de não cairmos num dogmatismo ingênuo a respeito da hermenêutica literária.

Esse “dogmatismo” é correto, a meu ver, quando se trata de objetos que apreendemos imediatamente na percepção. Temos acesso direto, por intuição, à essência da espécie “pedra” quando vemos uma “pedra”. Ainda que não vejamos a pedra “inteira” – toda percepção, mesmo de objetos físicos, como bem nos lembra Husserl, é contextual ou “perspectival”, quer dizer, sempre vemos um lado da pedra, e não todos ao mesmo tempo – quando vemos apenas um de seus lados nós efetuamos o chamado processo deconcretização, ou seja, nós completamos cognitivamente os dados dos sentidos para compor um “objeto” inteiro para nossa mente. Quando vemos uma pedra, posto que a vejamos apenas de um lado, sabemos que seus outros lados existem, precisamente por conta desse mecanismo. A concretização, no caso dos objetos físicos, é algo bastante seguro e repetível; dificilmente duas pessoas concretizam a mesma pedra de formas conflitantes.

O mesmo não ocorre com o objeto literário: que nos digam os partidários de Capitu diante daqueles que se deixaram convencer pelas acusações de Bentinho. Iser se engana ao dizer que os objetos não-literários podem ser vistos como “inteiros”, pois, como Husserl sempre ressalta, eles também não o podem. Contudo, acerta ao notar uma diferença essencial entre o modo de apreensão dos objetos “comuns” e o objeto literário, o texto. Essa diferença reside na situação peculiar de que não é possível, no caso do objeto literário, chegar a certas proposições senão pela concretização. No caso da pedra, embora concretizemos suas faces que não vemos, podemos, de toda forma, mudar nossa perspectiva e ver suas faces que, até então, eram ocultas. Podemos decompô-la em fragmentos menores, investigar empiricamente sua constituição mineralógica e química. O mesmo não pode ser feito com o objeto literário, por uma série de motivos. Um deles é que o texto não nos apresenta um “mundo” completo[xviii], há sempre lacunas – os gaps de que Iser fala -, mesmo na própria narrativa, as quais têm de ser preenchidas por projeções do leitor. E muitas vezes duas possibilidades de preenchimento são, entre si, do ponto de vista cognitivo, indecidíveis. Não há como arbitrar racionalmente – cientificamente – se Capitu traiu ou não traiu Bentinho. Isso porque uma das condições de validade do raciocínio indutivo – e a concretização é uma espécie de indução – é a seguinte: aquilo a que se chega por indução, deve ser ao menos possível chegar por observação direta. Essa condição não se cumpre no caso da concretização ficcional.

Logo, toda obra literária é essencialmente ambígua, porque permite, por si mesma, diferentes leituras igualmente válidas[xix]. Isso implica que todo texto literário é demasiadamente esquemático em comparação com cada leitura individual, pois o próprio do texto literário é a exigência de que o preenchamos com emoções e outros conteúdos psicológicos. Entre a leitura de Dom Casmurro em que Capitu trai Bentinho e a leitura em que ela não o faz, a única diferença é de ordem psicológica; fazer uma ou outra leitura depende de certas propensões subjetivas que o leitor tem. Isso, que é uma virtude no caso da literatura, é um defeito no caso do discurso científico ou crítico.

6 A ciência ficcional contra a ciência da ficção

Vinha dizendo que leituras diferentes são diferentes ideias sobre o mesmo sentido[xx] da obra, o que dá àquele que lê alguma liberdade de interpretação a respeito de certos pontos (os que estão situados nas lacunas constitutivas do texto). Como uma das finalidades essenciais do objeto literário é causar no leitor efeitos psicológicos – que, por definição, serão subjetivos e mais ou menos incomunicáveis –, é admissível que as leituras variem de pessoa para pessoa. Essa forte dependência nos fatores psicológicos – causada pela presença excessiva de lacunas semânticas no texto – é o que torna a literatura algo instigante e comovente para nós; todavia, no caso de um texto científico, é algo claramente impróprio.

Nesta conclusiva parte, tendo já anotado alguns pontos essencialmente característicos do objeto literário, terei condições de propor – retomando o tema da crise que apresentei no início deste ensaio – que quase todo discurso pretensamente científico[xxi] que hoje se faz sobre literatura possui traços inconfundíveis de ficcionalidade, o que o torna, incontornavelmente, ou má literatura, ou pseudociência.

Frege, no já citado ensaio Sobre o Sentido e a Referência, enquanto discute sobre a natureza dos pensamentos, ou proposições (Gedanken), que, para ele, são os átomos lógicos de toda linguagem, levanta a questão de se é possível uma proposição ter referência se um de seus elementos constitutivos – o sujeito, por exemplo, a quem se atribui um determinado predicado – não o possui. Palavras dele:

A sentença ‘Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em Ítaca’ tem, obviamente, um sentido. Mas assim como é duvidoso que o nome ‘Ulisses’, que aí ocorre, tenha uma referência, assim também é duvidoso que a sentença inteira tenha uma. Entretanto, é certo que se alguém tomasse seriamente essa sentença como verdadeira ou falsa, também atribuiria ao nome ‘Ulisses’ uma referência e não somente um sentido. (…)Todo aquele que não admite que um nome tenha uma referencia não lhe pode atribuir nem negar um predicado. Neste caso, a consideração acerca da referência do nome se torna supérflua; já que não quer ir além do pensamento. (FREGE, 2009, p. 137-138.)[xxii]

Não é esse, precisamente, o caso daquele que nega que haja uma essência do literário? Sim, porque, se nega a essência, nega qualquer critério de reconhecimento do objeto. Nega o próprio conjunto de critérios de identidade do objeto. E, se a ciência literária teria de se edificar por meio de proposições que requereriam o objeto literário como valor de suas variáveis e sujeito de suas predicações, a negação da essência do literário é a anulação da referencialidade da literaturologia. Toda pesquisa resumir-se-ia à construção de jogos de palavras, brincadeiras com sentido e malabarismos com o pensamento. Alguém poderia levantar a pergunta que Frege mesmo faz: “Por que queremos que cada nome […] tenha não apenas um sentido, mas também uma referência? Por que o pensamento não nos é suficiente?” (FREGE, 2009, p. 138). E ele mesmo responde: “Porque estamos preocupados com seu valor de verdade.” (FREGE, 2009, p. 138)[xxiii] E é essa preocupação com a verdade ou falsidade das afirmações feitas dentro de seu domínio o próprio – o essencial – do discurso científico, em oposição ao literário:

Ao ouvir um poema épico, além da eufonia da linguagem, estamos interessados apenas no sentido das sentenças e nas imagens e sentimentos que este sentido evoca. A questão da verdade é que nos faz abandonar o encanto estético por uma atitude de investigação científica. (FREGE, 2009, p. 138)

Parece que poucos dos nossos estudiosos de literatura estão dispostos a abandonar a condição de (maus) poetas enquanto alardeiam fazer ciência. Isso é efeito inevitável da posição teórica que adotaram, que rejeita – por meios filosoficamente muito contestáveis – a ideia de essência e de definibilidade do objeto literário.

É quase impraticável ler qualquer um desses novos críticos e acadêmicos da literatura sem realizar aquelawillingsuspension of disbelief de que falava Coleridge, pois é tudo um jogo do faz-de-conta composto daquilo que Ingarden chama de pseudo-juízos (quasi-judgments):

Um juízo genuíno postula a existência de seu objeto, ao passo que um pseudo-juízo não pretende alegar nada sobre qualquer coisa que exista independente do mundo da obra que esse pseudo-juízo ajuda a projetar e determinar. (…) Qualidades estéticas são vistas como não-essenciais para a obra científica, e podem até ser prejudiciais para a sua função principal. O estrato dos objetos retratados deve ser transparente no trabalho científico; o estrato semântico deve levar o leitor direto para os objetos exteriores. (CROWLEY; OLSON, 1979, p. xxiv)

É seguro, com base em tudo isso, concluir que a ciência que é praticada por uma parcela tristemente considerável de nossos cultores da literatura é um fingimento. Em vez da ciência da ficção – que desprezam – praticam uma ciência ficcional. Ciência ficcional que, paradoxalmente, ocupa um espaço demasiado real na universidade, nos cadernos de cultura em jornais, nos parcos programas televisivos que tratam de literatura. Talvez pareça chocante demais o que digo, mas não faço senão repetir trivialmente o que eles mesmos afirmam. Derrida, o doctor universalis dessa nova era, não aceitaria que é este mesmo seu projeto filosófico, abolir a ilusão da linguagem referencial; a ideia de que há uma essência anterior ao discurso, à qual o discurso, como garantia de sua validade, tem de se referir?

O que fazer? Francamente, não sei a solução. Todos os conflitos superficiais entre os indivíduos que procuram de fato uma ciência construtiva e solidária da literatura – que los hay, los hay – e aqueles que preferem manter o status quo pós-moderno intacto têm raízes filosóficas profundíssimas. Há quase que uma diferença ontológica entre, por exemplo, Kendal Walton, autor do impressionante Mimesis as Make-Believe (1990) e Jean-Luc Nancy. A respeito das duas orientações que desejo ver prevalecer, penso já ter deixado claro neste ensaio. Entretanto, neste sentido, o outro lado – o que venho aqui criticando – vem sendo mais competente. Como também observa John Searle em seu artigo The Case for a Traditional Liberal Education (1996): “Eles têm mais energia e entusiasmo, para não dizer fanatismo e intolerância. A longo prazo, isso pode ser mais eficaz em mudar as universidades do que quaisquer argumentações rigorosas.” (SEARLE, 1996, p. 98).

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[i] Não é minha intenção explícita discutir ou mesmo contestar essa dicotomia, contudo aparecerá, mais adiante, uma reprovação da minha parte a algumas das consequências que dela decorrem: em especial à ideia de que é impossível uma ciência exata ou objetiva de fenômenos criados pela subjetividade humana. Tampouco ignoro que houve uma influência perniciosa da bifurcação cartesiana – tal qual a apelidou Alfred North Whitehead – tanto na filosofia quanto nas ciências; de sorte que tantos, desde o filósofo racionalista francês, dela tentaram a todo custo escapar. Desde Leibniz e Spinoza até Turing e David Chalmers, boa parte dos pensadores mais respeitáveis do ocidente se envolveram em inconclusas tentativas de contornar algumas aporias do dualismo de substância. Para um diagnóstico contundente do resíduo de cartesianismo que subjaz sob a forma de pressuposições tácitas mesmo nas áreas mais avançadas da física quântica, recomendo fortemente The Quantum Enigma de Wolfgang Smith (Angelico Press, 2005). Sobre o caráter parasitário do dualismo cartesiano na área filosofia da mente, ver também o primeiro capítulo do já clássico livro de John Searle, The Rediscovery of Mind (MIT Press, 2004).

[ii]É um pouco ingênuo ver em Popper o pai absoluto do falsificacionismo – talvez o mais correto seja reconhecer seu imenso mérito em propô-lo como resposta ao indutivismo ingênuo sob o qual repousava a epistemologia positivista. Isso porque o ponto central do falsificacionismo já estava presente no método científico enunciado por Aristóteles nos Tópicos, tanto que os medievais de linhagem aristotélica refletiram, de uma maneira admirável, esses princípios epistemológicos na própria estrutura de redação das suas famosas Sumas. O que em Popper é meramente uma teoria da ciência – enunciada, é bem verdade, rigorosissimamente -, em Sto. Alberto Magno é a própria estrutura de um capítulo.

[iii]O surgimento tardio de uma “ciência da literatura” se explica pela indefinição em que jazia o objeto literário até, pelo menos, o século XIX. A palavra “literatura” era usada arbitrariamente para designar qualquer produção escrita que fosse respeitada por uma certa elite, não correspondendo a ela, portanto, nenhum fenômeno delimitado que pudesse ser objeto de uma investigação séria. Passando por uma fase “retórica” no final do século com os críticos literários, já no início do século XX se viu, entre os formalistas, a primeira tentativa de uma abordagem científica do problema, o que requeria, desde o princípio, uma definição de literatura. Mais adiante retornarei a este problema; mas gostaria de ressaltar aqui que Aristóteles, em sua famosa Poética já parece ter pressentido, de seu modo, a confusão, quando, ao elencar as artes miméticas, depara-se com uma que “imita somente através da linguagem, tanto em verso quanto em prosa (…), mas desde hoje não recebeu nome algum. Pois não há um termo comum a que aplicaríamos, por um lado os mimos de Sófron e Xenarco e os diálogos Socráticos, e, por outro, a poesia jâmbica, elegíaca ou em qualquer metro similar” (ARISTÓTELES, 1991, p. 201). Penso que Aristóteles percebera, em seus próprios termos, uma espécie que, como tal, possuía uma forma comum, sem, contudo, haver um nome que a expressasse. Esse nome que a Aristóteles faltava, temo-lo hoje: literatura.

[iv]E, de fato, tais concepções já foram discutidas e possivelmente refutadas em uma obra como Fashionable Nonsense (Picador, 1998) de Alan Sokal e Jean Bricmont. Outras famosas e avassaladoras contestações vêm da pena do filósofo americano John Searle, entre as quais posso citar seu ensaio Reiterating the Differences (este dirigido especialmente à filosofia de Derrida) e o capítulo inicial de seu livro Mind, Language, and Society (Masterminds, 1998). Também José Guilherme Merquior desfere, em especial nos capítulos finais de seu De Praga a Paris (Nova Fronteira, 1991), várias críticas ao chamado pós-estruturalismo.

[v]Seria possível, como já foi sugerido por alguns, analisar esse movimento dentro da teoria sob um prisma frankfurtiano, no sentido de que a multiplicação de abordagens da literatura parece seguir uma lógica mercantil, semelhante à que Adorno, por exemplo, descrevera em seu ensaio sobre o fetichismo na música.

[vi]As figuras modelares de superação desses dois períodos são, respectivamente, Descartes – a quem Husserl presta sua homenagem – e Santo Agostinho.

[vii]Seria chover no molhado, e não penso ter dito aqui, até agora, qualquer coisa que não houvesse sido dita –  de maneira provavelmente mais competente – por outros críticos dessa intelectualidade pós-moderna como os já citados Sokal, Bricmont, Bouveresse, Searle e Merquior; mas também outros como Richard Dawkins, William Lane Craig, Alvin Plantinga, Frederic Jameson, Noam Chomsky e, mais recentemente até, Steven Pinker – o qual, aliás, interessantemente atribui a declínio de interesse pelas “artes” e pela crítica de arte desde os anos 60 precisamente a essa negação da razão, da beleza e dos outros componentes da natureza humana. v. The Blank Slate: the modern denial of human nature (Penguin Books, 2003).

[viii]Escolha essa que é absolutamente necessária, haja vista que toda teoria, como diz Quine, tem seus comprometimentos ontológicos, a saber, entidades cuja existência ela pressupõe. Outra maneira de evidenciar essa impossibilidade de uma ciência sem ontologia é pela própria ideia de holismo, que, embora tenha sido desenvolvido sobre as bases do relativismo ontológico em Quine, possui em Hegel um propugnador mais “realista”. A ideia aí é a de que não é possível uma explicação isolada de um “fato” sequer sem que se possua implicitamente todo um “sistema”, uma explicação global sobre como o mundo é, perante a qual a explicação do fato será compreendida.

[ix]Cito, como exemplo explícito em que se advoga, quase que ipsis litteris, essa tese o artigo Empirismo, Semântica e Ontologia de Rudolf Carnap. Aí ele chega a afirmar que toda tentativa de se colocar fora de uma teoria para questionar a validade de sua ontologia é uma oportunidade para criar, inevitavelmente, pseudoproblemas. Não há, para ele, a possibilidade de perguntarmos sobre a existência “em geral”, de “fora” do quadro de teoria em particular. E, quando a questão é colocada “internamente”, torna-se trivial. Em resumo, para Carnap, a ontologia ou é trivial ou é impossível. Impressiona que ele tenha, em sua juventude, sido leitor de Husserl, o qual certamente rechaçaria essas asserções.

[x]Uma das maiores fontes de confusão em qualquer investigação é a ignorância dos próprios princípios que a instauram, de modo que, em algum instante no decorrer de seu desenvolvimento, o discurso científico pode voltar-se contra suas próprias premissas, simplesmente por tê-las deixado ocultas, ou pelo cientista não se ter interessado por elas, sob a alegação pejorativa de que são “elucubrações metafísicas”. Assim, a ciência nega suas próprias condições de possibilidade. Um dos exemplos mais patentes disso é aquilo que Husserl chama de psicologismo – a redução da lógica à psicologia -, tornado célebre sobretudo por John Stuart Mill em seu System of Logic, o qual tornaria qualquer ciência – mesmo a psicologia – literalmente impossível. Tratarei do psicologismo na ciência literária mais adiante, mas o que quero afirmar é o seguinte: uma ciência que alega (explicita ou implicitamente) como conclusão científica a impossibilidade de sua própria existência enquanto ciência é necessariamente uma farsa, e precisa ser denunciada e remediada.

[xi]Penso que seja precisamente essa a posição de Husserl, e esse também o motivo de ele repudiar veementemente a alegação de que a fenomenologia se baseia em uma metafísica de tipo platônico. O platonismo, o qual foi no final do século XIX e início do século XX abraçado por figuras de alto nível como Frege, Meinong e o Russell dos Principia como a melhor explicação para a universalidade da matemática e do conhecimento humano em geral, se baseava, segundo Husserl, em um objetivismo ingênuo, que não dava conta de explicar a maneira como o ser humano poderia ter, no tempo e em sua psique, um contato com essas essências que são, por definição, eternas e não psíquicas. A tentativa platonista de resguardar o terreno da estrutura formal do conhecimento humano contra intrusão ciências naturais acabava por negar, bem como o psicologismo daquelas, a própria condição de possibilidade do conhecimento, fazendo-o depender de um acesso misterioso a um reino etéreo de essências eternamente subsistentes. O erro aí, talvez seja, a meu ver, a consideração dessas essências como objetos – decorrente de uma falsa analogia entre a “meta-ciência” que as estuda e as demais ciências – de modo a fazê-las depender de um “reino” onde possam, de algum modo, “existir”. Meinong falava de uma Teoria dos Objetos, o que é, a rigor, uma figura de linguagem, uma metáfora elevada perigosamente à condição de definição. O que é necessário é uma Teoria das Essências, inclusive da essência “objeto”, a qual não é, ou não tem de ser um objeto em qualquer sentido ontológico do termo. A essência está no objeto, mas a essência não é um outro objeto dentro do objeto, porque, se assim fosse, fácil seria vislumbrar o regresso ao infinito… O objeto nada mais é que o fenômeno cuja essência está esclarecida – ou descritivamente fixada pela fenomenologia. Por isso digo que a ciência lida com objetos.

[xii]Para uma discussão rigorosa desse ponto, recomendo The Construction of Social Reality (Free Press, 1997) de John Searle.

[xiii]E há fortíssimos indícios que apontam que a literatura é um dos chamados “universais humanos”, ou seja, um daqueles fenômenos que estão presentes em todas as culturas conhecidas – ainda que não haja, em cada uma delas, um nome para essa manifestação. As semelhanças vão além das generalidade e chegam até à duração dos versos, à conotações dadas a determinadas cores e ao modo escolhido para narrar. V. o livro de Steven Pinker, The Blank Slate: the modern denial of human nature (Penguin Books, 2003).

[xiv]O simples uso dessa terminologia já denota que a ideia de essência foi plenamente reabilitada mesmo nos círculos analíticos mais rigorosos da filosofia atual. Para uma discussão interessante do assunto sob a ótica da metafísica da modalidade, v. PLANTINGA, Alvin. The Nature of Necessity. Oxford: Oxford University Press, 1982, p. 55-59 e p. 70-101.

[xv]Como já disse anteriormente, rejeito, juntamente com Husserl, a tentação de dar qualquer estatuto ontológico a essa repartição de “reinos”. Uso essa terminologia sem aderir a qualquer metafísica que subdivida a realidade em setores incomunicáveis. Creio na unidade do real, e não vejo força explicativa alguma em postular esses “reinos” como mundos efetivamente “existentes”. Tal é apenas um subterfúgio para não lidar com a complicadíssima questão de como mente, sentido e matéria interagem. É bem verdade que os componentes desses três ditos “reinos” são essencialmente distintos, e por isso adoto aqui a metáfora do “reino”, mas isso não implica que existam em planos diferentes (uma cadeira é essencialmente distinta de uma mesa, mas nem por isso precisamos postular um mundo para uma e outro para a outra). Nem sequer considero essa “solução” – que foi, é bem verdade, propugnada pelo próprio Frege – como inteligível. Se digo que esses mundos “existem”, já os insiro na mesma realidade, n’um mesmo “mundo”, e a conotação ontológica da divisão se dilui, fazendo retornar o problema da interação entre eles.

[xvi]Talvez seja tarde demais para esclarecer o uso que faço dos termos obra, texto e leitura, mas antes tarde do que nunca. Considero a obra a base material que carrega o texto potencial, o livro que guardamos na estante, a voz que recita um poema. Seu estatuto, é, no máximo, linguístico – se excluirmos da linguística a semântica. É possível analisar a obra fonologicamente, morfologicamente, sintaticamente, desde que se não realize juízos sobre o significado. Texto é, como já disse, o “sentido” da obra. E este sentido é, sim, permanente e fixo, porque é a ele que nos reportamos em quase todas as proposições da crítica e da ciência literária. Quando dizemos:  “O Memorial de Aires é cheio de uma ironia fina e sutil.” é a esse sentido que nos estamos reportando. Que não se confunda o sentido com a “moral da história” – como costumam fazer aqueles que rejeitam a idéia de que cada obra encerra apenas um sentido válido -, de um mesmo sentido se pode tirar várias “morais” da história. Também de um mesmo sentido se podem fazer várias leituras, pois sempre o captaremos sob uma nuance psicológica diversa. A leitura é o que efetivamente passa pela nossa cabeça enquanto lemos, é um processo psicológico fugidio e subjetivo que dificilmente se poderia tornar objeto de uma ciência especializada. O texto, por assim dizer, é o aspecto logicamente relevante da leitura, sólido o bastante para que possamos dizer algo de certo e seguro sobre ele. Por isso, também, ele é demasiadamente esquemático. É também o logos analogante de todas as leituras, aquilo em que as leituras que se fazem de uma determinada obra se assemelham. A incapacidade de distinguir entre texto e leitura – ou entre sentido e ideia, segundo a terminologia fregeana – é o que nos faz cair no psicologismo, que leva ao relativismo, que, por sua vez, aniquila a possibilidade de uma ciência literária séria.

[xvii]V. o capítulo 5 de SEARLE, John. Intencionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[xviii]Mesmo no caso de uma ficção histórica, ou em uma obra literária que se aproveita, em geral, de fatos históricos, se a obra é literária, o recurso a outros “documentos” e “fontes” de informação sobre o universo tratado não é válido se a quisermos ler como literatura. O fato de o Ricardo III pintado por Shakespeare ser bastante diferente daquele que foi descoberto pelos historiadores não invalida as qualidades estéticas da peça do Bardo, e os dados historiográficos em nada contribuem para um tratamento literário da obra. Do contrário, nesse caso, se pressupuséssemos o conhecimento dos dados históricos para preencher as lacunas da obra, chegaríamos a uma narrativa totalmente incoerente, na qual o rei é, ao mesmo tempo, repugnante e de aparência normal, corcunda e não corcunda, de um braço maior que o outro e com os dois braços do mesmo tamanho… É claro que todas essas observações se dirigem a uma análise literária “pura”, o que de modo algum sugiro que seja a única válida. Estou esboçando aqui os fundamentos para uma futura literaturologia. Porém, não pretendo que “minha” literaturologia seja a única ciência permitida a falar sobre literatura. Há também a ciência da História da Literatura, que possui outros princípios e métodos, destinados a atingir outro tipo de resultado. O trabalho do historiador da literatura, por exemplo, tem sim de considerar todos esses dados históricos e biográficos sobre o tempo e vida do autor.

[xix]Que não se leia: todas as leituras são igualmente válidas. Não o são. Existe, como já disse, um limite para além do qual não estamos falando do mesmo texto. Se alguém afirma – como já vi fazerem – que a passagem da Carta pras Icamiabasem Macunaíma sobre os “monstros comestíveis a que, vulgarmente, dão o nome de lagostas” (ANDRADE, s.d., p. 98) é uma claríssima referência à Guerra dos Mundos de H.G Wells e a Os Sertões, de Euclides da Cunha, devemos poder dizer que já não se está lendo mais a obra de Mário de Andrade, e sim outra coisa, talvez apenas a vaidade intelectualista do crítico. O mesmo é possível dizer sobre certas leituras heideggerianas de Clarice Lispector ou até – para dar nome a um boi ao menos –  sobre a Interpretação de Camões à Luz de Santo Tomás de Aquino(Edições Melhoramentos, 1978) de João de Scantimburgo (que é um ótimo livro de introdução à filosofia tomista, mas duvidoso enquanto crítica literária).

[xx]Remeto-me aqui à observação de Gottlob Frege, em seu famoso ensaio Sobre o Sentido e a Referência, de que há três planos em que as palavras, as expressões e as sentenças completas podem diferir: quanto às idéias, quanto ao sentido e quanto à referencia. Segundo ele, as diferenças de leituras admissíveis na literatura não podem passar desse primeiro plano. Diz ele: “Pertencem […]  a essas possíveis diferenças os coloridos e os sombreados que a arte poética e a eloquência procuram dar ao sentido. Tais coloridos e sombreados não são objetivos, mas devem ser evocados pelo próprio ouvinte ou leitor, conforme as sugestões do poeta ou do orador.” (FREGE: 2009. p. 136) De maneira rudimentar, e quase marginal no texto, ele já previa, aí, a noção de concretização que viria a ser clarificada por Roman Ingarden.

[xxi]Ou, se não pretensamente, ao menos administrativamente. O estado não faz, em princípio, distinção entre os departamentos de literatura e os de linguística, por exemplo, na hora de distribuir bolsas para pesquisa.

[xxii] Grifo nosso.

[xxiii] Grifo nosso.

[xxiv]As traduções das citações em inglês foram todas feitas por mim.